“Apoiamos a seleção, não esta competição”, dizem marcas sobre o Mundial
Este mundial tem todos os condimentos para ser um evento do qual as marcas querem distância. Mas é também o sonho de qualquer anunciante: uma audiência imensa, no palco onde se jogam todas as paixões.
“Nunca se viu fazer uma campanha para celebrar a guerra entre a Rússia e Ucrânia que faz milhares de mortos, nunca se viu fazer uma campanha para celebrar um Tsunami onde centenas de pessoas perdem a vida… Porquê? Porque ninguém faz campanhas quando catástrofes acontecem. Então, por que carga de água se fazem campanhas para este Mundial? Temos de ser honestos connosco próprios, o que aconteceu no Qatar foi uma catástrofe.” A interrogação de Lourenço Thomaz, sócio e CCO da Partners, num artigo de opinião publicado esta quinta-feira no +M/ECO, choca no pragmatismo das grandes marcas.
4.380.953 era o número de visualizações no YouTube do Footballverse sexta-feira de manhã, ainda o filme com o qual a Nike está a assinalar este Mundial não tinha 48 horas. Ronaldo Fenómeno, Ronaldinho Gaúcho, Cristiano Ronaldo e o filho Cristianinho e ainda Kevin De Bruyne, Phil Foden, Virgil van Dijk, Sam Kerr, Alex Morgan e Carli Lloyd são os protagonistas, naquela que será a maior produção de sempre da marca que equipa 13 das 32 seleções que participam no Mundial do Qatar.
Se recuarmos ao início do mês, encontramos outro dos anúncios que vai ficar na memória deste Mundial, o World F*Cup, com o qual a marca de cerveja artesanal BrewDog se declarou “orgulhosamente anti-sponsor.
Assinado pela Saatchi & Saatchi Londres, trata-se de um conjunto de outdoors que colocam o dedo na ferida: “Primeiro a Rússia, depois o Qatar. Mal podemos esperar pela Coreia do Norte”, diz num dos outdoors a marca, ao mesmo tempo que anuncia que os lucros da venda da sua Lost Lager durante o evento revertem para o combate à violação dos direitos humanos.
A polémica, bastante menos viral do que os outdoors, veio de seguida, com a marca a ser acusada de hipocrisia por planear e promover a transmissão dos jogos do mundial nos cerca de 80 bares que explora no Reino Unido e também por exportar para o Qatar. É a publicidade a cumprir o seu papel ativo na sociedade a abraçar causas que, neste caso concreto, deviam ser de todos? Ou uma marca não patrocinadora a cavalgar, com o que pode ser mais rasgo do que transparência, a oportunidade? A resposta será sempre subjetiva.
Mais de 6.500 mortes de trabalhadores migrantes, proibição da homossexualidade, os direitos das mulheres são um eufemismo. “O Qatar não respeita os direitos humanos. Toda a construção dos estádios e tal…, mas, enfim, esqueçamos isto. É criticável, mas concentremo-nos na equipa. Começámos muito bem e terminámos em cheio”, afirmou esta quinta-feira Marcelo Rebelo de Sousa, na zona de entrevistas rápidas no Estádio José Alvalade, após o amistoso Portugal vs Nigéria, no qual a seleção nacional ganhou 4 a 0.
Mais do que nunca, as equipas de marketing e comunicação destas marcas vão ter uma espécie de sala de emergência, com profissionais prontos para entrar em ação. Haverá planos A, B, C, D e até retiradas totais em casos extremos.
Embora diferente na forma, no essencial, a opinião do Presidente da República não se distancia muito da posição das marcas envolvidas, através do patrocínio às seleções dos diferentes países, na competição.
“O Campeonato Mundial de Futebol é um evento que transcende fronteiras, realizado de quatro em quatro anos, e, embora possa haver algum debate sobre a associação com o evento, este será esquecido quando a bola começar a rolar. A este respeito, vale a pena lembrar que o Campeonato do Mundo é um dos eventos com os mais altos níveis de notoriedade entre os adeptos do desporto (mais de 90%), o que só por si reflete o impacto da competição”, recorda ao +M/ECO Iranzo Rovira, diretor comercial Nielsen Sports para Espanha e Portugal.
Daniel Sá, diretor do Instituto Português de Administração e Marketing (IPAM), é mais cauteloso. “Estamos perante um Mundial de alto risco. Desde a escolha até agora, avolumam-se as polémicas à volta desta edição. Até agora, patrocinar um Mundial era sempre uma aposta ganha: uma visibilidade monstruosa a nível global, muita emoção e diversão, e uma máquina bem oleada da FIFA a ativar bem os patrocínios e a deixar todas as marcas satisfeitas com os seus investimentos. Em resumo: visibilidade somada à reputação é uma fórmula mágica de sucesso. Neste Mundial, uma das variáveis desta fórmula apresenta uma dose de risco tremenda. Com tanta polémica, não fica claro que espaço mediático é que estas polémicas vão conquistar ao tempo de antena desportiva. Muitos adeptos, cada vez mais conscientes, estão zangados com este Mundial.”
As desvantagens do patrocínio a este Mundial concentram-se totalmente no risco de associação a um país e a uma competição que cometeu vários pecados, diz o diretor do IPAM, recordando as “suspeitas de corrupção na decisão sobre a escolha do país do mundial, as terríveis condições e mortes de trabalhadores na construção dos estádios ou o regime repressivo do Qatar. Tudo problemas sérios que deixam uma grande maioria dos adeptos insatisfeitos”. As vantagens, no entanto, são as próprias de uma competição sem igual: “Uma visibilidade global impossível de alcançar de outra forma, a energia positiva do futebol com as melhores estrelas do mundo e todos os atributos que o futebol tem e proporciona.”
Iranzo Rovira coloca o foco nas vantagens que o patrocínio pode trazer às marcas. “Dada a transcendência do evento e o interregno na maioria das competições de futebol, o foco estará na bola a partir do momento em que esta arrancar no próximo domingo no jogo Qatar-Equador.
Em termos de vantagens, há muitas: desde capitalizar o patrocínio até à notoriedade ou valores de imagem ou mesmo associá-lo a promoções ligadas ao consumo direto”. Quanto aos “mas”, é bastante mais pragmático: “Talvez a principal desvantagem seja o período competitivo, uma vez que é totalmente atípico – um Campeonato do Mundo é normalmente realizado no verão. Este facto significa que a campanha do Campeonato do Mundo coincide no mesmo período com outras campanhas importantes, tais como a Black Friday ou o Natal, o que pode levar a um certo grau de saturação”, aponta o diretor comercial da Nielsen Sports para Espanha e Portugal.
“Mundial da vergonha.” E as marcas?
Neste contexto, como é que as marcas se podem posicionar? Daniel Sá acredita que as marcas vão ser muito cautelosas e vão acompanhar ao minuto cada momento da competição. “Mais do que nunca, as equipas de marketing e comunicação destas marcas vão ter uma espécie de sala de emergência, com profissionais prontos para entrar em ação. Haverá planos A, B, C, D e até retiradas totais em casos extremos. Do ponto de vista comunicacional, vamos assistir a uma longa-metragem, tão interessante como próprio mundial de futebol”, comenta o diretor da escola. O certo é que os patrocínios e apoios à seleção são anteriores e independentes do palco no qual se jogam as competições.
“O Continente é parceiro da FPF há vários anos porque vemos no futebol um sinónimo de entretenimento, festejo e convívio para as famílias portuguesas. Somos patrocinadores da Seleção Nacional Portuguesa, mas não de uma competição em particular, porque vemos nela um símbolo de portugalidade, união, tolerância e de família, perfeitamente alinhado com o posicionamento da marca Continente que, há mais de 35 anos, acompanha os portugueses e tem como missão democratizar o acesso a experiências inesquecíveis, como é o caso de fazer parte de um estádio cheio a apoiar a nossa equipa”, diz ao +M/ECO Tiago Soeiro, brand activation & sponsorship manager do Continente.
“O BPI patrocina as seleções nacionais e não torneios específicos. Patrocina, aliás, independentemente desses torneios, porque a qualificação não está previamente assegurada. E apoiamos não só a seleção A, mas também a de sub 21 e a seleção feminina”, acrescenta Constança Macedo, diretora executiva da direção de comunicação e marca do BPI.
“As ativações que fazemos, normalmente, ocorrem nos jogos de qualificação em Portugal. No que toca a fases finais, a presença das marcas é dominada pelas marcas que apoiam diretamente a FIFA ou a UEFA e nós somos parceiros da Federação Portuguesa de Futebol há mais de dez anos. São muitas fases finais e de qualificação e é um privilégio estar associado a uma marca que é um símbolo de excelência no campo desportivo e social”, comenta, por seu turno, Duarte Guedes, CEO da Hertz.
Já Filipa Appleton, head of brand da Galp, afirma: “A Galp está obviamente atenta a todo o contexto específico que envolve este Mundial e posiciona-se sem hesitações ao lado dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) adotados pelos Estados Membro das Nações Unidas em setembro de 2015. Temos vários rankings e indicadores externos independentes que validam o firme compromisso que temos com os ODS, sejam eles a sustentabilidade, a igualdade de género, a educação, o trabalho digno e o desenvolvimento económico, por exemplo, em todas as atividades que temos e em todas as geografias onde estamos.”
“Não vamos comentar as opções de outras marcas, mas a nossa estratégia é muito clara: toda a nossa campanha está focada no caminho da transição energética e da sustentabilidade, usando como forma de passar a mensagem um apoio de mais de duas décadas à seleção nacional”, prossegue a responsável da Galp.
A Sagres, a mais antiga patrocinadora da seleção, optou por não falar sobre as polémicas que rodeiam o Qatar e os cuidados acrescidos que as marcas devem, ou não, ter na associação a este evento.
Em território nacional, e até esta sexta-feira, apenas a Meo lançou uma campanha que foge ao apoio direto à seleção e troca, nas camisolas amarelas que que fazem lembrar os coletes usados nas obras, o logótipo da operadora pelo artigo 4.º da Declaração Mundial dos Direitos Humanos. “Somos patrocinadores da Seleção Portuguesa de Futebol há mais de duas décadas e estaremos sempre ao seu lado durante este Mundial. Mas há causas maiores que têm de ser relevadas, causas maiores do que qualquer marca, qualquer país ou desporto”, comenta Luíza Galindo, diretora de marketing de comunicação da Meo.
“Pretendemos relevar o contexto de quem viu os seus direitos humanos violados para que a realização deste Mundial pudesse ser uma realidade, mobilizando e sensibilizando a população portuguesa para uma causa comum, promover a necessidade de ajudar as famílias dos trabalhadores que foram vítimas das condições de trabalho sub-humanas no Qatar”, explica sobre a posição assumida pela marca e materializada criativamente pela Partners.
A Meo vai, então, apoiar a Amnistia Internacional enquanto veículo de ajuda às famílias dos milhares de trabalhadores que viram as suas vidas e os seus direitos básicos recusados. Por cada euro doado para este fim, a operadora doa outro.
Decidir como ativar o patrocínio, num contexto impar como o vivido este ano, está como já vimos longe de ser uma decisão fácil e foge aos racionais pelos quais as marcas habitualmente se regem. “O que consigo partilhar é as dúvidas que eu própria teria. Estamos a patrocinar uma seleção, mas num evento que tem o impacto que tem a nível de direitos humanos e ecologia… Deve ter dado algumas insónias. Mas também sei que estas decisões são sempre muito complexas e o facto de dar insónias já é um bom sinal”, comenta Susana Albuquerque, recém-eleita presidente do Clube de Criativos de Portugal e partner e CCO da Uzina.
E que recomendações podem dar os consultores e especialistas às marcas, quando de um lado estão atrocidades e atropelos vários aos direitos humanos e do outro uma audiência ímpar e o território que mais une os portugueses? Mais, e até parece pormenor quando comparado com um número superior a 6.500 mortos, o Mundial é jogado no inverno – o que não promove o convívio e as festas de rua -, num horário pouco prático para a Europa, em cima das campanhas da Black Friday e também do Natal.
“Fazer ativações sob a premissa de diferenciação e engagement com os fãs. Há marcas que, sem serem patrocinadoras diretas do Campeonato do Mundo ou de uma equipa nacional, foram capazes de capitalizar melhor o evento e transcenderam na mente do consumidor graças às suas estratégias de ativação. No ambiente atual, com múltiplos estímulos, captar a atenção dos adeptos é fundamental”, responde Iranzo Rovira.
“A tão poucos dias do início do mundial, faria apenas uma recomendação às marcas: serem autênticas. Não vale a pena mentir, aldrabar, adulterar, disfarçar ou suavizar a atividade das marcas. As marcas são seres vivos, como as pessoas. Independentemente do que suceda no mundial, as marcas devem ser dignas e verdadeiras com os consumidores”, defende por outro lado Daniel Sá. “Se não o forem, os adeptos não as vão perdoar”, remata.
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