Black Friday: ruído que sufoca as marcas

  • Filipa Teixeira
  • 10:44

Talvez seja este o verdadeiro sentido da Black Friday. Não o consumo frenético que vemos, mas a possibilidade de escolher com consciência, em vez de comprar por impulso.

Todos os anos acontece o mesmo. Chega novembro e a comunicação das marcas transforma-se num megafone descontrolado. Tudo é urgência. Tudo é desconto. Tudo é “última oportunidade”. De repente, tanto faz se é uma startup sustentável ou um pequeno negócio local. Falam todas da mesma maneira. Gritam todas o mesmo. E perdem a própria voz no processo.

O mais curioso é que esta saturação não acontece só com marcas. Atinge influenciadores, criadores de conteúdo, equipas de social media. O feed fica todo igual: uma corrida para ver quem grita mais alto sobre promoções. Fica tudo tão barulhento que deixa de se ouvir alguma coisa útil. Deixa de haver propósito. Fica só ruído.

Mas há aqui algo mais profundo que vale a pena reconhecer. Somos treinados para isto. O capitalismo convenceu-nos de que precisamos de consumir constantemente, comprar novidades, acumular coisas que não fazem falta para ter pequenas injeções de dopamina que aliviam a exaustão de trabalharmos sem parar para as comprar. É um círculo vicioso. E o mais irónico é perceber que muitos dos problemas que depois tentamos compensar com essas compras são criados pelo próprio sistema que nos vende as soluções.

No meio deste loop, chega a Black Friday e tudo se intensifica. Um dia que, dependendo da versão da história, tanto pode ter estado ligado ao crash de Wall Street nos anos 60, ao caos do trânsito após o Thanksgiving, ao arranque das compras de Natal ou até à falsa narrativa da escravatura americana, rapidamente desmentida em fact-check. Qualquer que seja a origem, o resultado é sempre o mesmo. Transformou-se numa celebração global do consumismo, em que se espera que as marcas façam parte e que os consumidores participem.

E atenção: para as marcas, a Black Friday é um terreno fértil. Para todas. Mas para o consumidor nem sempre é o jackpot que parece. Vale a pena parar um segundo e olhar para o carrinho. Quantas destas coisas fazem mesmo falta? Quantas entraram ali só porque o preço caiu quarenta, cinquenta, setenta por cento? E quantas são ilusões de desconto, depois de meses a subir o preço, com passos tão pequenos que quase ninguém repara? É assim que se empurra quantidade sobre qualidade, até criarmos mais lixo em dois dias do que nos restantes meses. Achamos que estamos a aproveitar uma oportunidade gigante, quando na verdade estamos só a carregar combustível num ciclo que não nos devolve nada.

Enquanto isto, vemos marcas que durante o ano inteiro comunicam com cuidado, rigor e consistência a cederem a uma linguagem que não é a delas. Fazem-no pelo mesmo motivo que tantas outras o fazem. Porque é aquilo que se espera. Porque é aquilo que todas fazem. Porque há medo de ficar de fora. Mas ficar de fora pode ser exatamente o que as faria ficar dentro.

Assistimos à mesma incoerência noutras efemérides importadas do estrangeiro. No Pride Month, surgem marcas que nunca tocaram no tema a pôr a bandeira arco-íris na sua fotografia de perfil. No Dia da Mulher, marcas que nunca falaram para mulheres tornam tudo pink durante 24 horas. Agora, na Black Friday, há marcas que nunca competiram pelo preço a tentarem vender-se através de grandes deals. Sem contexto. Sem alinhamento. Sem estratégia.

A verdade é simples e não precisa de decorações. Quando todas as marcas comunicam igual, ninguém se distingue. Quando todas seguem o mesmo guião, ninguém marca posição. E quando uma marca troca a sua voz por uma linguagem que nem é dela só para não perder o comboio, perde muito mais do que um fim de semana de vendas. Perde credibilidade. Perde rumo. Perde aquilo que a torna reconhecível.

No fim do dia, é isto que conta. Marcas e consumidores precisam de olhar com mais atenção para onde colocam o dinheiro, o tempo e a intenção. Cada decisão tem um efeito real, mesmo quando fingimos que não. E continuamos a comportar-nos como se tivéssemos vários planetas de reserva para suportar este ritmo. Não temos. O mínimo que podemos fazer é pensar antes de repetir mais um impulso que só existe porque alguém decidiu que novembro é sinónimo de urgência.

E talvez esteja na hora de as marcas aceitarem uma realidade simples. Vender mais a qualquer custo não é estratégia. É curto prazo disfarçado de ambição. A identidade não é um acessório para se largar sempre que aparece uma efeméride conveniente. É o que sustenta tudo. Uma marca que sabe quem é não precisa de gritar para ser ouvida. E um consumidor que sabe o que quer não precisa de correr atrás de descontos como se fossem bússolas. Porque não são.

Talvez seja este o verdadeiro sentido da Black Friday. Não o consumo frenético que vemos, mas a possibilidade de escolher com consciência, em vez de comprar por impulso.

  • Filipa Teixeira
  • Head of consumer & lifestyle na Guess What

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