“Há alguns municípios onde os fundos europeus não estão a ser usados para questões estruturais”

Presidente da CCDR Norte está preocupado com possíveis alterações à Política de Coesão. Rejeita modelos centralistas estilo PRR. "Estamos fartos de vestir roupa que não se enquadra à nossa realidade."

“Não tenho dificuldade em confessar, que há alguns municípios onde os fundos europeus não estão a ser usados para questões estruturais“, admite o presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR Norte). “Estão a ser usados para questões que, provavelmente, um orçamento municipal mais generoso deveria ser capaz de assegurar“, diz António Cunha no ECO dos Fundos, o podcast quinzenal do ECO.

O responsável admite que as coisas não deveriam ser assim, mas há “municípios que não garantiriam algumas funções básicas da sua atividade se não tivessem os fundos europeus”. Por isso, é com grande preocupação que as discussões que se vão fazendo em Bruxelas em torno da Política de Coesão. António Cunha considera que esta “vai ser ameaçada por dois mecanismos: um mecanismo orçamental, devido às pressões para outras rubricas orçamentais ganharem importância, incluindo a defesa, e, por outro lado, através de leituras de modelos tipo PRR, de modelo centrais, que não têm a especificidade territorial“.

E a especificidade territorial é algo pelo qual quer lutar. “Estamos fartos de nos obrigarem a vestir fatos e vestir roupa que não é nossa e que não se enquadra na nossa realidade”, diz. “Somos muito, muito ciosos da nossa especificidade.”

E porque os programas regionais têm “toda a dimensão de concursos públicos e de obra pública” — razão pela qual têm ritmos de execução mais lentos face aos programas temáticos como o Compete ou o Capital Humano (agora Pessoas 2030) — vê com bons olhos a revisão das regras da contratação pública que o Governo está a pensar levar a cabo, considerado que “há várias questões que poderiam ser aligeiradas”.

“No passado existia a figura da resolução fundamentada em que a Administração Pública podia invocar o interesse público para obviar essa questão. Hoje isso não existe, mas é uma área onde sabemos que o Governo está a trabalhar e onde vemos com uma expectativa muito positiva a evoluções que haja neste domínio“, exemplifica. “Temos hoje, nomeadamente no PRR, n projetos bloqueados desse tipo”, justifica António Cunha.

O Norte é a região que tem o PIB per capita mais baixo em Portugal. Está preocupado com a possibilidade de a Comissão Europeia rever a Política de Coesão?

Certamente que estamos preocupados. O Norte tem uma realidade quase paradoxal. Temos indicadores fantásticos do Norte, seja das exportações, da qualidade das nossas estruturas de investigação, do nosso património mundial, seja da cultura, ciência, tecnologia, economia. Mas depois temos essa dimensão paradoxal no fim do dia, o rendimento per capita é o mais baixo do país. Tem muito a ver com razões estruturais, que no passado foram sempre muitas associadas a duas questões: a presença da economia do Norte em setores das cadeias de valor razoavelmente débeis e de relativamente pouco valor acrescentado e o baixo nível de habilitações da população a Norte, mais baixa que no resto do território. Hoje, os desenvolvimentos a este nível são bons. O Norte tem como cadeias de valor principais o automóvel, a eletrónica. O têxtil e o calçado são importantes, mas não têm, de modo nenhum, o peso (os 31%) que já tiveram no passado. Apesar de hoje terem uma faturação maior, o seu peso relativo é mais baixo. Estamos a evoluir no bom sentido. E se em termos de níveis de formação, compararmos a população entre os 18 e os 24 anos, ou mesmo até aos 34 anos, o Norte hoje já tem os melhores indicadores do país.

Fez progressos.

O país fez um progresso notável, nos últimos dez anos, mas o Norte fez um progresso ainda maior. Mas temos uma região dual, porque isto é verdade até aos 30 anos, mas não o é na população acima dos 40 dos 70 anos, onde temos ainda essas debilidades. Não há que escondê-lo: um operário que fica sem emprego, aos 50/60 anos, a probabilidade de ter um novo emprego é muito reduzida. É algo que nos preocupa muito. Por tudo isso, a questão da evolução da Política de Coesão preocupa-nos muito. Hoje, a coesão não é só uma questão das pessoas, é também do ambiente — um sistema agro silvo pastoril que foi feito pelos humanos. Para preservarmos esse ambiente, precisamos de criar condições económicas para que as pessoas possam viver nesses locais. No Norte a questão de um desenvolvimento harmonioso, num sistema que seja equilibrado — urbano, rural –, é absolutamente essencial e por isso rejeitamos uma visão que é muito centralista, uma visão muito a partir da capital. Numa capital que, na sua envolvente, mais a Sul, os espaços são muito marcados por uma grande diferença entre o rural e o urbano. No Norte, não temos esse espaço, é difícil saber onde começa o espaço rural e o espaço urbano: em cinco minutos estamos numa fábrica, numa vinha, ou numa zona urbana. Por isso é que somos muito, muito ciosos da nossa especificidade.

Que não é acautelada em políticas mais centralistas?

As pessoas nessa máquina central, provavelmente não estão a ver mal as coisas, mas não estão a ver é com o nosso território. A Política de Coesão vai ser ameaçada por dois mecanismos: um mecanismo orçamental, devido às pressões para outras rubricas orçamentais ganharem importância, incluindo a defesa, e, por outro lado, através de leituras de modelos tipo PRR, de modelo centrais, que não têm a especificidade territorial. Vou usar um termo não muito simpático. Estamos fartos de nos obrigarem a vestir fatos e vestir roupa que não é nossa e que não se enquadra na nossa realidade.

A Política de Coesão vai ser ameaçada por dois mecanismos: um mecanismo orçamental, devido às pressões para outras rubricas orçamentais ganharem importância, incluindo a defesa, e, por outro lado, através de leituras de modelos tipo PRR, de modelo centrais, que não têm a especificidade territorial.

Com fundos atribuídos no modelo PRR os projetos inscritos são previamente negociados com Bruxelas. Cada país poderá negociar aquilo que é melhor para cada região. Ao fim de todos estes anos de fundos estruturais continuamos longe da média comunitária…

A Política de Coesão também não é um, não é uma dádiva. É, de algum modo, uma contrapartida pelo facto de ter havido uma destruição do tecido económico com a abertura de fronteiras. O que disse é verdade, concordo, mas não há razão para que essa negociação não possa ser feita ao nível regional. Porque é que os projetos estruturais não podem ser negociados com Bruxelas ao nível regional. Hoje já fazemos isso: por exemplo os avisos convite do Norte, no ciclo urbano da água em alta, para sete ETAR específicas. Fazer uma seleção a priori dos projetos tem por trás um grande consenso entre a CCDR Norte, a Agência Portuguesa do Ambiente, as várias comunidades intermunicipais.

Os fundos europeus, sobretudo em Portugal, padeceram de excesso de capilaridade? Apostamos demasiado em pequenas coisas em vez de concentrar o dinheiro em grandes projetos que podiam ter feito a diferença do ponto de vista estrutural?

Isso é uma leitura fácil da questão. O grande volume de verbas é colocado em grandes projetos. Depois temos micro projetos. Mas se formos fazer o cômputo geral, estamos a falar de 10 a 20% dos fundos. Há questões que é preciso entender e que temos de analisar de um modo mais global de política pública, nomeadamente de política autárquica. É evidente que não devia ser assim.

A política autárquica não deveria ser financiada com fundos europeus.

Não devia ser assim. Mas temos municípios que não garantiriam algumas funções básicas da sua atividade se não tivessem os fundos europeus. Esta questão dos municípios é interessante. Quando falamos em municípios podemos falar de coisas muito diferentes. No Norte podemos estar a falar de uma realidade como Vila Nova de Gaia, que tem 310.000 habitantes ou como Penedondo, que tem 2.800. Podemos falar de municípios onde o que recebem da Lei das Finanças Locais pode significar 80 a 90% do seu orçamento, não têm mais rendimento nenhum tirando aquilo. Ou municípios onde o que recebem do financiamento da Lei das Finanças Locais é inferior a 20% e o restante resulta de um conjunto de taxas, impostos que têm uma dimensão municipal. Não tenho dificuldade em confessar, que há alguns municípios onde os fundos europeus não estão a ser usados para questões estruturais. Estão a ser usados para questões que, provavelmente, um orçamento municipal mais generoso deveria ser capaz de assegurar. Isso é verdade. Nos 1,3 mil milhões de euros que contratualizámos com municípios, isso provavelmente acontece em 30 ou 40 dos nossos 86 municípios. Não é significativo e pode fazer a diferença para alguns municípios.

António Cunha, Presidente da CCDR Norte, em entrevista ao podcast do ECO "Eco dos Fundos" - 09AGO24
A figura da revisão do projeto, “face à pressão temporal que temos, na maior parte dos casos, não faz sentido. Percebo em projetos de muito grande dimensão, mas em projetos de dois a quatro milhões de euros não faz muito sentido”, diz António Cunha, presidente da CCDR Norte, em entrevista ao podcast do ECO “ECO dos Fundos”.Hugo Amaral/ECO

Até ao final do ano, o Norte 2030, pretende lançar cerca de 40% da sua dotação em concursos. Será possível lançar tantos concursos, com um volume tão significativo de verbas e, simultaneamente, cumprir a regra que o Executivo impôs de decidir as candidaturas em 60 dias?

Sim, sim. Na questão dos 60 dias estamos a falar sobretudo para os concursos dos avisos no âmbito do sistema de incentivos, dos avisos que estão para as empresas. Depois há todo um conjunto de avisos ou de convites que lançamos que têm um contexto ligeiramente diferente. Mas sim, isso é possível porque alguns dos avisos, nomeadamente os avisos convites que estamos a lançar — por exemplo das sete ETAR, os projetos com as três universidades ou com os quatro politécnicos no Norte –, estão a nascer agora, mas o trabalho de casa está a ser feito há muito tempo. Coisa diferente são os avisos totalmente concorrenciais que são para empresas, com centenas de candidaturas e onde o desafio do tempo de resposta é, certamente, significativo, mas estamos certos que vamos conseguir.

Por que razão os programas regionais são sempre os mais lentos na execução dos fundos?

Por uma razão muito simples. Nos programas regionais, nomeadamente na componente de investimento público — na qual temos cerca de 40 a 50%, se contarmos com as universidades, até mais, e se contarmos com as IPSS até mais do que isso — temos toda a dimensão de concursos públicos e de obra pública. Temos todo um conjunto de procedimentos associados aos concursos para o projeto arquitetura, há o concurso para a obra… Há um conjunto de procedimentos que são incontornáveis. Comparar o que se passa num programa regional com um programa que só apoia projetos com empresas, onde estamos a falar fundamentalmente de investimento em compra de equipamento ou em pessoal, seja para projetos de inovação ou não, ou comparar com um programa que tem a ver com formação, o Programa Pessoas ou Capital Humano…

Os que têm taxas de execução de mais elevada.

Onde também existem questões de procedimentos de contratação pública, mas são totalmente distintos do que é contratar uma obra de três a cinco milhões de euros, onde além dos procedimentos de obra pública, existem depois as questões judiciais da empresa que fica em segundo ou terceiro lugar da contestação contratação. Esta questão não é negligenciável e pesa. Não lhe escondo que, por exemplo, na afetação de verbas, enquanto com empresas todo o processo é totalmente concorrencial, nos municípios — dos nossos 3,4 mil milhões, 1,3 estão contratualizados com municípios — imaginará que o processo de dividir um bolo por envelopes financeiros pelas entidades intermunicipais (que depois terão de cumprir um conjunto diverso de requisitos e de exigências para cada projeto específicos), que depois é decantado para cada município, é um processo que tem alguma morosidade.

O processo de dividir um bolo por envelopes financeiros pelas entidades intermunicipais, que depois é decantado para cada município, é um processo que tem alguma morosidade.

Vê com bons olhos a revisão das regras da contratação pública que o Governo está a pensar levar a cabo?

Certamente que sim.

E o que gostaria de ver revisto?

Há várias questões que poderiam ser aligeiradas, mas há duas que me parece que são mais óbvias, embora não estejam diretamente no código da constatação pública, estão mais até em questões do quadro judicial envolvente. Uma questão que todos percebemos que não tem muito sentido, é a utilização indevida, por muitos concorrentes a concurso, da figura da providência cautelar — alguém que perde um concurso e, por razões que muitas vezes não são razoáveis, interpõe uma providência cautelar. Parece-me algo que não porque não faz sentido, é usado abusivamente. No passado existe a figura da resolução fundamentada em que a Administração Pública podia invocar o interesse público para obviar essa questão. Hoje isso não existe, mas é uma área onde sabemos que o Governo está a trabalhar e onde vemos com uma expectativa muito positiva a evoluções que haja neste domínio. Temos hoje, nomeadamente no PRR, N projetos bloqueados desse tipo. Há outras questões. São sempre discussões tecnicamente muito complexas e difíceis porque na maior parte dos casos, há que o dizer, todo este conjunto de regras que temos tem uma razão: não foram inventadas apenas por uma vontade de complexificação vazia. Um exemplo de algo que nem sempre faz sentido, e é mais uma morosidade, é a figura da revisão do projeto. Depois de projeto aprovado há depois uma revisão do projeto que pressupõe mais um procedimento de contratação de um revisor de projeto, mais tempo e até despesa. No passado existiram dificuldades diversas na contratação pública, motivadas, em última análise, por projetos que cuja qualidade não seria a melhor. Esta revisão tende a fazer isso. Mas não é algo que, neste momento, e face à pressão temporal que temos, na maior parte dos casos, não faz sentido. Percebo em projetos de muito grande dimensão, mas em projetos de dois, três, quatro milhões de euros não faz muito sentido isso.

As obras da alta velocidade vão acabar por derrapar por todas estes constrangimentos nas grandes obras públicas?

Não sei, mas o meu problema não é as obras acabarem. É as obras começarem. [Risos] Preocupa-nos muito. As obras estão anunciadas para breve. Pensamos que acontecerá com o começo da ligação Porto-Lisboa.

O meu problema não é as obras [da alta velocidade] acabarem. É as obras começarem. [Risos] Preocupa-nos muito.

A sua expectativa é de que comecem quando? Quais as indicações que tem?

Porto-Sor estamos em processo concursal. É uma questão de o processo demorar mais ou menos. Diria que estaremos por meses para começar. Já não estaremos por anos, a escala é meses. Para nós, a questão do Porto de Vigo também é essencial: uma ligação mais rápida à Europa, o desenvolvimento da eurorregião Norte Galiza. Porque, no contexto de uma Europa, onde o noroeste peninsular vai sentindo fortemente a perifericidade, face a uma crescente importância de uma Europa central que, por várias razões vai ganhando mais peso, incluindo por razões de defesa, precisamos de reforçar a massa crítica neste polo, aqui no Finisterra. Isto é muito, importante para a eurorregião, mas também para toda a nossa frente Atlântica. A ligação Corunha – Lisboa, toda ela servida por alta velocidade, fará com que tenhamos uma enorme centralidade aqui. E tendo esta ligação, teremos os nossos dois aeroportos ligados: Portela e Sá Carneiro.

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