
Todos odeiam a classe média
A elasticidade revela uma estratégia recorrente, escolher termos amplos, emocionalmente carregados e dificilmente contestáveis. Classe média” funciona como um manto ilusório, mas vazio de precisão.
Todos odeiam a classe média. Os políticos, porque a transformam em bandeira retórica. As elites, porque a consideram um entrave. Os mais pobres, porque a percebem como privilegiada. E os que nela se revêm, porque vivem na frustração de promessas que nunca se cumprem.
A categoria “classe média” tornou-se a mais invocada no debate público português e, paradoxalmente, a menos protegida. É ilusória nas perceções, quase todos acreditam pertencer-lhe. É maleável no plano político, cada governo redefine-a conforme a conveniência. E é vulnerável no plano material, com salários limitados, custos fixos elevados, habitação incomportável e escassa margem de resiliência. Este é um exemplo claro de como as palavras importam, o termo cria a sensação de proteção sem que nada de concreto seja garantido.
O anúncio do programa de rendas moderadas em setembro de 2025 ilustra bem este paradoxo. O Governo fixou o valor de 2300 euros como teto para a renda considerada “moderada”, abandonando a noção anterior de “renda acessível”, que passou praticamente despercebida, mas traduz um reposicionamento comunicacional relevante, de promessa de acesso mais amplo à habitação, passou-se a uma medida restrita a uma faixa limitada da população. A medida foi apresentada como resposta às dificuldades da classe média. Mas para grande parte das famílias, que já destinam mais de 40% do rendimento à habitação, este valor está fora do alcance. O que se prometia como solução tornou-se, afinal, símbolo de exclusão.
Cada político molda o conceito conforme a conveniência eleitoral, prometendo proteger ou aliviar a “classe média” sem nunca definir quem nela se inclui. Assim, o termo esvazia-se, servindo mais como bandeira discursiva do que como categoria social rigorosa.
Este desfasamento entre discurso e prática expõe os riscos de um conceito demasiado elástico. Quando “classe média” serve para englobar quem ganha 1000 ou 2200 euros, perde-se a noção das diferenças reais. Ao diluir desigualdades internas, a categoria legitima políticas que, em vez de responderem às necessidades da maioria, favorecem apenas os segmentos superiores do grupo. O resultado é o ressentimento social.
Do ponto de vista da comunicação, esta elasticidade revela uma estratégia recorrente, escolher termos amplos, emocionalmente carregados e dificilmente contestáveis. “Classe média” funciona como um manto ilusório, mas vazio de precisão. O efeito imediato é político; o efeito prolongado é corrosivo, quando as palavras deixam de corresponder à experiência concreta, os cidadãos afastam-se da narrativa oficial e perdem confiança na mensagem.
Em conjunto, estas perspetivas revelam um paradoxo, a classe média é simultaneamente a categoria mais invocada no debate público e uma realidade cada vez mais vulnerável. É ilusória no plano das perceções, maleável no plano político e instável no plano material. Reconhecer esta tripla dimensão é essencial para que o debate democrático deixe de operar sobre uma “ficção confortável” e passe a enfrentar de forma clara as desigualdades e vulnerabilidades que corroem a base de estabilidade social em Portugal, a classe média.
O desafio é abandonar slogans e encarar vulnerabilidades concretas. O que importa não é proteger uma categoria vaga, mas enfrentar realidades, salários que não acompanham o custo de vida, pressão da habitação, desigualdades que atravessam diferentes segmentos da sociedade.
A classe média continuará a ser invocada enquanto símbolo e sacrificada enquanto realidade se não mudarmos a forma como pensamos as políticas públicas. O caso das rendas moderadas mostrou como a ficção da classe média se desfaz quando confrontada com números.
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