আমি আমার নিজের বাড়িতেই অপরিচিত।*
Quem se quer fazer notar tem de gritar, e grita cada vez mais, e mais e mais até ficarmos todos surdos - numa versão moderna do pensamento de Gandhi: “olho por olho e o mundo acabará por ficar cego”.
A Revolução de abril de 1974 provocou mudanças em cadeia que afetaram as formas de organização do Estado e da Administração Pública, o modelo de desenvolvimento, a economia, a política e os comportamentos. Houve também um típico choque geracional, com a substituição de uma classe dirigente envelhecida por jovens imberbes (alguns com barba) de vinte e tantos anos. A seguir veio o divórcio e a Gabriela — mas antes vieram os retornados.
A descolonização é o facto político mais traumático da minha vida. Não porque o tenha vivido na pele de criança (na altura doce e amorosa), mas porque tinha relatos e conhecimento direto, pela via familiar, do que estava a acontecer, embora ninguém soubesse bem o que realmente estava a acontecer.
O afluxo súbito de mais de meio milhão de pessoas pressionou o mercado de trabalho e a habitação, as escolas, os preços, aumentou a procura de bens essenciais e expôs fragilidades. Casas, hotéis e outros prédios foram tomados pelo Estado para albergar estes migrantes. Eram maioritariamente brancos, falavam português, tinham família, mas muitos não se sentiam portugueses, nem os “portugueses” os viam como iguais. Gerou-se inveja, confrontos culturais, nasceram guetos e comunidades. Os de cá não os queriam, nem eles queriam estar cá.
Houve tensões e estigmas, mas também um impulso decisivo: muitos retornados trouxeram qualificações, hábitos de gestão moderna e redes comerciais, dinamizando o comércio, a restauração, os serviços e a construção. Em várias cidades, criaram negócios, injetaram poupanças, difundiram novos consumos e estimularam a concorrência. No plano social, a integração foi desigual, marcada por traumas e por adaptações forçadas. Ainda assim, a pluralidade cultural, culinária e linguística que trouxeram acordou um país adormecido pelo salazarismo. A médio prazo, os impactos foram enormes na demografia, na economia e no dinamismo urbano e empresarial. Uma bênção, portanto.
Os retornados, enfatizo, foram genericamente muito maltratados, vítimas da tradicional inveja, má-língua e desprezo dos nativos. E foram precisos muitos anos para a sua normalização.
Atualmente residem em Portugal cerca de 1,6 milhões de estrangeiros. Na minha freguesia (Arroios, Lisboa) há registo da existência de pessoas de 92 nacionalidades. Sempre que vou andar para os lados do Martim Moniz, vejo indostânicos, brasileiros, romenos, ucranianos, russos, e até portugueses, a maior parte deles verdadeiros zombies humanos, viciados em drogas pesadas, simulacros de humanos. Aqueles portugueses, acreditem, assustam.
É possível que a redução da concessão de vistos venha a ter um impacto nas nossas vidas: afinal, quem vai construir a nova ponte e o novo aeroporto? E as casas que tanto precisamos? E quem vai fazer e transportar o hambúrguer? E a cozinha do nosso restaurante preferido? E quem vai beber a nossa cerveja e sustentar o aumento do consumo de bens de primeira necessidade se deixar de haver brasileiros?
Por outro lado, temos fechado os olhos aos verdadeiros efeitos negativos do súbito amor de estrangeiros desqualificados e qualificados por Portugal. Hospitais, escolas, casas: tudo falta para tanta procura.
O que falta, também, é equilíbrio.
A mensagem equilibrada, um certo bom senso informado, são, talvez, um dos maiores males deste mundo novo e nada admirável. Quem se quer fazer notar tem de gritar, e grita cada vez mais, e mais e mais até ficarmos todos surdos — numa versão moderna do pensamento de Gandhi: “olho por olho e o mundo acabará por ficar cego”.
O desafio de quem trabalha a comunicação de líderes moderados é enorme. Mas tudo vai piorar: um dia destes veremos políticos a tirar a roupa no Rossio para se fazerem notar e, acreditem, haverá quem queira ver aquelas peles descaídas.
* Eu sou estrangeiro em minha casa (original em Bengali, língua falada em regiões da Ásia, a 6ª mais falada no mundo).
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