
O paradoxo da personalização: quando “conhecer o cliente” se torna assédio digital
O teste da personalização não é quantos dados conseguimos recolher ou quão precisos são os nossos algoritmos. É se conseguimos fazer o consumidor sentir-se compreendido sem se sentir vigiado.
Já recebeu aquele email que começa com “Olá [Seu Nome], sabemos que gosta de…” seguido de uma recomendação completamente desajustada? Ou aquela notificação push que aparece no momento menos oportuno? Bem-vindos ao pesadelo do marketing: o paradoxo da personalização.
Enquanto os marketeers se pavoneiam com dashboards repletos de métricas de engagement, uma realidade incómoda está a emergir dos dados: a fadiga do marketing é real. Os consumidores sentem-se assoberbados e prontos para carregar em “unsubscribe”. Paradoxalmente, isto acontece numa era em que as marcas investem mais do que nunca em personalização.
A indústria vendeu-nos a ideia de que conhecer profundamente o cliente é o santo graal do marketing moderno. E, tecnicamente, não está errada. Empresas que dominam a personalização geram, em média, 40% mais receita do que os seus concorrentes, segundo um estudo da McKinsey. Mas aqui reside o primeiro problema: 60% dos consumidores concordam que recebem experiências verdadeiramente personalizadas, mas 85% das empresas acreditam estar a fornecê-las, revelam dados da Twilio/Segment. Esta desconexão revela algo mais profundo do que um simples problema de execução. Revela uma interpretação fundamentalmente equivocada do que significa “personalização” na mente do consumidor versus na mente do marketeer.
Para o marketeer, personalização significa algoritmos sofisticados, segmentação demográfica precisa e automações baseadas em comportamento de navegação. Para o consumidor, significa sentir-se reconhecido como indivíduo, não como um conjunto de dados demográficos. É a diferença entre um vendedor que se lembra do seu nome e das suas preferências, e um stalker que sabe demasiado sobre a sua vida privada.
Pensem na última vez que pesquisaram alguém nas redes sociais antes de um primeiro encontro. Por muito que soubessem sobre os hobbies, ex-namorados ou férias dessa pessoa, jamais revelariam toda essa informação logo à primeira. Instintivamente, sabemos que demonstrar conhecimento excessivo sobre alguém que mal conhecemos é profundamente perturbador. No entanto, as marcas fazem precisamente isto todos os dias: bombardeiam-nos com “insights” sobre os nossos comportamentos que nunca lhes demos explicitamente permissão para descobrir.
Aqui está onde a coisa fica interessante — e inquietante. Enquanto, em conceito, a grande maioria dos consumidores espera experiências personalizadas (71%, de acordo com o mesmo estudo da McKinsey), menos de metade confia nas empresas com os seus dados. E as regulamentações de privacidade recentes tornaram a personalização mais difícil.
Este é o verdadeiro paradoxo: pelo que vemos, quanto mais tentamos personalizar, mais desconfiança criamos. Quanto mais dados recolhemos, mais os consumidores se sentem desconfortáveis. 34% dos consumidores reviram as suas configurações de privacidade no último ano, revela o estudo da Deloitte “Connected Consumer Survey 2024”, um sinal claro de que estão a reagir defensivamente à invasão digital.
O problema agrava-se quando percebemos que os consumidores sentem que são tratados como números em vez de indivíduos, precisamente o oposto do que a personalização deveria alcançar. É como se estivéssemos a usar um microscópio para observar alguém à distância: quanto mais aumentamos o zoom, mais perdemos a perspetiva do todo.
A indústria vendeu-nos a ideia de que algoritmos podem decifrar as necessidades humanas melhor do que os próprios humanos. Mas a criatividade e a forma contam — e aí, a história é diferente. Hoje, os consumidores querem receber menos mensagens das marcas a que estão subscritos. Não mais relevantes — menos mensagens, ponto final.
Isto sugere que o problema para além de criativo, de targeting ou timing, será potencialmente, também, de volume e frequência. Estamos a confundir “mais dados” com “melhor compreensão”, e “mais touchpoints” com “maior intimidade”. É como tentar construir uma relação enviando 50 mensagens de texto por dia — por muito relevantes que sejam, a quantidade em si torna-se o problema.
A realidade é que a panóplia de ferramentas à nossa disposição e a forma como as sabemos utilizar, ainda não consegue replicar a subtileza da intuição humana. Um comercial experiente sabe quando aproximar-se e quando dar espaço. Sabe ler a linguagem corporal, o tom de voz, os sinais não-verbais. As ferramentas ao nosso dispor, por mais sofisticados que estejam a ficar, dia após dia, ainda operam numa lógica binária que não compreende os matizes emocionais da experiência humana.
Então, qual é a solução? Não é abandonar a personalização, mas redefini-la. As marcas que estão a vencer este paradoxo focam-se na qualidade em vez da quantidade. Em vez de enviar 10 emails personalizados por semana, enviam dois que realmente importam. Em vez de bombardear com notificações push, escolhem os momentos que verdadeiramente agregam valor. Segundo, humanizam os dados. Usam tecnologia para amplificar a intuição humana, não para a substituir. Os melhores programas de personalização ainda têm pessoas a tomar decisões críticas sobre quando e como comunicar. Terceiro, praticam transparência radical. Explicam claramente que dados recolhem, porquê, e como isso beneficia o consumidor.
O verdadeiro teste da personalização não é quantos dados conseguimos recolher ou quão precisos são os nossos algoritmos. É se conseguimos fazer o consumidor sentir-se compreendido sem se sentir vigiado, especial sem se sentir explorado, reconhecido sem se sentir exposto. A melhor personalização não é aquela que usa todos os dados disponíveis, mas aquela que usa apenas os dados necessários. Não é aquela que comunica a toda a hora, mas aquela que comunica no momento certo.
Porque, no final, marketing personalizado de qualidade não se trata de demonstrar o quão inteligentes são os nossos algoritmos. Trata-se de demonstrar o quão profundamente compreendemos o que significa ser humano numa era digital.
E isso, caro leitor, não se aprende só com um dashboard — aprende-se ouvindo.
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