O futuro da comunicação social*

  • Rui Moreira
  • 15:43

Talvez nunca como hoje o mundo precise da credibilidade dos media e da sua relação de confiança com os cidadãos. A evolução das tecnologias digitais exponencia as possibilidades de desinformação.

O tema em debate é da maior importância para a vitalidade e longevidade do regime democrático. Do futuro da comunicação social dependem a liberdade, pluralismo e coesão da sociedade portuguesa. Está, pois, de parabéns o jornal ECO por promover esta reflexão sobre os complexos desafios que a indústria dos media enfrenta na atualidade.

Tenho grandes expectativas sobre a conferência que nos reúne aqui hoje [sexta-feira] . Pelo interesse dos painéis de debate, pela qualidade dos oradores e sobretudo pela urgência do tema em análise, vamos assistir certamente a uma conferência muito estimulante e útil.

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

A comunicação social atravessa uma grave crise em Portugal e no mundo. A meu ver, essa crise é provocada por três fatores em particular.

  1. O primeiro fator é a obsolescência do modelo de negócio dos media, sustentado em grande medida pelas receitas publicitárias.
  2. O segundo fator é a disrupção tecnológica em curso, que tem vindo a empurrar os media tradicionais para uma posição secundária na difusão da informação.
  3. O terceiro fator é a degradação das democracias liberais, que está a motivar uma crescente desvalorização do papel da comunicação social e a impor sérias limitações ao jornalismo livre e plural.

Relativamente ao modelo de negócio, sabemos que a concorrência avassaladora das plataformas digitais retira publicidade aos media. Esta realidade tende a comprometer a sustentabilidade e autonomia económica da comunicação social. Com a agravante das redes sociais vampirizarem os conteúdos dos media, sem a devida compensação financeira.

Acresce que a transição para o digital não está a gerar os proveitos necessários para sustentar a dispendiosa atividade dos media. Na verdade, não há ainda um modelo de negócio alternativo para a comunicação social, que seja capaz de garantir a sua viabilidade económico-financeira sem concessões na independência editorial.

Com a emergência das plataformas digitais, os media também deixaram de assumir o papel principal no acesso dos cidadãos à informação. A comunicação social tem perdido terreno para as redes sociais enquanto fonte de informação, sobretudo entre os mais jovens. Ora, esta primazia das redes sociais como fontes de informação ensombra o futuro do jornalismo e põe em causa a influência pública dos media, sendo por isso um perigo para a democracia liberal.

Não há vida democrática sem uma comunicação social independente, forte e sustentável.

Por não terem intermediários ou meios de regulação, as redes sociais acobertam todo o tipo de falsidades, intrigas, rumores, boatos e conspirações. Além disso, os algoritmos das redes sociais estão a substituir os editores dos media enquanto gatekeepers. Ou seja, os algoritmos passaram a decidir que informação podemos ver de acordo com critérios que não são os do chamado “valor-notícia”. São critérios muitas vezes com um viés político ou uma intenção deliberada, definidos em função do comportamento dos utilizadores.

Rui Moreira

Por não terem intermediários ou meios de regulação, as redes sociais acobertam todo o tipo de falsidades, intrigas, rumores, boatos e conspirações. Além disso, os algoritmos das redes sociais estão a substituir os editores dos media enquanto gatekeepers. Ou seja, os algoritmos passaram a decidir que informação podemos ver de acordo com critérios que não são os do chamado “valor-notícia”. São critérios muitas vezes com um viés político ou uma intenção deliberada, definidos em função do comportamento dos utilizadores.

Em muitos casos, as plataformas digitais estão a ser utilizadas como veículos de desinformação, tribalização e conflito – o que colide com os princípios do Estado de direito e os valores da democracia liberal.

Parece-me, de resto, que a crise das democracias liberais é indissociável da crise dos media. Uma crise alimenta a outra. Uma crise repercute-se na outra, gerando a autofagia das sociedades democráticas. Sem uma democracia robusta e efetiva, a comunicação social não dispõe de um ecossistema onde possa exercer livremente e com pluralismo a sua função informativa.

Da mesma forma que, sem uma comunicação social forte e independente, não é possível escrutinar e responsabilizar os poderes democráticos. Não é possível ter instituições políticas justas e transparentes. Não é possível construir relações de confiança entre eleitos e eleitores. Não é possível promover uma cidadania ativa, esclarecida e vigilante.

A ascensão dos populismos e demais tribalismos, que tanto tem fragilizado as democracias liberais, também se deve à desvalorização da função mediadora do jornalismo na transmissão da informação.

Os riscos para a democracia e para o Estado de direito são evidentes, caso a informação fique entregue a órgãos não jornalísticos ou a redes sociais que não cumprem as regras da ética, da deontologia ou simplesmente da urbanidade. Que não haja dúvidas: o jornalismo independente é fundamental para o regular funcionamento das instituições democráticas, ao garantir o pleno exercício da liberdade de informar e de ser informado. Sem órgãos de informação livres, plurais e imparciais, a democracia será sempre incompleta ou disfuncional.

Talvez nunca como hoje o mundo precise da credibilidade dos media e da sua relação de confiança com os cidadãos. A evolução das tecnologias digitais, em particular da Inteligência Artificial, exponenciou as possibilidades de desinformação, manipulação e fraude.

Perante a profusão de fake news, trolls, deepfakes e outros mecanismos de desinformação, a intermediação jornalística tornou-se absolutamente indispensável para o esclarecimento e a autonomia das sociedades democráticas.

É por isso paradoxal que, no atual momento histórico, se verifique uma crescente desvalorização social, um crescente enfraquecimento económico, um crescente desnorte editorial dos media tradicionais.

Nos Estados Unidos assistimos a uma hostilidade inaudita contra os media. A nova Administração americana cortou nos apoios públicos e outros meios de financiamento à comunicação social. A Casa Branca passou a selecionar os meios autorizados a cobrir a agenda presidencial, tendo suspendido a Associated Press por esta se recusar a adotar a designação “Golfo da América”. Aliás, os blogueres, podcasters e criadores digitais afetos ao movimento MAGA têm prioridade nas conferências de imprensa e noutras iniciativas da Administração Trump.

Rui Moreira

Nos Estados Unidos assistimos a uma hostilidade inaudita contra os media. A nova Administração americana cortou nos apoios públicos e outros meios de financiamento à comunicação social. A Casa Branca passou a selecionar os meios autorizados a cobrir a agenda presidencial, tendo suspendido a Associated Press por esta se recusar a adotar a designação “Golfo da América”. Aliás, os blogueres, podcasters e criadores digitais afetos ao movimento MAGA têm prioridade nas conferências de imprensa e noutras iniciativas da Administração Trump.

Os também chamados legacy media são diariamente insultados pelo Presidente americano, em particular a CNN e a NBC, que Trump considera “ilegais” apenas por que o criticam. Além disso, avolumam-se os processos judiciais da Administração americana contra meios de comunicação social, com risco de indeminizações milionárias.

Mas este caldo de cultura não é, infelizmente, exclusivo dos Estados Unidos. Também na Hungria foram impostas fortes restrições ao jornalismo independente, nomeadamente multas por “cobertura desequilibrada”. Também na Eslováquia os meios de informação classificados de “inimigos” foram impedidos de entrar no Gabinete do Governo. Também em Itália aumenta a repressão sobre os media, ao ponto de o país ter, em 2024, caído cinco posições no índice de liberdade de imprensa.

De resto, há uma tendência crescente de os diferentes poderes se furtarem à intermediação e escrutínio jornalístico, mesmo em democracias sãs e funcionais.

É cada vez mais frequente os políticos comunicarem diretamente com os eleitores através das redes sociais. É cada vez mais frequente as empresas e os empresários intervirem publicamente a partir dos media corporativos. É cada vez mais frequente os presidentes, treinadores e jogadores de futebol serem entrevistados apenas pelos canais do respetivo clube.

Tudo isto, repito, para não se sujeitarem à intermediação e escrutínio jornalístico, condição essencial para a qualidade das democracias.

O que acabei de relatar configura um cenário nada auspicioso para o futuro dos media. A comunicação social tal como a conhecemos e prezamos está efetivamente em risco pelas razões económicas, tecnológicas e políticas que referi. No caso português são sobretudo a insustentabilidade financeira e a perda de peso, influência e popularidade dos media tradicionais a causarem as maiores preocupações.

Rui Moreira

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

O que acabei de relatar configura um cenário nada auspicioso para o futuro dos media. A comunicação social tal como a conhecemos e prezamos está efetivamente em risco pelas razões económicas, tecnológicas e políticas que referi.

No caso português são sobretudo a insustentabilidade financeira e a perda de peso, influência e popularidade dos media tradicionais a causarem as maiores preocupações.

Por ora, a nossa democracia ainda não está capturada pelo populismo. Como vemos noutras sociedades, os movimentos populistas de direita e de esquerda são os grandes responsáveis pelas pressões políticas sobre a comunicação social e pelas restrições à liberdade de imprensa.

Os nossos esforços devem, portanto, incidir na melhoria das condições económico-financeiras dos órgãos de comunicação social portugueses. Bem assim como na criação de hábitos de consumo dos media tradicionais, em particular entre as novas gerações.

Parece-me importante a promoção da literacia mediática entre os jovens. A compreensão dos mecanismos de produção noticiosa facilita a adesão de novos públicos e a criação de novos hábitos, impulsionando o consumo mediático.

Aumentar o consumo de informação jornalística concorre para a valorização e sustentabilidade dos media, ao mesmo tempo que ajuda a formar melhores cidadãos.

O acesso aos conteúdos da comunicação social de referência tem implicações que vão muito para lá da “espuma dos dias”. Não se trata apenas de manter os jovens atualizados sobre o que se passa no país e no mundo, embora isso já seja muito importante. Trata-se, sim, de informar educando.

A qualidade, o rigor e a profundidade da informação transmitida pelos media proporcionam aos jovens uma compreensão mais cabal das circunstâncias históricas e sociais em que estão inseridos. Ora, esta compreensão possibilita a formação de cidadãos mais conscientes do seu papel na sociedade.

Cidadãos mais informados tendem a ser mais esclarecidos, mais responsáveis, mais sensatos. A informação promove uma mundivisão mais clarividente e refletiva. Logo, menos atreita ao obscurantismo, ao sectarismo e à xenofobia que caracterizam os populismos e demais tribalismos que estão a estiolar as democracias liberais.

Acresce que o consumo de notícias é um processo cognitivo complexo, que exige reflexão, esforço intelectual, problematização e espírito crítico. Os media podem ter um importante papel na construção do indivíduo, na medida em que possibilitam a expansão do seu conhecimento, o desenvolvimento do seu intelecto, a definição da sua visão do mundo.

Podemos por isso concluir que a comunicação social favorece o processo educativo dos jovens. Os media são de facto um veículo fundamental na transmissão do saber, no desenvolvimento do pensamento, na criação de ideias e no estímulo à criatividade.

Dito isto, deve saudar-se a decisão governamental de disponibilizar, gratuitamente, assinaturas de jornais aos jovens entre os 15 e os 18 anos. Assim como merecem aplauso iniciativas como o Plano Nacional de Literacia Mediática ou projetos como o P Superior, promovido pelo jornal Público, que fomentam o consumo responsável e informado de conteúdos mediáticos.
Ao combaterem a iliteracia mediática, estes projetos e iniciativas proporcionam aos jovens ferramentas intelectuais para uma melhor avaliação da credibilidade das fontes, da veracidade dos factos, do rigor da informação e da isenção dos meios. Desta forma, está-se também a incentivar a descoberta dos media ou a consolidar hábitos de consumo noticioso.

Rui Moreira

Dito isto, deve saudar-se a decisão governamental de disponibilizar, gratuitamente, assinaturas de jornais aos jovens entre os 15 e os 18 anos. Assim como merecem aplauso iniciativas como o Plano Nacional de Literacia Mediática ou projetos como o P Superior, promovido pelo jornal Público, que fomentam o consumo responsável e informado de conteúdos mediáticos.

Ao combaterem a iliteracia mediática, estes projetos e iniciativas proporcionam aos jovens ferramentas intelectuais para uma melhor avaliação da credibilidade das fontes, da veracidade dos factos, do rigor da informação e da isenção dos meios. Desta forma, está-se também a incentivar a descoberta dos media ou a consolidar hábitos de consumo noticioso.

Sem paternalismo nem receios atávicos, importa que o consumo dos media seja visto pelos jovens não como um hábito do passado, mas sim como uma janela para o futuro.

Mas também me parece essencial que os media saibam comunicar com os jovens. Que conheçam os seus problemas e comunguem das suas preocupações, expectativas e desafios. Só assim, com esta sintonia, será possível cativar mais jovens para os conteúdos da comunicação social de referência.

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

Como já disse noutros fóruns, a atual crise dos media exige dos poderes públicos ações que promovam a sustentabilidade e autonomia financeira das empresas de comunicação social.

Seja por receio de constranger a independência editorial dos media, seja por receio de interferir numa atividade económica privada, a intervenção do Estado no setor tem ficado aquém das necessidades.

Segundo a Constituição portuguesa, “o Estado assegura a liberdade e a independência dos órgãos de comunicação social perante o poder político e o poder económico.”

Por conseguinte, é da competência do Estado garantir a autonomia e sustentabilidade dos media de forma justa, transparente e não discriminatória. Assim como lhe compete combater o discurso anti mediático, que degrada a democracia e alimenta populismos.

Não há limitações legais ou outras que impeçam o Estado de contribuir para a viabilidade e sustentabilidade financeira da comunicação social. O Estado deve, pois, ter uma intervenção assertiva no espectro mediático português. Não com o intuito de controlar ou pressionar os media, mas sim para garantir o exercício livre e plural do jornalismo e fortalecer o serviço público de comunicação social.

Aos que receiam a perda da independência dos media, devo lembrar que, durante a pandemia, foram concedidos apoios públicos à comunicação social. E esta não deixou de fazer o seu trabalho com liberdade, isenção e contundência.

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

A informação é um bem público. Por isso, deve ser devidamente protegida pelas instituições democráticas e pela sociedade em geral. E nem sequer é preciso inventar a roda. Basta olhar para o que outros países estão a fazer para que os seus meios de comunicação social continuem a informar sem constrangimentos financeiros ou outros.

A intervenção do Estado nesses países não resolve tudo. Mas os apoios públicos são fundamentais para assegurar o bom funcionamento dos respetivos ecossistemas mediáticos.

Em países com mais tradições liberais do que o nosso, designadamente do Norte da Europa, são frequentes e substantivos os apoios públicos à comunicação social. Apoios esses que se efetivam quer por via fiscal, quer através de subsídios, quer ainda pela redução dos custos de contexto.

Devemos libertar-nos dos nossos tabus e seguir o exemplo de outros países europeus, em que o financiamento direto e indireto dos media pelo Estado é visto como uma resposta legítima, eficaz e socialmente consensual. Neste pressuposto, também o poder local deve ser chamado para a resolução dos problemas da comunicação social.

Rui Moreira

Devemos libertar-nos dos nossos tabus e seguir o exemplo de outros países europeus, em que o financiamento direto e indireto dos media pelo Estado é visto como uma resposta legítima, eficaz e socialmente consensual. Neste pressuposto, também o poder local deve ser chamado para a resolução dos problemas da comunicação social.

Por estarem próximas dos cidadãos e assumirem especiais responsabilidades na defesa dos interesses locais e regionais, as autarquias, áreas metropolitanas e comunidades intermunicipais podem contribuir para a estabilidade financeira dos media. É aliás um imperativo político que o façam, tratando-se de órgãos de comunicação social com grande impacto nas respetivas comunidades locais e regionais.

Deve ser dada ao poder local a possibilidade legal de participar no capital social das empresas de media, à semelhança do que acontece com o Estado central.

Retirado este impedimento, o poder local poderá apoiar diretamente os media com regras mais claras e mecanismos mais eficazes de fiscalização. Além disso, terá melhores condições para mobilizar as comunidades locais e regionais na defesa dos meios de comunicação social que lhes são mais próximos.

* “O futuro da comunicação social” foi a intervenção de abertura do presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira, na conferência do ECO e Local Online, com o apoio da Tabaqueira (grupo Philip Morris).

  • Rui Moreira
  • Presidente da Câmara Municipal do Porto

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