Media

O mais importante é “sermos consumidores críticos da informação”, diz Pedro Domingos

Lusa,

Especialista Pedro Domingos, que participa no congresso da APDC, defende a aposta na literacia digital e critica a maneira como a inteligência artificial está a ser regulada, em particular na Europa.

O professor de Ciências da Computação na Universidade de Washington, Seattle, Pedro Domingos, afirma, em entrevista à Lusa, que “não há nada mais importante” do que ser “consumidor crítico da informação”, numa altura em que a desinformação grassa.

Pedro Domingos é keynote speaker do primeiro dia do Congresso da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento das Comunicações (APDC), que arranca esta terça-feira em Lisboa, e onde abordará ‘Living in a future with AI’ [Viver num futuro com IA (Inteligência Artificial)]. A 33.ª edição do congresso tem como mote “40 years Futurizing”, no ano em que a associação comemora 40 anos de existência.

Não há nada mais importante hoje em dia como sermos consumidores críticos da informação e o papel dos cientistas, jornalistas e dos educadores é contribuir para isso”, afirma o académico, para quem a aposta na literacia digital é cada vez mais premente.

Sobre os riscos da inteligência artificial no aumento da desinformação, Pedro Domingos considera ser “uma ilusão” alguém olhar para a IA “como uma entidade em si própria”. “O que devemos ser capazes é ver através da inteligência artificial sobre quem a está a controlar” porque “o perigo não está” na IA.

De uma forma ilustrativa, o perigo “não está na metralhadora, está em quem tem a metralhadora nas suas mãos”. O importante é “perceber quem está a utilizar a inteligência artificial e para quê”, aponta o académico.

O vencedor do “SIGKDD Innovation Award”, o prémio mais prestigiado em data science (ciência de dados), e fellow da Associação para o Avanço da Inteligência Artificial (AAAI) e autor do livro “Algoritmo Mestre”, admite que a inteligência artificial pode ser utilizada “e já está a ser utilizada para gerar informação”, o que “é mau”. Mas “o mundo já está cheio de desinformação mesmo sem inteligência artificial, as redes sociais estão cheias” disso.

Pedro Domingos destaca que “o grande papel” da IA na economia “é diminuir o custo da inteligência ou de alguns aspetos da inteligência”. Por muito que se gere desinformação, há uma capacidade finita das pessoas em reter e isso não vai aumentar, não esquecendo que também se pode “usar a inteligência artificial para combater a desinformação”.

Atualmente, “o papel da inteligência artificial é vastamente maior” que a capacidade de gerar, defende o especialista e professor. “Há milhões de pessoas a gerar desinformação e o que impede de passar” toda essa vastidão “é a inteligência artificial”, sublinha, concluindo que “o que precisamos é de mais e melhor inteligência artificial”.

Literacia digital é ponto essencial para se usar IA

O professor da Universidade de Washington discorda, no entanto, da maneira como a inteligência artificial está a ser regulada, vendo na literacia digital um “ponto essencial” nesta matéria. “A maneira como a IA está a ser regulada, de um modo geral, é completamente errada, em particular na Europa“, até porque “tem uma certa tradição de regulações disparatadas”, afirma o especialista em IA e machine learning.

Neste caso, aponta que “um dos erros é a questão da privacidade“. “O prisma certo é a partilha de dados, não é como é que eu projeto os meus dados dessas companhias maléficas que nos vão manipular, é como é que eu utilizo os meus dados para o máximo benefício para mim e para as causas em que eu acredito”, explica.

“É como pôr o dinheiro debaixo do colchão. Com o IA Act [regulação da IA] e o RGPD [Regulamento Geral sobre a Proteção da Dados] vamos manter os dados debaixo do ‘colchão'”, mas “eu quero investir os meus dados para o máximo benefício”, ilustra Pedro Domingos. E para isso é preciso que as pessoas percebam o que é a inteligência artificial e como podem tirar benefício dela.

A literacia digital é o ponto essencial disto tudo, falta, tem que haver mais“, insiste o académico, referindo que estão a ser dados passos nesse sentido, mas “é preciso acontecer muito mais e acontecer mais rapidamente”.

Para Pedro Domingos, “da mesma maneira que as pessoas têm de saber fazer somas e multiplicações, ler e escrever, devem também funcionar com inteligência artificial”. “É preciso haver uma consciencialização das pessoas para estas coisas”, até porque a IA “está em desenvolvimento muito rápido” e é preciso compreender como se pode trabalhar com esta ferramenta e perder os receios de utilizá-la.

“O medo tem um papel importante”, mas é preciso as pessoas verem as oportunidades e estarem preparadas para não serem manipuladas, adverte.

E como é que se aposta na literacia digital? “Tem de haver várias coisas, é preciso haver formações nas escolas, é preciso life long learning [aprendizagem ao longo da vida]“, elenca.

Até porque as pessoas têm de se habituar “à ideia de que vão continuar a aprender a vida toda, incluindo a Inteligência Artificial”, defende Pedro Domingos, reforçando que a IA vai continuar a evoluir até, muitas vezes, em formas que ninguém é capaz de prever.

“A minha atitude enquanto trabalhador é: ‘Eu daqui a três anos se calhar vou continuar a fazer o meu trabalho, mas de uma maneira diferente, tenho que aprender” e “parte disso pode ser formação nas empresas”, mas as universidades e as instituições internacionais “devem ser os nossos parceiros para a educação para a vida inteira”.

Admite que vai haver pessoas para quem estas soluções não funcionam, mas Pedro Domingos recorda que a utilização da IA tem vários níveis e todos a usam sem o saber, como é o caso dos motores de pesquisa, por exemplo.

É preciso questionar como se quer o futuro e depois “inventá-lo”

Questionado como vê o futuro daqui a exatamente 40 anos, pegando no mote do evento, o especialista em IA e machine learning afirma que “vai ser bastante difícil”, mas que melhor que o prever “é inventá-lo”, citando uma frase conhecida para referir que “isto é mesmo verdade”.

Ou seja, “a primeira pergunta que devemos fazer não é como vai ser o futuro, mas como é que queremos que o futuro seja. E, depois, cabe-nos inventá-lo e fazê-lo acontecer“, porque “a tecnologia é um instrumento da vontade humana, nem mais, nem menos”, enfatiza.

Para Pedro Domingos, “o estado da ciência determina o que é possível”. Depois “compete-nos decidir o que acontece, podemos ver em várias áreas o que achamos que podemos fazer com a inteligência artificial, quais são as coisas más, e depois há sempre uma interação inteligente entre os tecnologistas — pessoas que sabem desenvolver a tecnologia — e o resto da sociedade”.

Isto porque “estamos a entrar numa fase na inteligência artificial em que não é suficiente só os informáticos, profissionais de IA a controlarem a IA. É uma receita para maus resultados” e também não pode ser só para grupos que já estão bem organizados para intervenção, para fazerem prevalecer a sua agenda, prossegue.

O que é preciso é que cada um de nós saiba como é que quer utilizar a IA, como é que posso utilizar no meu emprego, na minha vida privada, quais são os meus interesses e como é que eu posso intervir na inteligência artificial para os promover“, salienta o académico.

A função dos engenheiros não é imbuir os sistemas dos seus valores, é tornar mais fácil a qualquer pessoa e a qualquer sociedade imbuir a inteligência artificial dos seus valores, sublinha, assinalando que os valores em Portugal são uns, nos EUA são outros, como na Índia e China são diferentes.

Para além disso, a noção de “bem” para uma determinada sociedade não é igual para outra e isso é algo que tem de ser discutido, segundo o responsável, abertamente. “É um debate que tem de haver”, defende, acrescentando que deve ser evitada uma visão maniqueísta: “Para diferentes pessoas o bem e o mal são coisas muito diferentes”.

“Na minha profissão — como em outras — as pessoas estão preocupadas em perder o emprego” por causa da inteligência artificial e a questão não é essa, mas “como é que eu utilizo a IA para fazer melhor o meu trabalho” porque “se eu não fizer alguém vai fazer”, aponta.

Não se trata do “Homem contra a máquina, é o Homem com a máquina contra o Homem sem a máquina, e não há dúvida quem vai ganhar”, diz. Com a inteligência artificial, “as partes mais rotineiras do meu trabalho podem ser automatizadas e as partes mais criativas, que precisam de uma compreensão mais profunda, continuam a ser feitas por mim”, argumenta, referindo que a IA “é uma ferramenta” e “as ferramentas utilizam-se”.

Além disso, a inteligência artificial “não é um agente, é uma vasta gama de coisas que podemos utilizar para alargar a maneira como se faz as coisas e depois escolher as melhores”, diz, criticando o alarmismo que existe em volta da IA.

De uma forma ou de outra, a utilização da IA já existe há muito tempo, apesar de grande parte das pessoas não dar por isso. Por exemplo, “hoje em dia, de longe, o maior papel da IA no mundo são os sistemas de recomendação” porque “escolhem o que o motor de pesquisa nos dá, os filmes que eu vejo na Netflix, a música”, entre outros.

E há duas maneiras de o fazer: um algoritmo que é o mesmo para todos — e isso “é um desastre porque mata a diversidade da sociedade e a robustez” — e o outro é haver personalização. “Grande parte dos algoritmos de inteligência artificial que existe atualmente tiveram uma fase em que foram treinados num conjunto de dados” que as empresas obtiveram, “mas que depois, na fase de deployment, não estão a aprender” mais, diz.

Para se errar menos, “é preciso, por um lado, os algoritmos melhorarem — ainda não são tão bons como o cérebro humano — e depois é preciso terem dados e haver interação — o controlo todo da IA está nas mãos da companhia, [quando] devia estar mais nas minhas mãos“, salienta. Por exemplo, um utilizador de uma rede social poderia ter o poder de pedir para que esta não lhe apresentasse mais informação sobre um determinado assunto.

Questionado sobre quem vai na frente nesta corrida, os EUA ou a China, Pedro Domingos refere que esta é uma “guerra com múltiplas frentes”. De uma forma geral, “os EUA ainda estão à frente da China, há áreas específicas em que a China já está à frente, mas nas áreas em que a América está a frente a China está a melhorar mais rapidamente“, sob pena de ultrapassar Washington.

Agora, “a América já começou a acordar para esta realidade” e em áreas “como large language models [modelo de linguagem grande] e ChatGPT”, os EUA estão à frente, diz.

Cada país tem a sua cultura e isso tem pontos fortes e fracos em relação à IA. Por exemplo, há quem diga que um ponto forte da China é que só um país grande tem muitos dados, os algoritmos podem aprender mais e ter modelos. “Creio que na realidade não é assim tão importante, porque têm mais dados e menos preocupações com a privacidade, mas são dados menos diversos. E na aprendizagem — entre os dados da China e os da Europa — eu preferia os da Europa porque é metade das pessoas, mas tem mais diversidade”, conclui Pedro Domingos.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.