À luz de LUX: a coerência da aparente inconsistência

  • José Pedro Marques da Silva
  • 12:26

Para quem trabalha marcas, o convite é menos tático e mais filosófico: aceitar que a consistência do futuro não é a de repetir, é a de reconhecer. E reconhecer é um verbo ativo.

Percebe-se que muita gente olha para LUX como “a guinada clássica” de ROSALÍA. Mas é possível ver outra coisa: um capítulo de governação de marca em que a mudança deixou de ser risco para passar a ser património. O disco organiza-se como quatro movimentos, canta-se em 13 línguas e assenta numa espinha orquestral (London Symphony Orchestra) — sinais que, mais do que “mudanças de estilo”, formalizam uma ambição antiga: já não estamos perante uma artista de géneros; estamos perante uma autora com um léxico próprio, capaz de vestir formas muito diferentes sem perder o timbre identitário. É aqui que a marca ROSALÍA se agiganta: a coerência vive no “porquê”, não no “como”.

Se pensarmos na consistência como “reconhecimento no escuro”, LUX acrescenta luzes novas sem mexer na tomada. O sagrado e o profano continuam próximos, a voz volta a funcionar como instrumento percussivo e emocional, a iconografia litúrgica persiste, com a adição da liturgia sinfónica. Em linguagem de branding: os distinctive assets ampliam-se. O que muda é a textura (a orquestra como novo código), não a gramática (a tensão tradição/vanguarda). Esse é o truque raro da coerência dinâmica: variar a superfície para aumentar a probabilidade de reconhecimento, não para a diluir. O resultado, do ponto de vista competitivo, é um reposicionamento elegante.

Há também um raciocínio de arquitetura de portefólio. Em vez de colecionar singles que funcionam e vendem, Rosalía programa um objeto com dramaturgia: movimentos, arcos, entradas e saídas de colaboradores que funcionam como co-brands de elasticidade (quando Björk, Carminho ou um coro monástico entram, alargam a fronteira da marca, como parcerias estratégicas). O efeito é curioso: ao mesmo tempo que especializa e torna mais específico o destinatário de cada ativo, a marca abre horizontes culturais e geográficos sem cair na glocalização utilitária. As 13 línguas não são um truque de penetração de mercados; são uma estética da abertura que torna o mundo legível na voz dela.

A estratégia de Rosalía respira longo prazo, consciente e mais evidente agora que vemos este novo “produto”. Se acreditamos no 60/40 (construção de marca versus ativação), LUX é um investimento deliberado do lado dos 60: constrói memória, eleva estatuto, treina o público para um consumo menos automático. O curto prazo não desaparece, mas já não manda no produto, serve o projeto. É uma economia da atenção qualificada: menos ubiquidade de playlist, mais conversa cultural que perdura depois do ciclo de lançamento. Isso, em FMCG ou em cultura pop, é o que normalmente corrige a erosão de preço: quando a forma como as pessoas falam de si muda, o valor deixa de ser só o que se ouve (ou prova) e passa a ser o que significa.

Este “crescimento por significado” tem custos, e é aí que se vê estratégia. A artista abdica de algum conforto transacional da previsibilidade de bops imediatos para reclamar uma posição mais alta na hierarquia simbólica.

Parte da base de consumidores estranha? Inevitável. Mas o ganho de elasticidade compensa: quanto mais repertório de formas a marca domina, mais contextos futuros pode habitar sem parecer oportunista. Poderíamos chamar a isto stretch com lastro, quando a audiência aprende a reconhecer o “porquê” de uma marca, tolera, e pode até desejar, que o “como” mude.

LUX faz precisamente essa passagem: mostra novas faces (o formalismo clássico, o oratório moderno, as vozes e os territórios que cheiram a arquivo e autoridade) mantendo a refração habitual (a fricção entre devoção e carne, o corpo como percussão, a montagem digital como artesanato). Holt lembraria que marcas icónicas não entregam apenas valor funcional, oferecem mitos de identidade. Em LUX, o mito é explícito: santos, culpa, perdão, desejo, transcendência. O conto não é para lavar a imagem, é para a complicar, e nisto há uma virtude estratégica: complexidade bem governada cria assunto. E assunto tende a significar alcance.

O multilinguismo merece um parágrafo à parte. Noutros contextos soaria a expediente de expansão. Aqui é pontuação estética. É um gesto de universalismo não paternalista que, ironicamente, preserva a especificidade. Repare-se como esta decisão aumenta as alavancas da recordação e da identificação com o produto, mais portas por onde a memória pode entrar e, ao mesmo tempo, mais hipótese de reconhecimento cruzado quando esses sinais reaparecem no futuro, como conseguimos recuperar agora primeiras evidências de trabalhos anteriores de Rosalía. É assim que se constrói share of mind sustentável.

Do lado da execução, a disciplina editorial nota-se. Não há acumulação de efeitos; há escolha. O anúncio e a iconografia são cirúrgicos, o calendário serve a escuta, e o objeto-álbum volta a valer como “ocasião” — um ritual, não um produto de linear. Em tempos de fragmentação, isto é contracíclico e, por isso mesmo, distintivo. Não surpreende que a crítica sublinhe o caráter “exigente” do trabalho: pede tempo, pede contexto, pede vontade. Quando a cultura inteira foi desenhada para o entretanto, o enquanto faço outra coisa, exigir atenção é, paradoxalmente, a forma mais rápida de subir de divisão e o que temos visto os grandes nomes de referência e verdadeiro impacto cultural fazer nos últimos anos.

O que está, então, a acontecer com a marca? Está a consolidar uma política oficial da mudança. Cada era não nega a anterior, expande-a. A consistência deixa de ser “soar sempre igual” e passa a “ser sempre reconhecível” pela ideia que a despoleta, pelos códigos que a antecedem, pela ambição que os amplia. Em termos de gestão, isto tem uma implicação prática: quando uma marca governa bem os seus limites, pode transformar a própria contradição em recurso. A incoerência aparente torna-se coerência propositada. E isso é ouro, em qualquer categoria onde o curto prazo tenta, todos os dias, devorar o longo.

Para quem trabalha marcas, o convite é menos tático e mais filosófico: aceitar que a consistência do futuro não é a de repetir, é a de reconhecer. E reconhecer é um verbo ativo: pede edição, pede recusa, pede surpresa controlada. LUX mostra que se pode crescer por variação sem perder a essência, desde que a essência venha primeiro. O resto, a orquestra, as línguas, os colaboradores, são apenas formas de dizer a mesma coisa com outra luz. E não é isso, no fundo, que pedimos a uma grande marca?

  • José Pedro Marques da Silva
  • Head of brands and market development da Lactogal

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