Media

Jornalismo precisa de agenda própria e saber para quem fala

Rafael Ascensão,

Três jornalistas discutem o presente e o futuro das notícias no Estúdio ECO. Nuno Santos, Mafalda Anjos e António Costa avaliam caminhos num setor à procura do seu valor económico.

António Costa (ECO), Mafalda Anjos (jornalista e comentadora), Nuno Santos (CNN Portugal) e Carla Borges Ferreira (+M)Hugo Amaral

Este é um “problema coletivo, com causas identificadas há muito tempo, e muitas vezes esquecemo-nos de fazer este exercício de autoanálise de uma crise que, de certa forma, é autoinfligida”.

O comentário de Mafalda Anjos refere-se à crise do jornalismo. De um jornalismo onde “todos correm atrás da mesma agenda, sem histórias próprias e sem um exercício de reflexão prévio, porque é tudo muito imediato. É um imediatismo que é difícil de contrariar, quando por trás disso está uma crise de recursos”.

Subscrevendo a ex-diretora da Visão, Nuno Santos defendeu a distinção entre a crise da indústria dos media e a do jornalismo, até porque “nunca houve uma demanda tão grande por conteúdos“. “Estamos a viver uma transformação da indústria, mas feita de tal maneira em andamento“, que marcas como a Disney+ ou a HBO lançam uma operação e um ano depois dispensam centenas de pessoas. São as “placas tectónicas a ajustar-se”, constata o diretor da CNN.

Já quanto à área da informação, Nuno Santos acredita que o chamado jornalismo do cidadão “acabou por questionar um papel que pertencia ao jornalismo clássico” e que as redações têm hoje menos pessoas e, portanto, uma menor capacidade de resposta e de pensamento.

Os meios novos ainda não são suficientemente robustos e os tradicionais vivem uma erosão que nos deve levar a pensar onde estamos exatamente e onde poderemos estar num horizonte a médio prazo“, afirmou no painel “O Jornalismo como Serviço Público”, o primeiro da conferência “Jornalismo, as notícias e o negócio”, que decorreu no Estúdio ECO.

É preciso fazer a pergunta “quem é que servimos?“, defende por seu turno António Costa, diretor do ECO. E a resposta tem que ser “mais fina”, porque não é possível responder a toda a gente, uma vez que já não existem os mesmos recursos. “Essa segmentação, opção, escolha, é uma condição essencial para se olhar o futuro com otimismo e outra perspetiva“, acredita.

Nuno Santos, diretor da CNN e de informação da TVIHugo Amaral

O diretor da CNN e de informação da TVI relembrou no entanto que, em comparação com o resto da Europa, o mercado de consumidores de notícias em televisão em Portugal já era – mesmo antes do aparecimento da CNN – “bastante pujante”. Após o surgimento deste novo canal, os canais de notícias passaram de cerca de 8,5% para mais de 10% em termos de representação do mercado de consumo de televisão.

Necessidade de consolidação

Quando questionado sobre a existência de demasiados títulos, Nuno Santos respondeu que “devemos ter a humildade de achar que o público é sempre um bom barómetro para fazer a avaliação“. Já António Costa não tem dúvidas de que existem meios a mais, referindo que os resultados económicos e financeiros mostram isso mesmo, e sublinhando a importância de consolidação.

O diretor do ECO e publisher da Swipe News apontou a existência de empresas “zombies” no setor dos media, que “numa situação normal de concorrência de mercado provavelmente já teriam desaparecido e teriam dado origem a outros meios com outras formas de abordagem“. Contudo “essa transformação não está a ser feita”, observou, apontando de igual forma uma falta escala, dimensão e consolidação no setor.

Andamos sempre fatiados, e a verdade é que tendo o mercado os problemas estruturais que têm – pela sua natureza e escala – nós também não contribuímos para atenuar uma das questões, que é justamente esse movimento de integração.

Nuno Santos

Diretor da CNN e de informação da TVI

Nuno Santos mostrou-se de acordo com a questão da consolidação, exemplificando com a possibilidade da operação de fusão entre a Media Capital e a Cofina – já por duas vezes em cima da mesa, na primeira a Cofina compraria a Media Capital e na segunda a Media Capital comprava a Cofina -, que via como “muito interessante” porque “daria escala ao grupo”.

Encarando a consolidação – que já aconteceu em outros países europeus e nos EUA – de uma forma positiva, o diretor da CNN argumentou que “em Portugal esse movimento, verdadeiramente, nunca aconteceu“.

Andamos sempre fatiados, e a verdade é que tendo o mercado os problemas estruturais que têm – pela sua natureza e escala – nós também não contribuímos para atenuar uma das questões, que é justamente esse movimento de integração“, afirmou Nuno Santos.

António Costa defendeu que essa consolidação é ainda mais necessária junto dos pequenos e médios grupos, até porque existe uma “grande décalage entre três ou quatro grupos muito grandes de televisão e todos os outros”. Esta consolidação “vai acontecer a mal ou a bem”, seja com desaparecimentos “à força”, de forma descoordenada, ou de uma forma mais controlada se “todos os players tiverem capacidade de olhar para isto e perceber que é preciso fazer alguma coisa”, antecipa.

Na indústria do jornalismo temos a obrigação de ter um discurso realista mas que permita atrair capital e investimento. Se somos nós próprios os primeiros a dizer que isto não tem salvação, eu pergunto-me (…) como é que conseguimos atrair bom capital?

António Costa

Diretor do ECO

Na indústria do jornalismo temos a obrigação de ter um discurso realista mas que permita atrair capital e investimento. Se somos nós próprios os primeiros a dizer que isto não tem salvação, eu pergunto-me (…) como é que conseguimos atrair bom capital?”, questionou António Costa, defendendo que “as manifestações de que o mundo vai acabar amanhã provavelmente não são a melhor solução para o atrair“.

Quando se assiste a comissões parlamentares onde se “destrói totalmente o valor das marcas“, dos conteúdos produzido e dos resultados obtidos, “de facto estamos a espetar facas nas próprias costas e isso não faz sentido nenhum“, acrescenta Mafalda Anjos.

Mafalda Anjos, jornalista e comentadoraHugo Amaral

A ex-diretora da Visão disse ainda ser “um bocado inquietante” ver meios como a Vice ou Buzzfeed, que já foram pensados para um mundo totalmente digital e com uma forma de organização “supostamente adequada às novas vigências do jornalismo”, a também enfrentarem inúmeros problemas. A primeira declarou falência e a segunda encerrou a sua secção de notícias e cortou 15% da sua força de trabalho.

“Estiveram à frente do seu tempo” e tentaram responder a um novo modelo de consumo, ao importar os modelos de redes sociais para os sites, mas esses novos modelos não resultaram apesar dos grandes investimentos feitos, sustenta António Costa. Por outro lado, os media tradicionais “cá continuam embora com muitas dificuldades”, defendeu, observando que em alguns destes meios a nível mundial – como o Financial Times ou The Wall Street Journal – as assinaturas e o online já valem mais de metade das receitas.

“A IA não fura histórias, não saca caixas, não se relaciona com fontes, não faz tão bem a interligação que nós jornalistas conseguimos fazer, felizmente vai continuar a haver coisas que a IA não faz”

Mafalda Anjos

Jornalista e comentadora

Isto tem de passar por assinaturas e uma ligação próxima entre o que são os leitores e um engagement com a marca. Isto passa pelo potencial das marcas em explorar nichos de alto valor de mercado – isso é fundamental – e passa pelas assinaturas, porque se calhar daqui a quatro ou cinco anos não temos quiosques em Portugal“, reforçou Mafalda Anjos, embora sublinhando que as assinaturas só são possíveis se as marcas tiverem valor.

Por outro lado, António Costa aproveitou para defender que as marcas, investidores e agências de meios “também têm responsabilidades”. “Querem mesmo ficar nas mãos das plataformas internacionais? Acham que vão fazer negócio – vender carros ou telemóvel – só com a Google e Facebook? Não me parece”, atirou.

“Há aqui um ecossistema que merece ser discutido”, em maior medida do que os apoios públicos e intervenção do Estado, argumentou ainda, aproveitando para relembrar que os meios não ficaram “parados no tempo à espera da morte”. “Fazem-se uma multiplicidade de coisas que não se faziam antes. Há resposta dos media, agora se calhar ainda é insuficiente“, afirmou o diretor do ECO.

Apoios e financiamento por parte do Estado?

Sobre a questão de apoios que possam ser concedidos ao setor pelo Estado, António Costa defendeu que estes têm de ser totalmente cegos ou concedidos através dos leitores e mostrou “muitas reservas” na possibilidade de oferta da Lusa a todos os órgãos de comunicação social pois isso iria conduzir a uma “menor diferenciação”.

António Costa, diretor do ECOHugo Amaral

A concessão de benefícios fiscais às assinaturas de meios de comunicação ou de apoios a subscrições “parece uma boa solução” referiu também o jornalista. Sublinhando que “não há uma resposta única que vá resolver todos os problemas“, o mesmo considera no entanto que todas somadas “vão dar mais linhas de receita que vão acumular para dar resposta à condição que todos queremos, que é fazer melhor jornalismo“.

Mafalda Anjos também se mostra “completamente contra” um financiamento direto do Estado. “Só a simples ideia de haver um financiamento direto de um governo, de haver um poder público a entregar dinheiro diretamente a um órgão de comunicação social… isto é arrepiante, porque em última análise ameaça independência e isenção que têm de estar acima de qualquer suspeita”, afirmou.

Embora não seja contra, a jornalista e comentadora afirmou que não é a oferta da Lusa, a atribuição de bolsas de financiamento à investigação, a atribuição de benefícios fiscais e nem a atribuição de cheques para a subscrição de meios de comunicação que vão fazer a diferença.

Estamos a falar de micro-pensos rápidos para uma hemorragia que é enorme”, retrata a ex-diretora da Visão, acrescentando que “há muitas outras formas de se poder fazer um apoio indireto, mas se alguma deles é suficiente, não sei”.

Nuno Santos mostrou-se mais aberto quanto a possíveis hipóteses de financiamento, referindo que há um conjunto de apoios que “podem ser tidos em conta”, e que têm a ver com medidas como incentivos fiscais ou o porte pago, que “julgo que podem e devem ser aplicadas e onde o Estado pode ter um papel“.

No entanto, “o que é desejável e saudável é que as empresas de jornalismo consigam ser saudáveis do ponto de vista económico e financeiro. Que tenham capacidade para ir ao mercado, para se financiar no mercado, para terem anunciantes, estarem com as marcas, isso é com certeza tudo aquilo que desejamos“, afirmou.

“Mas eu não vejo um tema se a Lusa for gratuita para todos os órgãos de comunicação social, e também não vejo um tema se houver um investimento – desde que o quadro seja claro, definido, não venha aos trambolhões como na pandemia – sobre a colocação de publicidade institucional nos meios, desde que isso seja definido. Isso é objetivamente um apoio aos meios e que – nuns mais e noutros menos – será relativamente importante para o desenvolvimento da atividade”, acrescentou.

Integração da inteligência artificial

Quanto à integração de inteligência artificial no jornalismo, Mafalda Anjos considera que esta pode ser usada para libertar jornalistas da produção de artigos mais simples – e que por vezes até estão entre os mais lidos – como aqueles sobre as previsões do tempo para a semana. “Mas a IA não fura histórias, não saca caixas, não se relaciona com fontes, não faz tão bem a interligação que nós jornalistas conseguimos fazer, felizmente vai continuar a haver coisas que a IA não faz“, reforça.

O diretor do ECO alertou ainda que o ChatGPT é “uma espécie de novo Google” e que convém que “se tenha aprendido algo com o passado“, pois estas plataformas também estão a usar informação produzida por jornalistas, lembrou, aludindo ao caso em que o The New York Times está a processar a Microsoft e a OpenAI (criadora e proprietária do ChatGPT), por violação de direitos de autor.

Já para Nuno Santos a integração da inteligência artificial no jornalismo em Portugal é “uma questão de tempo e uma questão de afinar o que pode continuar a ser feito pelos jornalistas e o que pode ser feito pela inteligência artificial“.

Sobre o futuro, o diretor da CNN e de informação da TVI lembrou ainda que 2024 é um ano “muito estimulante” para o trabalho jornalístico, que “vai criar e solidificar uma relação com os públicos” e colocar de novo o jornalismo num patamar “que permitirá que as pessoas entendam a sua importância”.

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