Incêndios vieram para ficar. Em certos casos, deixar arder também é uma forma de gestão

Portugal volta a arder. Pedimos a especialistas da conferência da Floresta, realizada em outubro, para analisarem o tema dos fogos à luz do que se passou este ano e do que foi feito entretanto.

Na semana em que o Governo aprovou o plano a 25 anos para as florestas e prometeu apoios e indemnizações às vítimas, o ECO/Local Online volta ao contacto com quem deixou sugestões e críticas na conferência sobre o futuro da Floresta, há dez meses.

O futuro da floresta implica mais cabras, menos material combustível no chão, mas não se pense que se preenche sem o fogo, defendem os especialistas, entre os quais se preconiza que em alguns casos, como a Serra Amarela, a Norte – onde foram gastos este ano milhões no combate ao incêndio – se deveria ter deixado arder o que não tem valor, concentrando esforços no combate em locais produtivos.

As imagens espalhadas pelo país pelas televisões revelam chamas imparáveis, alimentadas desde o chão por biomassa fina que tarda em ser retirada. Apesar de a Lei obrigar à limpeza dos terrenos perto de habitações e no perímetro das localidades, nos montes e vales sem habitações permite-se que sejam terra de ninguém.

As câmaras dizem-se de mãos atadas. Luísa Salgueiro, presidente da associação de municípios (ANMP) queixou-se disso mesmo nesta sexta-feira, em declarações à Lusa: “As pessoas, porventura, não têm conhecimento que um presidente de Câmara, se tiver conhecimento de um terreno que esteja em más condições de limpeza e que ofereça perigo, não tem condições para avançar para essa limpeza rapidamente”.

Luísa Salgueiro, presidente da ANMP, lamenta que “um presidente de Câmara, se tiver conhecimento de um terreno que esteja em más condições de limpeza e que ofereça perigo, não tem condições para avançar para essa limpeza rapidamente”Lusa

A autarquia poderá estar refém também das suas dificuldades financeiras e técnicas, salienta, apelando ao Governo para que agilize processos.

“A autarquia identifica a necessidade de limpeza do terreno, notifica o proprietário para proceder à limpeza do terreno, tem naturalmente de cumprir os prazos do Código de Procedimento Administrativo que requerem um conjunto de etapas, a pessoa pode-se opor à realização dessa limpeza e, caso pretenda realizá-la, realiza-a no tempo que considera possível. E a autarquia só pode substituir-se ao proprietário passados meses depois de ter iniciado o procedimento”, explicou.

Na parte do privado existem mutos terrenos abandonados. São privados que têm terrenos de família e nem sabem que existem. Não estão registados. As Câmaras e outras entidades não podem intervir porque é terreno privado.

Manuel Pitrez de Barros

Gestor das centrais de biomassa do Fundão

Quando se passa para a floresta, a dificuldade pública adensa-se, ao nem se saber quem são os proprietários, conforme nota ao ECO/Local Online Manuel Pitrez de Barros, gestor de duas centrais no Fundão. “Na parte do privado existem muitos terrenos abandonados. São privados que têm terrenos de família e nem sabem que existem. Não estão registados. As Câmaras e outras entidades não podem intervir porque é terreno privado. Seria necessário criar alguma figura jurídica que permitisse às entidades legais gerirem essas áreas”, defende.

Adicionalmente, assinala, “as Câmaras e as Juntas ainda não sabem ao certo quais são as áreas que têm sob o seu domínio” e, assim, “não podem adjudicar a outra entidade essa gestão, quando não sabem perfeitamente os seus limites”.

Do lado da GNR, explica a força policial ao ECO/Local Online, a ação é mais acutilante, pelo menos na autuação. Numa primeira fase, “o foco recai na identificação/sinalização de terrenos em risco de incumprimento, desenvolvendo-se ações de sensibilização junto das populações e dos proprietários, sempre que estes sejam identificados. Os terrenos sinalizados são também comunicados ao município respetivo, para efeitos de acompanhamento e eventual notificação formal aos proprietários”.

Estamos a discutir aviões, carros, pessoas. É como se uma empresa se pusesse a discutir os meios de produção sem discutir os clientes.

Henrique Pereira dos Santos

Arquiteto Paisagista

Não havendo a imposta ação de limpeza, “a GNR realiza uma nova passagem pelos terrenos anteriormente sinalizados, verificando se a gestão de combustível, ou outras situações passíveis de infração, foram devidamente regularizadas”, e “se for confirmado que o terreno continua em situação de infração, mesmo após o período de sensibilização ter decorrido, a GNR elabora a contraordenação prevista na lei”, explica esta entidade.

Se [após a notificação pela GNR] for confirmado que o terreno continua em situação de infração mesmo após o período de sensibilização ter decorrido, a GNR elabora a contraordenação prevista na lei

Guarda Nacional Republicana

Até dia 13, a Guarda sinalizou 10.417 situações relativas à limpeza de terrenos, promovendo 1.289 autos de autuação “por falta de gestão de combustível”. Até à mesma data, a GNR deteve 42 pessoas em flagrante delito (Vila Real, Porto, Guarda, Braga e Leiria são os distritos com maiores registos) e identificou 556 suspeitos.

Plano “igual aos outros”

Nesta quinta-feira, o primeiro-ministro anunciou a aprovação em Conselho de Ministros de um diploma, a submeter à Assembleia da República, para investimento anual médio de 246 milhões de euros no horizonte 2025-2050 para “reforçar a prevenção, valorizar economicamente a floresta, clarificar a propriedade e melhorar o modelo de governação do setor”.

“É igual aos outros, existem vários planos desses, é irrelevante”, desvaloriza Henrique Pereira dos Santos. Para o arquiteto paisagista, “qualquer um de nós faria isso se fosse ministro. As pessoas que fazem esses sucessivos planos são essencialmente as mesmas, pensam essencialmente o mesmo. Os planos são sínteses de opinião de pessoas”, nota.

Luís Montenegro veio anunciar ao país, após o Conselho de Ministros de quinta-feira em Viseu, o diploma para um plano para as florestas para os próximos 25 anos. “É igual aos outros, existem vários planos desses, é irrelevante”, desvaloriza o arquiteto paisagista Henrique Pereira dos SantosD.R.

 

Apesar de toda a área ardida este mês, e não obstante o drama vivido em vários municípios das beiras e do Norte, ainda estamos aquém da gravidade de 2017, apontam as contagens. “Tendo em conta o ciclo do fogo, por volta de 2030, mais ano, menos ano, haverá outro” ano de proporções iguais, considera Henrique Pereira dos Santos.

O especialista em território nota que os alertas à população melhoraram, mas no que concerne a gestão dos combustíveis e articulação entre combate ao incêndio e gestão do mesmo estamos “essencialmente na mesma”.

“Estamos a discutir aviões, carros, pessoas. É como se uma empresa se pusesse a discutir os meios de produção sem discutir os clientes”, exemplifica.

A esse propósito, o responsável pela gestão do património florestal da Navigator defendia, em outubro, na conferência do ECO relativa à economia das florestas, que é muito mais reconfortante para alguém que tem um incêndio a aproximar-se da sua aldeia ver um Canadair a passar do que, no inverno, ter máquinas a limpar o terreno.

“O esforço [financeiro] desse Canadair pagaria muitos hectares de limpeza de combustíveis finos”, notava o responsável da empresa que, no somatório com a Altri, explora três milhões de hectares em Portugal, nos quais investem 10 milhões de euros anuais em prevenção e gestão dos terrenos (silvicultura).

Não devíamos estar preocupados em apagar todos os fogos em todo o lado no mínimo tempo possível. É de facto a doutrina que temos na Proteção Civil, mas é errada. Há zonas que devemos deixar arder, há outras que não. O que as distingue é o valor que é afetado pelo fogo.

Henrique Pereira dos Santos

Arquiteto Paisagista

Para Henrique Pereira dos Santos, o valor não está obrigatoriamente no latifúndio, mas na produtividade, pelo que um minifúndio até pode ser mais rentável que uma grande propriedade infértil.

“Claro que do ponto de vista de uma organização ideal de produção, era melhor ter propriedades maiores. Sim, mas não é a questão fundamental. Se der prejuízo por metro quadrado, quantos mais metros quadrados tiver [a propriedade], mais prejuízo dá.

Mecanizar limpeza, sugere responsável da Navigator

Mecanizar, uma das propostas do responsável da Navigator, designadamente alocando equipamentos pesados às autarquias com dinheiros públicos – do Fundo Ambiental, por exemplo, e para que façam um trabalho de limpeza florestal à imagem da gestão de lixo que já lhes compete – “pode ter alguns ganhos de escala, mas é preciso que o terreno permita a mecanização. E grande parte dos terrenos não permitem, pelo menos a mecanização que é feita pelas celuloses”, considera o arquiteto paisagista.

Quando se fala da limpeza pelos pequenos proprietários, Henrique Pereira dos Santos tem uma visão invulgar: “E para que é que quer limpar? Para que é quer gerir? Por que não há-de o incêndio progredir, se não há valor nenhum?” Ou seja, defende, “não podemos ter a mesma visão para todo o território”, já que nem todo é valioso.

“Não devíamos estar preocupados em apagar todos os fogos em todo o lado no mínimo tempo possível. É de facto a doutrina que temos na Proteção Civil, mas é errada. Há zonas que devemos deixar arder, há outras que não. O que as distingue é o valor que é afetado pelo fogo. Se tem produções comerciais, elas devem procurar defender-se de fogo, como fazem as celuloses. Noutras zonas, como foi o exemplo da Serra Amarela em Ponte da Barca, para que é que andamos a gastar três milhões de euros no combate a incêndios, quando aquilo é mato?”

“Voracidade” das centrais de biomassa não se compadece com combustíveis finos

Feita a limpeza da floresta, solução que parece reunir unanimidade, uma das propostas de criação de valor vem do ramo das centrais de biomassa, solução que para alguns, como o Henrique Pereira dos Santos, é inadequada na maioria das situações, dado o escasso valor energético dos matos, ao contrário do que acontece com os sobrantes das serrações, exemplifica.

Manuel Pitrez de Barros, gestor das duas centrais de biomassa no Fundão com 15 MW cada (numa conversa anterior aos dias de sufoco vivido no concelho serrano), aponta valores para esses matos na ordem dos 15 euros por tonelada, ou 25 euros, se já triturados. Na biomassa mais nobre, atingem-se remunerações que podem chegar ao dobro, nota o gestor das centrais onde se consome cerca de 400 toneladas diárias.

Do ponto de vista do negócio, Pitrez de Barros acredita que as seis centrais de biomassa que o Governo adjudicou em julho (apesar de terem sido anunciados sete em abril, após um aviso lançado em 2023, ainda no Governo de António Costa), com 10 MW de potência, terão o tamanho ideal para o território, posicionando-se junto aos pontos de produção de matéria-prima, ou seja, aos territórios com floresta. Contudo, lamenta, as centrais foram prometidas após os grandes incêndios de 2017 e só agora estão a ser adjudicadas, o que impede que antes de 2027 estejam operacionais.

Uma solução para remunerar melhor o produtor florestal seria indexar a tarifa fixa da produção a partir de biomassa à inflação dos produtos energéticos, e não à geral, defende o gestor, o que impediria uma situação como a verificada no ano em que a inflação dos produtos energéticos mais que duplicou a generalizada.

Contudo, por mais baixo que seja o valor pago ao detentor da propriedade, o facto de receber um valor após limpar o terreno já isenta de pagamento num aterro, defende. E, por outro lado, diz, sabendo-se que há uma empresa que paga pela biomassa fina, os proprietários sentir-se-ão incentivados a fazer a limpeza e preparar o terreno, para, alguns anos depois, terem árvores para corte, essa sim uma biomassa valiosa.

Entre as ideias deixadas na conferência do ECO de há dez meses, e que se mantém atual, esteve a alocação do Fundo Ambiental para questões da floresta – e não para comparticipar passes de transportes, crítica ouvida de vários participantes, designadamente o fundador da empresa Toscca, que dizia que “passes dão votos, gestão de finos não dá votos” –, nomeadamente a comparticipação à pastorícia, para que mais rebanhos se espalhem pelas serras e impeçam a acumulação de toneladas de biomassa por hectare com o efeito combustível que as imagens televisivas têm comprovado nos últimos dias.

O país tem “um investimento florestal gigantesco todos os anos. Infelizmente, é em aviões, carros de combate e na reconstrução de casas, estradas e linhas de comunicação”, apontava então o responsável pela gestão do património da Navigator.

“Temos de acreditar, enquanto sociedade, que o facto de conseguirmos alocar parte desses recursos numa altura em que não se fala de floresta, que é quando chove, vai permitir que esses recursos não sejam necessários nessa magnitude quando há incêndios”, alertava então o responsável da Navigator, que em 2024, ano de graves incêndios, viu a sua floresta afetada nuns meros 2%.

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