O cliente perfeito

  • Marcelo Lourenço
  • 15 Outubro 2024

Sempre que agarro num novo briefing, lembro-me desta história. E rezo para que quem vá aprovar a campanha tenha tantos tomates quanto a minha mãe.

Muita gente me pergunta: “Qual é o melhor cliente com quem eu já trabalhei?” E a resposta é sempre a mesma: a minha mãe. A Dona Janda não é nenhuma diretora de marketing, nunca trabalhou numa agência de publicidade (muito menos na minha), e não faz ideia do que é um insight ou, Deus-me-livre-e-guarde, um focus group. Mas, uma vez, vi a minha mãe a lidar com um criativo e pensei: é assim que todo cliente deveria ser.

Um pouco de contexto sobre quem é a minha mãe: como tantas mulheres no Brasil da sua geração, a Dona Janda não frequentou o ensino superior. A sua profissão foi, como se dizia antigamente, ser “do lar” – o que significa ser dona de casa e mãe a tempo inteiro. Isso nunca a impediu de ser uma das mulheres mais empoderadas que eu conheço.

Quando me mudei para Portugal, a Dona Janda pegou no meu pai e, duas semanas depois, estava em Lisboa, a visitar a Lintas, a primeira agência onde trabalhei aqui, só para ver se eu estava a ser bem tratado (o que quase me matou de vergonha). Desde então, os meus pais vêm quase todos os anos a Portugal.

Numa dessas vindas a Lisboa, a minha mãe decidiu que precisava cortar o cabelo. Eu levei-a ao Facto, que naquela altura era o mais famoso salão de cabeleireiros da cidade, cheio de malta recém-chegada de Londres e Berlim, pronta para mudar o mundo e a moda, um corte de cabelo de cada vez. A minha mãe senta-se à frente do cabeleireiro e diz: “Menino, faça o corte mais maluco que você conseguir.”

Todo criativo já se deparou com este briefing tantas vezes que até chateia: “Surpreende-me!” “Quero ver algo criativo, disruptivo, quero uma campanha que ganhe um Leão em Cannes!”

O jovem cabeleireiro reagiu como a maioria dos criativos costuma fazer diante de um pedido assim: coçou a cabeça e perguntou: “Tem mesmo a certeza, minha senhora?” O meu pai, o account nesta história toda, tentou colocar panos quentes: “Janda, também não é preciso exagerar…” Resposta da Dona Janda: “O cabelo é meu e eu corto como quiser.” E assim foi.

Antes que alguém decidisse voltar atrás, o cabeleireiro agarrou na máquina de tosar e rapou toda a lateral da cabeça da minha mãe. E continuou a cortar o cabelo com aquele brilho divino que ilumina o rosto de um criativo que está a fazer a campanha da sua vida. Meia hora depois, o corte estava pronto — e a minha mãe estava com o cabelo pintado de azul, com um dos lados da cabeça todo rapado e o outro com uma ponta triangular que ia quase até ao queixo. O cabeleiro pergunta: “Então? Gostaste?”

Quem já trabalhou numa agência já presenciou este momento: o cliente diz “quero ser disruptivo” e a agência lança-se do precipício. Chega o dia de verem a proposta e o voo transforma-se num tremendo dum espalhanço. “Afinal não podemos ir tão longe”, “Isto não era bem o que eu tinha imaginado”, “A ideia é boa mas não vejo aqui os valores da marca.” E a culpa cai toda no colo do criativo, que não soube ler direito o briefing. E a ideia, coitada, é fuzilada.

Não foi a reação da minha mãe. A Dona Janda olhou-se ao espelho, disse: “Adorei” e deu um abraço ao rapaz — que quase foi às lágrimas.

O cliente de sonho de todo criativo é alguém que pede algo original, que é fiel a este pedido até às últimas consequências e que sabe reconhecer algo que faz jus a este termo tão maltratado na nossa indústria: a ideia criativa.

Nunca cheguei realmente a saber se a minha mãe gostou mesmo do corte de cabelo, mas o tempo veio a provar que era uma dessas ideias que merecem o Grand Prix.

Por dois motivos: Primeiro, começou imediatamente a gerar buzz: de volta a São José do Rio Preto (interior de São Paulo), o novo “cabelo da Janda” virou o assunto no clube, na associação de reformados, com uma verdadeira romaria até à casa dos meus pais para ver como era um penteado “vindo da Europa”.

E segundo, se passou algo que só acontece com as grandes ideias: o cabelo virou uma tendência – o famoso corte de cabelo da minha mãe foi tão falado, que uma escola de cabeleiros do bairro a convidou para uma aula especial, onde os alunos iriam aprender a fazer (e a copiar) o famoso “cabelo da Dona Janda”.

Sempre que agarro num novo briefing, lembro-me desta história. E rezo para que quem vá aprovar a campanha tenha tantos tomates quanto a minha mãe.

  • Marcelo Lourenço
  • Co-fundador da Coming Soon Lisboa

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