
O feriado da memória
Quando falar de escravatura, racismo ou do exercício irresponsável do poder é visto como intrusivo, isso diz mais sobre o desconforto da sociedade com a própria imagem do que sobre o discurso em si.
No Dia de Portugal, celebrado este ano em Lagos, o discurso de Lídia Jorge emergiu como um raro momento de sobriedade e profundidade num espaço que, por vezes, se presta mais à celebração ritual do que à reflexão crítica. Numa sociedade marcada por recentes tensões latentes, entre memória e esquecimento, identidade e exclusão, tradição e futuro, a intervenção da escritora impôs-se como um apelo à consciência coletiva. Não como quem grita, mas como quem obriga a escutar. Capaz de contrariar narrativas fáceis e sedimentar uma mensagem muitas vezes deixada de lado, a complexidade da identidade nacional.
Do ponto de vista da comunicação, o discurso foi exemplar na forma como contrariou o padrão habitual, evitou os lugares-comuns, recusou o tom triunfalista e optou antes por uma narrativa clara, pausada e literária, profundamente política sem ser panfletária. Lídia Jorge não falou apenas para os presentes, mas para a História, convocando Camões, Cervantes e Shakespeare não como ornamento, mas como âncoras de sentido. Essa escolha, densa e deliberada, pode ter afastado parte do público, mas elevou o tom da celebração a um patamar de exigência rara, além do efémero mediático, insere a sua voz num quadro civilizacional e atemporal.
O momento mais partilhado “não há sangue puro” tornou-se viral porque atinge o nervo exposto do presente: o medo do outro, o revisionismo histórico vindo de extremos políticos, a ilusão da homogeneidade cultural. Ao afirmar que todos somos “nativos e migrantes”, a autora colocou-se num campo que exige coragem, o de uma portugalidade plural, mestiça, inacabada. Numa altura em que o espaço público se vê invadido por discursos xenófobos ou simplificadores, a mensagem de Lídia Jorge foi, em si, um ato de resistência.
A escolha do tema da escravatura, com menção direta aos milhares de africanos traficados por Lagos, rompeu com o silêncio institucional que ainda perdura em torno da dimensão violenta dos Descobrimentos. O passado glorificado foi confrontado com o seu custo humano. E, nesse gesto, o discurso tornou-se simultaneamente incómodo e necessário.
A receção mediática revelou o seu impacto: enquanto uns aplaudiram a coragem e a densidade moral da intervenção, outros acusaram-na de “politizar” o feriado nacional. É uma crítica reveladora. Quando falar de escravatura, racismo ou do exercício irresponsável do poder é visto como intrusivo, isso diz mais sobre o desconforto da sociedade com a sua própria imagem do que sobre o discurso em si.
No campo político, o Presidente da República respondeu, num gesto de rara sintonia, com uma mensagem que ecoou a da escritora, destacando também a ausência de “sangue puro” e a necessidade de inclusão. Mas já nos partidos, as reações oscilaram entre o elogio contido e o silêncio estratégico. Talvez porque, em tempos de populismo e simplificação, discursos com densidade reflexiva são comunicacionalmente vistos como difíceis de capitalizar.
Lídia Jorge fez o que se espera de uma voz intelectual: não confortar, mas desafiar. Num país onde a comunicação política tende ao soundbite e à vacuidade, o seu discurso foi um ato contra o ruído, uma defesa da palavra com sentido, da história com memória.
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