Com a verdade me enganas

  • Pedro Pimentel
  • 12:34

Diz o ditado que “quando a esmola é grande, o pobre desconfia”, mas, em boa verdade, o consumidor desconfia pouco ou, pelo menos, questiona poucas vezes.

É possível um conjunto de dados bem estruturados e que não levantam dúvidas gerar a conclusões que estão condicionadas pelo enviesamento de um mercado altamente competitivo, mas, simultaneamente, cada vez mais afunilado por modelos de negócio que tendem a limitar a escolha do consumidor?

No último mês, foi divulgado um estudo intitulado “A Visão do Consumidor sobre Marcas de Distribuição e de Fornecedor”, da autoria da More Results. Um estudo bem construído e apresentado, sustentado numa amostra representativa dos consumidores portugueses e que se desdobra entre a análise do cabaz de compras dos portugueses, os fatores relevantes que conduzem às respetivas escolhas e, nestas, como se desenvolvem as preferências entre as Marcas de Distribuidor (MDD) e as Marcas de Fabricante (MDF), o papel da publicidade e da comunicação comercial em geral, a importância crescente da sustentabilidade e quais os perfis mais significativos em que o consumidor pode ser enquadrado.

Um estudo mais que vem afirmar a preferência crescente dos consumidores portugueses pelas marcas próprias. Mas essa preferência é genuína e inequívoca ou é amplamente condicionada pelas estratégias comerciais dos diferentes operadores? Ora vejamos…

Como o próprio estudo refere na sua introdução, “quantas mais perguntas fazemos, mais questões surgem”. Contudo, o retrato apresentado contém alguns aspetos inquestionáveis como os que indicam que as compras FMCG dos consumidores em Portugal são, na sua larguíssima maioria, realizadas em lojas do chamado retalho moderno, independentemente da sua dimensão e que, considerando, os volumes comprados, três em cada cinco produtos são das chamadas MDD.

Dentro das grandes famílias de produtos, as compras de MDD são especialmente elevadas em categorias como Mercearia, Congelados ou Higiene Lar, sendo nas restantes razoavelmente distribuídas entre as duas tipologias de produtos.

Naquelas categorias e, em boa verdade, em todas as outras, a compra é empurrada pelo preço mais baixo, que com diferenciais de qualidade que o consumidor não considera como excessivamente distantes, conduz –- para uma parcela relevante dos consumidores — a um custo-benefício mais favorável.

Nalgumas categorias, o consumidor adiciona àqueles critérios a perceção, correta ou não, de que, em muitos casos, o fabricante de produtos MDF e MDD é o mesmo. Noutras, por identificação no produto ou por associação de ideias, as MDD dão ao consumidor o conforto da origem, aspeto relevante seja do ponto de vista de associação a critérios de sustentabilidade, seja do que poderíamos designar como ‘compra patriótica’ a que o consumidor é especialmente sensível em períodos de maiores dificuldades económicas.

Do ponto de vista de comunicação comercial, o estudo indica que “a publicidade aparenta não ser um fator determinante na escolha dos consumidores, com 90% destes a indicar que tem pouco (50%) ou nenhum impacto (40%) nas suas decisões de compra”, mas por outros indicadores percebe-se que a comunicação é fundamental para dar a conhecer os produtos e para convidar à experimentação. A ativação no ponto de venda, mesmo que de forma não verbalizada, exerce um impacto significativo na decisão de compra e, por razões que, diria, óbvias, mais significativo ainda no caso das marcas de fabricante.

Por outro lado, “a sustentabilidade é um tema de crescente importância para muitos consumidores, especialmente no que diz respeito à origem dos produtos, com uma preferência incremental por produtos nacionais” e por produtos ‘amigos-do-ambiente’, contribuindo para a experimentação e para a fidelização do consumidor, sem que seja clara uma tendência mais favorável às marcas dos distribuidores ou dos fabricantes.

Ainda assim, a sustentabilidade contribui para a definição de um perfil específico do consumidor que corresponde a pouco mais de um quinto da amostra, um outro quinto refere-se aos consumidores que dão primazia aos temas da qualidade (que mistura também confiança e experimentação), sendo o ‘bolo’ maior dos consumidores em que a equação económica comanda e condiciona claramente as escolhas.

Este estudo não difere substancialmente de um outro realizado pela Marktest para a Centromarca no primeiro semestre de 2023 e chega –- grosso modo -– a conclusões similares, desde logo que a escolha assenta em quatro drivers básicos — preço, qualidade, confiança e mecânicas promocionais — e que quando a qualidade e a confiança não desmerecem, o preço assume o comando da equação.

Na verdade, o estudo confirma — como não poderia deixar de confirmar — que “na perceção dos consumidores, as MDD apresentam uma grande vantagem em termos de preço”, vantagem que acaba por condicionar, em larguíssima medida, todo o processo de escolha.

Tentando aprofundar para lá das perceções e juntando o funcionamento efetivo do mercado aos fatores que impactam cada um de nós, quando nos colocamos nas vestes de consumidor, vale a pena referir que, sim, a quase totalidade dos produtos das marcas de distribuidor (MDD) são laborados por fornecedores exteriores ao retalho. Algumas empresas líderes, várias empresas de segunda e terceira linhas, muitas empresas que se dedicam exclusivamente ao fabrico de marcas próprias da distribuição.

Por isso, é claramente exagerado afirmar que os produtos MDD são SEMPRE fabricados pelas marcas líderes. Reforçar essa perceção com a recorrente utilização de uma imagem tão próxima quanto possível daquelas marcas ajuda a ‘vender’ esta ideia e a criar um pressuposto de ‘igualização’ que, em boa verdade, não se verifica para uma larga maioria das marcas próprias presentes no mercado. Essa confirmação pode ser encontrada, com relativa facilidade, nos retalhistas que identificam claramente os fornecedores dos seus produtos e esta é também uma das razões por que, de há muito defendemos, um melhor enquadramento legal do combate às chamadas ‘cópias parasitárias’.

Por outro lado, o diferencial de preços de prateleira entre as marcas de fabricante e as marcas de distribuição é encurtado através da realização sistemática de ações promocionais sobre os produtos daquelas primeiras marcas. Quando o gap de preços é substancialmente menor, a equação de valor e a referida avaliação custo/benefício assume diferentes contornos e permite aos consumidores retomar o consumo das suas marcas e produtos favoritos, dos quais poderá estar mais afastado em função do seu contexto económico individual.

Apesar da forte promo dependência do mercado nacional, o consumidor não deixa de considerar a possibilidade de adquirir um produto ou marca a preço promocional como uma situação pontual e acaba por ajudar a confirmar a superioridade-preço, na base, dos produtos MDD. Por outro lado, são cada vez mais frequentes as ações promocionais realizadas pelos retalhistas relativamente aos seus próprios produtos (prática relativamente recente), gerando a ideia de que os preços mais baixos das marcas próprias podem ainda ser reduzidos e reforçando a capacidade de agravar aqueles diferenciais de preços de prateleira.

Na prática, o consumidor assume esse diferencial de preço entre MDD e MDF, incorpora-o na sua decisão de compra, constrói com base nesse gap a sua perceção de superioridade-preço, mas, muito raramente, se questiona sobre as razões efetivas que geram esse mesmo diferencial.

Produtos com qualidade muito próxima, funcionalidade inquestionável, boa qualidade de packaging e imagem igualmente atrativa, podem ostentar diferenciais de preços de prateleira tão brutalmente elevados? De acordo com um outro estudo levado a cabo pela FI Consulting para a Centromarca, igualmente realizado no primeiro semestre de 2023, aquele gap pode variar entre os 40% e uns estratosféricos 320%.

Resultará esse diferencial de preço de um efetivo diferencial de custo entre uns produtos e outros?

Podem produtos com qualidade percebida bastante próxima ter diferenciais de custos tão amplos como os que sugerem os diferenciais de preços nas prateleiras?

Resultará esse diferencial de uma muito melhor capacidade de aprovisionamento e de escala na compra, mesmo quando os volumes comprados às marcas líderes são igualmente de dimensão muito relevante?

Podem estruturas de custos mais encurtadas (a quase totalidade do investimento em inovação, comunicação e experimentação é realizado pelas marcas) gerar diferenciais de preços nas prateleiras tão significativos?

Estes fatores correspondem à parte de leão do gap entre produtos ou estaremos, antes de mais, perante uma estratégia comercial que conduz a esse gap, seja por diferenciais das margens comerciais aplicadas a cada tipologia de produtos, seja por mecanismos de subsidiação cruzada que permitem criar preços de venda ao público tão distintos?

Diz o ditado popular que “quando a esmola é grande, o pobre desconfia”, mas, em boa verdade, o consumidor desconfia pouco ou, pelo menos, questiona poucas vezes o porquê dessa superioridade de preço tão evidente de produtos que, tendencialmente, se aproximam mais e mais a nível de qualidade ou embalagem.

Referência também para um outro fator que afetando a perceção do consumidor e contribuindo para a constatação da superioridade das marcas de distribuidor (MDD), acaba por merecer uma atenção menor de quem analisa exteriormente este mercado: a disponibilidade.

A evolução dos modelos de negócio — com o forte crescimento do chamado ‘retalho de sortido curto’ — e das tipologias de espaço comercial, com a multiplicação das chamadas lojas de proximidade (amplamente fomentada pelas políticas de expansão do retalho moderno, com as suas próprias insígnias e com modelos de franquia), gera uma redução substancial do espaço de prateleira a que as marcas de fabricante têm acesso, seja por encurtamento efetivo (no caso das lojas de proximidade) seja pela sua substituição quase total por marca própria (no caso do retalho de sortido curto).

Utilizando novamente um ditado popular, é usual dizer-se que “longe da vista, longe do coração” e, realmente, se nos espaços comerciais onde fazemos as nossas compras o número de marcas de fabricante é cada vez mais curto e para muitas famílias de produtos as alternativas nos lineares se resumem aos produtos de marca própria, logo o consumidor é claramente empurrado para a sua experimentação, a sua escolha e a sua aquisição.

É certo que o consumidor pode procurar as suas marcas favoritas em lojas com sortidos mais alargados, mas tal implica um ‘investimento’ em tempo, em mobilidade, em circulação que nem sempre estamos disponíveis para realizar. E, igualmente, por esta via, se vai consolidando aquela perceção, num ciclo cada vez mais difícil de quebrar.

Um ciclo que apenas pode ser interrompido se o consumidor perceber que as marcas de fabricante lhe trazem novos produtos, diferenciação e, especialmente, uma inovação relevante. Apenas pode ser interrompido se o consumidor perceber que aquelas marcas apostam numa comunicação criativa, assertiva e que toque nos seus valores e prioridades. Apenas pode ser interrompido se o consumidor sentir que o diferencial de preços entre produtos MDD e MDF é mais curto e mais próximo dos diferenciais reais entre aquelas tipologias de bens.

Apenas pode ser interrompido se o consumidor perceber que a experiência de compra que lhe é proporcionada supera a simplicidade e o pragmatismo que, supostamente, lhe é oferecido pela marca própria. Apenas pode ser interrompido se, finalmente, o consumidor perceber que estas marcas conseguem superar as barreiras atuais e conseguem estar presentes nos seus locais mais usuais de aquisição, acompanhando a sua jornada de compra e não os obrigando a fugir das suas rotinas habituais.

  • Pedro Pimentel
  • Diretor-geral da Centromarca

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