Ikea foi corajosa e brincou com assunto tabu ou passou limite e entrou na campanha eleitoral?
O anúncio da Ikea entra em territórios proibidos ou foi um rasgo na comunicação? As opiniões dividem-se, com a marca e a agência criativa a rejeitarem a ideia de aproveitamento eleitoral.
O outdoor da Ikea que teve como protagonista o montante em dinheiro apreendido ao chefe de gabinete de António Costa, tornou-se viral e foi o tema da última semana nas redes sociais, sendo dos assuntos mais falados do momento. Embora referindo-se à Operação Influencer, a marca já assegurou ao +M que apenas queria “brincar com a atualidade, sem qualquer ambição política”. A Ikea foi corajosa e brincou com um assunto tabu ou ultrapassou o limite e entrou na campanha eleitoral?
José Franco, managing partner na agência Corpcom, reconhece “muita criatividade” na campanha da Ikea, mas considera que o anúncio especifico que se refere à quantia de dinheiro na estante – ao contrário dos restantes outdoors da marca relacionados com a atualidade política económica – tem a nuance de se referir a um “caso de alegada corrupção que levou um governo a cair” e que “os outros partidos vão usar” na campanha eleitoral.
“Ao contrário dos outros anúncios, creio que este tem um forte impacto na campanha política. É um caso que os partidos da oposição, nomeadamente mais à direita, já estão a usar na campanha. E a marca acaba, sem essa intenção – que foi claramente de humor, de fazer paródia de uma forma inteligente – por tocar nessa área em que as marcas deviam evitar entrar“, afirma José Franco, que defende que as marcas devem ser “agnósticas de política e religião”.
Apesar da crítica, José Franco considera que o anúncio é “corajoso”. “Acho positivo que as marcas possam entrar nesse campo”, diz. Mas, no caso concreto do anúncio da estante, o responsável da Corpcom defende que se “passou a barreira, para um foro que é questionável, e é perfeitamente aceitável que seja questionável. Não acho necessariamente negativo, mas acho legítimo que as pessoas questionem“, acrescenta.
Entretanto, no final da semana passada, a Comissão Nacional de Eleições (CNE) recebeu queixas de cidadãos contra a campanha lançada pela marca sueca esta semana.
Apresentando um ponto de vista mais crítico, Carlos Coelho, especialista em marcas e presidente da Ivity Brand Corp, defende num artigo de opinião publicado no +M que “as marcas não deveriam usar as feridas da democracia para promover os seus produtos ou serviços. Para mim as marcas são alicerces e não altifalantes, são entidades de longo alcance e não hienas dos desaires de uma sociedade política que está muito fragilizada, pelos seus próprios atos e comportamentos e que nos diminui a todos”.
“Estamos perto do Carnaval e, talvez por isso, ninguém leve a mal. Mas custa-me ver as marcas ‘brincar’ com assuntos desta natureza, que são gasolina para a fogueira mediática da nossa baixa estima coletiva“, acrescenta.
Susana Albuquerque, diretora criativa executiva da Uzina – agência responsável pela campanha -, concede que existe “alguma audácia de utilizar assuntos, temas, factos que fazem parte da conversa dos portugueses, que são anúncios que normalmente a publicidade não toca“.
Existe um bocadinho esse tabu, de que com estas coisas não se pode ‘brincar’ na publicidade portuguesa. Mas não há nada objetivamente na lei que nos diga que não podemos brincar com aquilo que está na rua. Se olharmos para o mundo não é a primeira vez que uma marca usa esse tipo de assuntos para fazer comunicação e neste caso para fazer humor.
“Existe um bocadinho esse tabu, de que com estas coisas não se pode ‘brincar’ na publicidade portuguesa. Mas não há nada objetivamente na lei que nos diga que não podemos brincar com aquilo que está na rua“, afirma, acrescentando que “se olharmos para o mundo não é a primeira vez que uma marca usa esse tipo de assuntos para fazer comunicação e neste caso para fazer humor“.
Susana Albuquerque explica que o briefing passado pela marca pretendia divulgar uma baixa de preços em alguns dos produtos mais populares da Ikea, com a nuance de que a marca não queria que isso fosse confundido com uma qualquer campanha de saldos.
Neste âmbito, a marca sueca pediu uma campanha de outdoor que conseguisse “surpreender e chamar à atenção, falando com as pessoas num tom Ikea“. Assim “tentou-se encontrar temas da sociedade que estivessem nas cabeças e nas conversas das pessoas para se conseguir falar a descida de preços, num tom bem-humorado. Há sempre aqui uma tentativa de fazer esboçar um sorriso”, refere.
A aprovação da ideia acabou por ser simples, revela, acrescentando até que os anúncios são muito centrados no produto. “Havia esta vontade do cliente de abordar temas sociais e que estão na cabeça das pessoas com algum sentido de humor, pelo que a aprovação foi fácil“, afirma a diretora criativa executiva da Uzina.
José Franco reforça que a Ikea “não é uma marca qualquer” e que tem um peso “muito grande” em Portugal, ressalvando que é portanto uma marca que “tem de ter algum cuidado porque também depende de muita decisão política, nomeadamente ao nível de licenciamentos, quer por parte de governos como do poder local (autarquias)”.
“E levantar esta questão, ainda que tenha tido sucesso – foi provavelmente a campanha mais comentada nos últimos anos – toca de uma forma sensível em alguns stakeholders. Mas isto não impede que a marca o assuma e possa fazer a comunicação como bem entender, com os riscos que isso pode ter”, afirma o managing partner da Corpcom.
Susana Albuquerque confessa que não esperava todo o buzz que se gerou à volta do anúncio. O objetivo, como sempre, é trabalhar “para tentar chegar ao maior número possível de pessoas dentro do público que está definido”, refere.
“Nesta campanha claramente que há uma intenção de chamar à atenção e chegar ao maior número possível de pessoas. Aquilo que aconteceu – que é o que chamamos de viralizar – para nós não é um objetivo nunca. O objetivo é comunicar com eficiência com as pessoas com quem queremos comunicar”, explica a responsável da Uzina.
“Depois, quando estes fenómenos acontecem – e é raro acontecerem -, é por algo que não controlamos nem provocamos intencionalmente. Nós não nos sentamos à secretária a pensar ‘vamos fazer um viral’. Isso nunca aconteceu e não aconteceu agora de certeza”, acrescenta ainda.
Para José Franco, o timing do anúncio teria sido “mais proveitoso” quando se soube do caso da Operação Influencer e se a comunicação fosse feita apenas nas redes sociais. “Mas a decisão foi levar para uma rede nacional de mupis. Admiro as marcas que tenham essa coragem de quebrar com o establishment. Correndo riscos e ter esse caráter ousado de sair da comunicação mais tradicional“, refere.
Também num artigo de opinião no +M, João Santos, COO (chief operating office) do WYgroup, dá os parabéns à agência, cliente e marca “pelo arrojo, pela oportunidade e sobretudo por terem tido a vontade de o fazerem”.
“É inequívoco que a mensagem pode ter um preço. Que vamos ter quem fique zangado com a marca, mas que teremos muitos outros que nos vão aplaudir e preferir-nos quando chegar ao momento de escolher a nova mobília. E não porque nos estamos a referir a um determinado quadrante político, mas antes porque temos a coragem para o fazer“, acrescenta.
“(…) acho bem que se trilhe caminhos na publicidade, desde que não sejam feitos de forma gratuita, apenas para gerar impacto noticioso. Se o objetivo é um objetivo gratuito de entrar nas notícias todas, tem que se avaliar muito bem que tipo de públicos podem ser melindrados com essa comunicação.”
“Temos visto muitas marcas a passar determinado tipo de limites estabelecidos e depois a recuarem e a pedirem desculpa. Ainda assim, acho bem que se trilhe caminhos na publicidade, desde que não sejam feitos de forma gratuita, apenas para gerar impacto noticioso. Se o objetivo é um objetivo gratuito de entrar nas notícias todas, tem que se avaliar muito bem que tipo de públicos podem ser melindrados com essa comunicação“, afirma José Franco ao +M.
A eficácia desta campanha da marca sueca, do ponto de vista de relações públicas, é “grande”, na medida em que colocou “toda a gente a falar da marca”. No entanto, se for perguntado às pessoas qual o nome do estante ou o seu valor, “a maioria das pessoas não sabe dizer”, refere também José Franco, apresentando dúvidas quanto à eficácia “do ponto de vista de produto” desta campanha que se foca em descontos e promoções.
O managing partner da Corpcom defende ainda que este episódio vai abrir um “campo de intervenção de outras marcas“, na medida em que a Ikea “desbravou um caminho que se calhar agora vai ser aproveitado por outras marcas para outros casos ligados à sociedade, política, economia“.
Este tipo de conteúdos, no entanto, “têm de ser muito bem pensado para avaliar o impacto na opinião das pessoas, e essa avaliação tem de ser muito cuidadosa, porque saímos do domínio da comunicação publicitária para entrar num domínio de relações públicas e até comunicação de crise“.
Cláudia Domingues, country communication manager da Ikea Portugal, começando por negar a existência de uma “crise”, explica ao +M que quando se começou a sentir que podiam existir “interpretações que não eram de todo a nossa intenção”, o que foi feito foi “ativar a nossa agilidade e a nossa boa comunicação entre agências – nós (comunicação da Ikea), agência de publicidade [Uzina] e agência de comunicação [Adagietto] – para termos clareza e uma só voz na nossa perspetiva em relação a este tema“, onde não existe “nenhum pendor político”, defende.
Fizemos esta campanha para, primeiramente, relembrar as pessoas que temos soluções para todas as casas, carteiras e clientes e dizer que os preços estão a baixar e que fazemos parte da sociedade e que estamos a ouvir as conversas das pessoas e queremos com que estas sintam que estamos ao lado delas. E não foi mais do que isso.
“Fizemos esta campanha para, em primeiro lugar, relembrar as pessoas que temos soluções para todas as casas, carteiras e clientes e dizer que os preços estão a baixar e que fazemos parte da sociedade e que estamos a ouvir as conversas das pessoas e queremos com que estas sintam que estamos ao lado delas. E não foi mais do que isso”, afirma.
Susana Albuquerque também defende que nesta campanha “não há um tomar partido, nem há um ato publicitário que gera consequências políticas. O que há é uma piada sobre algo que aconteceu. Não há nenhuma intenção de campanha política em nenhuma das execuções, há sim brincadeiras com o vocabulário que agora faz parte do léxico da sociedade, como coligação, geringonça ou o tal caso da estante”.
José Franco parabeniza a marca e agência pela ousadia, mas diz que as avaliações serão feitas à posteriori. “Estou curioso para saber o que vem aí a seguir, quer por parte do Ikea quer de outras marcas”, refere, acrescentando que foi “muito positivo” o facto de outras marcas terem entrado neste registo e “dizerem no fundo ‘somos todos Ikea'”. A própria Corpcom também “entrou na paródia”, com uma publicação no LinkedIn.
Quanto ao facto de outras marcas se terem associado à campanha, Susana Albuquerque, diretora criativa executiva da Uzina, considera que quando a Ikea “teve a audácia de tocar num assunto que parecia tabu e de brincar com ele, de uma forma leve”, outras marcas perceberam que “também podiam brincar e portanto quiseram brincar”.
Já Cláudia Domingues refere que “ficámos agradavelmente surpreendidos. Acho que todos nos divertimos. E os nossos concorrentes e as outras marcas também se divertiram. E é bom ver isso a acontecer“.
Por outro lado, Carlos Coelho refere no seu artigo de opinião que “não gostei de ver as marcas que gosto a surfar uma onda gigante de notoriedade, desvalorizando o prejuízo social causado pelo seu conteúdo, em troca do lucro mediático, instantâneo, ‘facebokiano’ dos likes na sua marca”.
“É bom e venham mais”, diz ainda José Franco sobre o anúncio da Ikea, referindo que foi notório que a maioria das pessoas gostou, mas acrescentando que caso a campanha não integrasse o anúncio específico relacionado com a Operação Influencer, esta iria “passar despercebida, nunca ia entrar no Whatsapp e redes sociais e muito menos nas notícias”.
Encarando como “francamente positivo” que as agências e marcas sejam “arrojadas e tenham a coragem de fazer, às vezes, campanhas que possam ferir alguma suscetibilidade de alguns públicos”, José Franco considera que as marcas em Portugal – ou antes, os decisores – “arriscam muito pouco” e têm um “sentido muito convencional, conservador, sempre com medo de ferir suscetibilidades”.
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