O fim da nossa profissão

  • Marcelo Lourenço
  • 10 Outubro 2025

Se Shakespeare se guiasse pelo Google Analytics, Romeo e Julieta nunca acabaria com o casal de jovens apaixonados a morrer no final. E a peça mais famosa (e corajosa) de todos os tempos não existiria.

A notícia saiu na Advertising Age e ninguém deu muita bola. Uma empresa americana de advogados (The Barnes Firm) lançou um espetacular anúncio de TV, mostrando um carro a andar velozmente por uma estrada. O condutor, distraído, não percebe que, no cruzamento, vem outro carro, com uma família.

O acidente é inevitável. Mas, de repente, o tempo para — tudo fica congelado, menos os dois condutores. O homem que estava a conduzir em alta velocidade sai do carro. O condutor que leva a família no outro carro também. Os dois encontram-se no meio da estrada. O condutor que leva a família implora ao outro que meta o pé no travão, que impeça o acidente.

“Impossível” — diz o primeiro condutor — “vou depressa demais”.

“Mas o meu miúdo está no banco de trás”, diz o pai de família do outro carro.

Os dois condutores retornam aos seus veículos, o filme volta à velocidade normal e, o acidente acontece. Quando os carros se chocam, corta para o packshot, apelando a uma condução mais responsável, sem excessos de velocidade.

Um grande anúncio: impactante, humano, inesquecível.

Só há um problema: o filme é uma cópia, plano a plano, do anúncio “Mistakes”, feito em 2014 pela New Zealand Transport Agency.

Alguns poderiam pensar que os americanos não conheciam esta campanha — o que é um pouco difícil, visto que “Mistakes” ganhou, entre muitos outros prémios, um Leão de Ouro no Festival de Cannes.

A Advertising Age decidiu acabar com a dúvida e foi falar com a empresa de advogados responsável pelo anúncio-cópia.

E a resposta é assustadora: sim, conheciam o anúncio neozelandês.
Sim, é uma cópia, plano a plano, da campanha que havia ganho o Leão.

E explicam o motivo com uma candura horripilante: fizeram uma pesquisa, e o algoritmo lhes disse quais eram as melhores campanhas de prevenção rodoviária de sempre — e o anúncio neozelandês estava no topo da lista.

Então, sem o menor medo de ser feliz, decidiram copiar o anúncio.

Não pensaram que seria imoral roubar a ideia dos outros.
Não desconversaram.
Não disseram que foi coincidência.
Não pediram desculpas.

Simplesmente assumiram, orgulhosamente, a cópia.

Poderia ser apenas uma prova da falta de caráter das pessoas à frente da marca — mas acho que é algo ainda pior: é uma nova tendência na nossa indústria, onde a originalidade da ideia não é assim tão importante.

Mais: é algo pouco recomendável.

É um sintoma do que vem acontecendo há anos.

Trabalhei com alguns criativos nascidos e criados na era das “boas práticas do digital” que, simplesmente, não acreditam que copiar uma ideia seja errado.

Apresentavam, por exemplo, uma campanha da Nike e diziam:
“Esta é a campanha. Vamos fazer exatamente isso.”
E depois explicavam, vitoriosos: “Essa campanha nunca foi feita cá.”

Neste novo mundo em que o algoritmo é o novo diretor criativo, grande parte da nossa indústria está empenhada em fazer campanhas apostando só no que deu certo, no que já foi feito — em ideias que não são ideias, são “trends” feitas por outras marcas, em outras campanhas, para outros clientes.

O resultado: as campanhas ficam todas iguais.

E, para fazer isso, ninguém melhor do que a Inteligência Artificial — especialista em reproduzir o que já foi feito, no que já deu certo — em fazer um remix de tudo o que está para trás e vomitar uma excelente cópia do que existiu de melhor no passado.

Uma grande ideia, criativa de verdade, envolve risco.

É fazer aquilo que não sabemos se vai dar certo, algo que o algoritmo não consegue prever — porque na originalidade de verdade, não há precedentes.

Se Shakespeare se guiasse estritamente pelo Google Analytics, “Romeo e Julieta” nunca acabaria com o casal de jovens apaixonados a morrer no final — já que as boas práticas do romance, até então, recomendam o final feliz, o clássico “e viveram felizes para sempre”.

E a peça mais famosa (e corajosa) de todos os tempos não existiria.

A Advertising Age decidiu falar também com a Clemenger BBDO, a agência responsável pelo spot original, copiado sem a menor vergonha pelos americanos.

A resposta veio nas palavras de Chris Beresford-Hill, global chief creative officer da BBDO: “Não sabemos direito o que fazer quando, de todas as empresas possíveis, é uma empresa de advogados que rouba as nossas ideias sem o menor peso na consciência.”

Se o senhor Beresford-Hill estiver certo, e não houver mesmo nada a fazer, será, certamente, o fim da nossa profissão, e seremos todos substituídos pelo IA.

  • Marcelo Lourenço
  • Co-fundador da Coming Soon Lisboa

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