
Não basta contar mulheres
A comunicação pode ser uma ferramenta de progresso ou um instrumento de disfarce, dependendo da intenção e do poder real que acompanha essa representação.
A presença de mulheres na política tem vindo a aumentar em partidos de todo o espectro ideológico. Este crescimento, embora possa parecer um sinal de progresso, nem sempre corresponde a uma transformação estrutural do poder. Em muitos casos, a visibilidade feminina serve mais como estratégia de comunicação do que como reflexo de verdadeira emancipação política.
No caso português, este fenómeno é particularmente visível num partido que combina um discurso autoritário com uma comunicação fortemente visual e emocional. O Chega elegeu 18 deputadas num total de 60 mandatos. Entre elas, destaca-se Rita Matias, reeleita por Setúbal e agora candidata à Câmara Municipal de Sintra. Jovem, mediática e combativa, é uma das figuras mais visíveis do partido. A sua imagem serve para suavizar posições radicais, construir empatia e captar eleitorado jovem e feminino. No entanto, esse mesmo partido opõe-se à legislação para a igualdade de género, à criminalização eficaz da violência doméstica e à própria ideia de paridade. O contraste entre forma e conteúdo é evidente e revela uma gestão cuidada da comunicação para fins eleitorais.
Contudo, esta realidade não é exclusiva da extrema-direita. Em Portugal, o uso simbólico da mulher existe de forma diferenciada, mas estrutural, em toda a paisagem política. Como, o Partido Socialista, um dos maiores partidos do arco da governação que, em 50 anos de democracia, nunca teve uma mulher candidata à sua liderança. Numa sociedade em que mais de metade do eleitorado é feminino, essa ausência também é sintomática. Em 2025, essa ausência permanece inalterada, mesmo após a renovação dos quadros parlamentares e do crescimento das lideranças femininas em movimentos cívicos e no ativismo de base. A omissão é tanto mais gritante quanto mais se enaltecem os valores da igualdade e da modernidade. O silêncio comunica e, neste caso, o que comunica é a persistência de um modelo de poder profundamente masculino, mesmo quando travestido de progresso.
A exceção continua a ser tratada como exceção, e não como norma em construção. A paridade serve muitas vezes de biombo para evitar uma mudança mais profunda, aquela que obriga a redistribuir realmente o poder.
A nível internacional, a lógica é semelhante. A promoção de mulheres a posições de visibilidade tem sido utilizada como ferramenta para reforçar a imagem pública de partidos de direita radical, projetando moderação, sensibilidade e proximidade. Michelle Bolsonaro foi figura-chave na campanha presidencial de Jair Bolsonaro, em 2022, mobilizando o eleitorado feminino com uma retórica emocional e de valores familiares. Donald Trump recorre a mulheres como porta-vozes eficazes, empáticas e combativas, mesmo quando defendem políticas que restringem direitos das próprias mulheres. Entre 2019 e 2024, o apoio feminino ao partido de Marine Le Pen aumentou significativamente, fruto de uma comunicação eficaz que cruzou segurança, identidade e valores tradicionais com uma presença feminina ativa e visível.
Este não é um fenómeno isolado, nem exclusivo de um país. Trata-se de uma técnica de comunicação política sofisticada, que explora os códigos visuais e discursivos do feminismo para promover agendas conservadoras, moldando perceções públicas. É o “femonacionalismo”, a apropriação do discurso feminista para fins nacionalistas e conservadores. A estratégia é clara, usar o feminino como escudo simbólico para tornar ideias radicais mais aceitáveis. A mulher continua muitas vezes a ser usada como recurso comunicacional e não como agente transformador. Em 2025, assistimos em Portugal e na Europa a um fenómeno transversal, mulheres a liderar listas, a protagonizar campanhas, a figurar em cartazes, mas sem acesso proporcional aos centros reais de decisão.
Num sistema político cada vez mais mediático e marcado pela velocidade da perceção pública, a representação feminina pode servir para ocultar a continuidade das hierarquias de sempre. A imagem da mulher política, jovem, competente e próxima tornou-se um símbolo poderoso de empatia e modernidade, mas o seu poder nos processos de decisão permanece inalterado. A excecionalidade com que se celebram mulheres em lugares de destaque, como se bastasse a sua presença para garantir progresso, revela o quão longe ainda estamos da normalização da igualdade no exercício do poder.
É aqui que a comunicação se revela decisiva, cada rosto destacado, cada omissão, cada narrativa molda o espaço político e influencia votos.
Não basta contar mulheres, é preciso perguntar quem tem voz, quem toma decisões e quem continua, afinal, a ser apenas representada. A comunicação pode ser uma ferramenta de progresso ou um instrumento de disfarce, dependendo da intenção e do poder real que acompanha essa representação.
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