Comunicação com propósito: “Os dias em que a única responsabilidade de uma empresa era vender um produto e obter lucro acabaram”
Contribuir para um mundo mais sustentável e inclusivo é também o papel das marcas. Os consumidores valorizam-nos e retribuem, optando pelos seus produtos e serviços. A autenticidade é fundamental.
Natal é tempo de tradições. E é também, tradicionalmente, um dos momentos de comunicação mais importantes do ano, com o espírito da época a convidar à materialização de ideias mais impactantes e que façam, ou tentem fazer, a diferença. Pode ser também um dos momentos em que, mais do que comunicar produtos, serviços ou até marca, os anunciantes investem em dar espaço a temas sociais ou mais fraturantes, associando-se assim às causas que querem abraçar.
Este Natal, um dos melhores exemplos vem do país vizinho, com a J&B Espanha a endereçar uma das campanhas mais mediáticas da quadra. Trata-se do filme She, um Conto de J&B, assinado pela El Ruso de Rocky, e protagonizado por Ella Di Amore, artista que tem sido uma das vozes da comunidade LGBTQIA+ em Espanha. A aceitação, neste caso no seio da família, é aqui a principal mensagem.
Em Portugal, e com poucos dias de diferença, os exemplos surgem das operadoras de telecomunicações, com os filmes da Nos – Neste Natal, ofereça atenção –, da Meo – Todos temos direito às diferenças e que isto não faça diferença – e da Vodafone – Partilha o que estás a sentir –, a alertarem para a questão da solidão, para a importância da aceitação das diferenças e para os problemas de saúde mental, e em particular entre os jovens.
“As marcas procuram sempre acrescentar valor à vida das pessoas. Esse valor pode ter múltiplas formas. Em tempos difíceis, do ponto de vista económico e social, há muitas oportunidades para ajudar. É tudo uma questão de perceber como é que o podem fazer. E após dois anos de pandemia, alguns problemas sociais emergiram e as marcas, cada vez mais atentas à vida das pessoas, identificaram estes como temas estruturantes”, responde Manuela Botelho, secretária-geral da Associação Portuguesa de Anunciantes (APAN), quando lhe é pedido para comentar a escolha destes temas. “As marcas, ao usarem a sua posição e recursos para darem foco a estas questões, evidenciam a sua responsabilidade social, os seus valores”.
Ainda há alguma resistência em falar sobre estas questões. As marcas dão um importante contributo para que quem se sente afetado possa falar sem constrangimentos, ao sentir que não está sozinho”, acrescenta Ana Paula Costa, representante em Portugal dos festivais Lions.
O que é preciso ter em conta, depois, é a continuidade que as marcas vão dar a estes temas que continuarão a existir quando o Natal terminar. Vão investir esforço a apoiar associações que trabalhem estas questões? Vão contribuir para disponibilizar apoios? Vão promover a informação e o debate? Ou foi uma opção meramente sazonal e tática?
“A solidão, a depressão e a inclusão são três temas sociais que fazem sentido abordar nesta altura de Natal. Uma altura feliz para a maioria das pessoas, mas também a altura em que quem se sente excluído, sente mais do que nunca”, acrescenta ainda sobre a pertinência destes temas Teresa Pinto Leite, sócia e diretora criativa da TTouch, agência lançada há dois anos e orientada para trabalhar o impacto social das marcas.
Temas que fazem match com os serviços das operadoras. “É uma escolha orgânica, na medida em que são todas questões que se podem resolver, ou minimizar, se comunicarmos mais e, nesse sentido, é pertinente que empresas da área de telecomunicações, as abordem”, prossegue Teresa Pinto Leite. “O que é preciso ter em conta, depois, é a continuidade que as marcas vão dar a estes temas que continuarão a existir quando o Natal terminar. Vão investir esforço a apoiar associações que trabalhem estas questões? Vão contribuir para disponibilizar apoios? Vão promover a informação e o debate? Ou foi uma opção meramente sazonal e tática?”, questiona, dando também a resposta: “Sendo as marcas em questão Meo, Vodafone e Nos, certamente será mais do que isso”.
Devido à falta de confiança crescente nos líderes políticos, na sua capacidade em resolver os problemas sociais, que afetam o dia a dia das comunidades, as pessoas viram-se agora para as marcas. Sentem que o seu poder de compra importa e respondem com a carteira às empresas que verdadeiramente são percepcionadas ou não, como tendo preocupações de sustentabilidade social e ambiental”
E a questão é que das marcas já se exige mais do que publicidade. “A grande questão é se os temas vão apenas dar o mote para uma campanha de Natal ou se revelam uma genuína preocupação social destas marcas. Se os temas apenas estiverem a ser explorados para fins de comunicação, então as marcas perdem uma oportunidade de ter um real impacto no contributo para uma sociedade melhor e a oportunidade para criarem ligações autênticas com os consumidores que valorizam o abordar destes temas”, justifica Fernando Santos, professor adjunto e diretor do mestrado Global e do mestrado em Marketing e Tecnologia no IPAM.
“Num mundo cada vez mais globalizado e conectado, mas também mais fragmentado e com desafios ambientais, sociais, políticos e económicos em rápido crescimento, o que se espera das marcas, e das empresas por detrás destas, é que tenham um papel empenhado e genuíno em soluções que possam ajudar a resolver os problemas existentes. O papel das marcas na sociedade é ter os outros em consideração e ambicionar criar valor não só para os que investem na marca, mas também para os demais na sociedade: consumidores, parceiros, comunidades”, prossegue o professor do IPAM.
Ana Paula Costa, lembrando que “os dias em que a única responsabilidade de uma empresa era vender um produto e obter lucro acabaram”, dá exemplos concretos. A Unilever, com a campanha da Dove Real Beauty, onde se posicionou contra a falsa imagem de beleza que se instalou na sociedade; a Starbucks, que estabelece parcerias com universidades de forma a possibilitar que jovens sem recursos possam aceder ao ensino superior; a cerveja Michaelob Ultra, da AB Inbev , que ganhou este ano em Cannes o Grande Prémio de eficácia, com a campanha The Contract for Change”, onde se comprometeu em ajudar financeiramente os agricultores de cereais norte-americanos, no processo de transformação das suas terras, em campos biologicamente sustentáveis.
“Devido à falta de confiança crescente nos líderes políticos, na sua capacidade em resolver os problemas sociais, que afetam o dia-a-dia das comunidades, as pessoas viram-se agora para as marcas. Sentem que o seu poder de compra importa e respondem com a carteira às empresas que verdadeiramente são percecionadas ou não, como tendo preocupações de sustentabilidade social e ambiental”, defende a responsável em Portugal do maior festival de criatividade do mundo.
Há, no entanto, cuidados a ter nas causas que as marcas escolhem apoiar. “Têm que fazer sentido no território da marca, têm que ter uma forte coerência com os seus valores, com a forma como operam no mercado, sob pena de produzir efeitos contrários aos pretendidos”, alerta Ana Paula Costa.
O papel das marcas na sociedade é ter os outros em consideração e ambicionar criar valor não só para os que investem na marca, mas também para os demais na sociedade: consumidores, parceiros, comunidades
Os seguidores das marcas “têm tolerância zero, caso se sintam manipulados ou enganados. São cada vez mais escrupulosos e exigem cada vez mais walk the talk. As marcas têm de ser absolutamente verdadeiras e coerentes entre o que são e o que dizem. A escolha das suas bandeiras deve ser orgânica e em absoluta sintonia com a sua área de atuação, em detrimento de tática, que serve mais para aproveitar a oportunidade do momento” concorda Teresa Pinto leite.
Quais são os erros a evitar quando se abordam temas sociais? Há territórios proibidos para determinado perfil de marca? Todos os tipos de “washing”, responde a diretora criativa da TTouch. “Não há territórios proibidos, desde que correspondam à realidade e sejam trabalhados de forma séria e consistente. Para isso é importante, um compromisso sério e uma comunicação concreta, que se consiga provar, não evasiva e generalista”.
Ou seja, não é dizer “preocupamo-nos com o ambiente” ou comunicar falsos trade-offs, como uma gasolineira dizer que compensa as emissões carbónicas quando a sua ação tem um impacto muito mais negativo a longo prazo; e ser incoerente, como uma marca de cerveja comunicar abertamente que é contra o mundial do Qatar, porque é o que é suposto, e ter os seus produtos a vender lá”, concretiza.
Autenticidade é a palavra-chave, sublinha Manuela Botelho. Assim, “é importante que as marcas que estão a pensar posicionar-se em questões sociais abordem aquelas que mais impactam os seus clientes e são relevantes para os seus valores”, diz, lembrando que se o marketing e a publicidade podem funcionar como um acelerador do progresso social, “então o segredo é identificar os setores da sociedade que não estão a ser ouvidos, e que precisam, e perceber se eles se alinham com as questões centrais da sua marca, pois só assim é possível fazerem-no com autenticidade”.
“Devem também dar corpo às suas palavras com ações reais e tangíveis, para mostrar aos consumidores que não é apenas conversa”, acrescenta a representante dos anunciantes.
Embora as marcas possam não ser os líderes da mudança social, quando existe suficiente apoio público para questões que se alinhem com os valores centrais das empresas, o risco de se assumir posições é superado pela recompensa, e a publicidade pode funcionar como um acelerador do progresso social
E, no contexto que vivemos, é expectável uma maior ligação das marcas a causas sociais? “No contexto que vivemos de crise ambiental e económica, guerra, inflação, pobreza alimentar e energética, etc., as marcas não têm só necessidade de contribuir, têm obrigação. Devem assumir o seu papel de agente social de forma séria e profunda. Não apenas a nível da comunicação, mas em todo o seu ser”, acredita Teresa Pinto Leite.
“Há atualmente muitos temas importantes em cima da mesa a que as marcas podem e devem associar-se contribuindo ativamente para um mundo mais sustentável, diverso, inclusivo e onde se consiga um maior sentido de pertença”, acredita Manuela Botelho.
“Embora as marcas possam não ser os líderes da mudança social, quando existe suficiente apoio público para questões que se alinhem com os valores centrais das empresas, o risco de se assumir posições é superado pela recompensa, e a publicidade pode funcionar como um acelerador do progresso social”, defende a secretária-geral da APAN, afirmando que “a tendência é termos uma comunicação mais humanizada, mais centrada nas necessidades das pessoas e que façam a diferença nas suas vidas”.
A cereja no cimo do bolo pode converter-se em eficácia. “Há uma relação emocional à marca que se torna mais forte associando-a a um contributo positivo para a sociedade e, com isso, relevante para a minha vida. Vai haver uma maior lealdade”, assegura a responsável da TTouch. “Uma comunicação baseada em valores é tão eficaz quanto a comunicação baseada em produtos para impulsionar a intenção de compra”, resume Ana Paula Costa.
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