Onde é que tínhamos a cabeça?
Os criativos querem arriscar. Não dormem por causa disso, discutem consigo próprios, entre eles, com os accounts, arreliam os estrategas, mas não se ficam pelo seguro. Continuem, por favor!
“Uma campanha feita por um filme a preto e branco, passado numa rua de empedrado escorregadio, onde uma miúda em biquíni passeava a cavalo, cruzando-se com uma ursa e um palhaço numa bicicleta enquanto caía uma chuva de milhares de peixes terminando com um homem com uma vela gigante de aniversário acesa na cabeça debaixo de uma paragem de autocarro com os seus amigos, rematado com a voz off que dizia tudo o que vem à rede é fixe(fish)… onde é que tínhamos a cabeça, António???”
Quem me fez esta pergunta, há poucos dias, no meio de gargalhadas, foi o próprio realizador da campanha, Tiago Guedes, 22 anos depois de termos filmado e posto no ar a campanha de 1º aniversário da Yorn. Respondi “sei lá” ao Tiago. Mas agora, em que por outro propósito me perguntaram acerca da ousadia ou falta dela, nas marcas e nas agências, acho que vou conseguir responder melhor ao Tiago. E a mim mesmo, já agora.
Bem, primeiro não sei se ousadia, que me parece uma palavra com conotação demasiado romântica, nos ajuda. Prefiro pensar em risco. Em arriscar. É isso que os gestores e publicitários fazem (ou não) todos os dias. Será que andamos propensos ao risco, ou pelo contrário, depois de sustos reais como o covid e a guerra ainda estamos pouco avessos ao risco? E digo estamos, plural, agências e clientes, mas eu até acho que há diferenças. Já lá vamos.
Na história do início, a campanha do 1º aniversário Yorn, apesar de ser ousada na forma, não a vi como um risco, era uma obrigação. Um caminho de sentido único. A marca Yorn ou arriscava ou falhava o objetivo de conquistar um target que precisava de ver algo novo, algo inédito, insólito, para que se identificasse. Estudamos isso profundamente, nesses dias. Foi, portanto, a resposta a um briefing. Risco? Risco era passar o briefing e depois não responder à altura.
Por isso, se calhar, prefiro dar mais exemplos de outros riscos também corridos por marcas que basearam um posicionamento, ou lançamento de negócio, em fórmulas criativas até aí não exploradas, logo arriscadas. A Frize, por exemplo, há uns bons anos atrás, apostou todas as fichas num artista de humor de rua ainda pouco conhecido a não ser pela sua irreverência. O Pedro Tochas lançou a Frize. De quase desconhecido passou para os grp’s de prime time e foi pilar para marca. Risco e recompensa.
E temos exemplos mais recentes, de marcas e de marketeers que têm entendido o risco não como uma bravata, mas como algo que se assume, porque temos que atingir metas ambiciosas, porque faz parte de gerir. Gerir para o sucesso, gerir para atingir e superar objetivos. E não gerir preconceitos individuais, de clientes internos, ou de outras influências. Nem gerir o conforto, essa palavra que parece legitimar tantas vezes a aniquilação do risco (mesmo que calculado).
Há poucos anos o Lidl trouxe-nos, com as alfaces, a frescura de um humor a que não estávamos habituados, a Vodafone assumiu que queria ser vista como uma marca de causas portuguesas e recentemente vi a Uber Eats e a BetClic com um discurso e forma de uma contemporaneidade nada vulgares. Riscos. Espero que estejam a compensar, até consigo arriscar que sim. E uma palavra para todas as marcas que depois seguem esses estilos. Pode ser compreensível, porque pode parecer seguro. Mas um briefing que diz “à la Vodafone, ou lá Lidl”, não é um sinónimo de arriscar. É sim traçar um risco por cima da inovação e da criatividade. Que são essenciais ao sucesso.
Quanto às agências, enquanto escrevo, já abro um sorriso. Um sorriso e um elogio às agências, aos criativos de Portugal. Ainda não vi agência que não sofresse com o processo, que não sofresse com o desconforto. Porque o risco é desconforto. Porque à mesa do cliente não compensa levar criatividade morna. Porque podemos um dia vender uma campanha morna, podemos até vender outras mais, mas não é essa a fórmula que perpetuará o negócio.
Qual é o cliente que se considera satisfeito com a sua agência que traz sempre campanhas “tão certinhas que nunca tiram o sono”? Acertaram, é o cliente que assusta todos os outros. E as agências, por isso mesmo e, porque passado décadas a conhecê-las posso dizê-lo, não têm isso no seu ADN.
Os criativos querem arriscar, querem o novo, o que nunca foi feito. Não dormem por causa disso, discutem consigo próprios, discutem entre eles, discutem com os accounts, arreliam os estrategas, mas não se ficam pelo seguro. Pelo menos aqueles com quem trabalho e trabalhei não o fazem. E muitos outros com quem me cruzei também não. Esses sim, fazem do risco a sua profissão. Continuem, por favor!
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