Uma história da loucura normal do Estado português

  • Vitor Cunha
  • 3 Outubro 2025

O Miguel Bombarda é um lugar estranhamente mágico, onde a história da psiquiatria portuguesa se cruza com a memória urbana e o impasse político de um Estado louco, desleixado e incompetente.

No domingo, dia 28 de setembro, fui visitar o que resta do Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, e a excelente exposição de fotografias de Eduardo Gageiro. A organização é da “Largo Residências”, entidade sem fins lucrativos que gere os Jardins do Bombarda, na rua Gomes Freire, 161. O nosso guia era excelente. E a luz baixa de outono ofereceu à coisa um certo sentido melancólico e um pouco depressivo.

Nos Jardins do Bombarda respira-se uma doce e cosmopolita tranquilidade. Para ver as fotografias de Gageiro (a exposição tem nome e é sugestivo: “Passos em Volta”) temos de nos inscrever previamente através do website. Pode-se comer, ler um livro, ver famílias aparentemente felizes a conversar como se estivéssemos num filme francês candidato ao Urso de Berlim.

O Hospital Miguel Bombarda é um lugar estranhamente mágico, onde a história da psiquiatria portuguesa se cruza com a memória urbana e o impasse político de um Estado louco, desleixado, incompetente e ignorante. Encerrado em 2011, o hospital deixou de acolher doentes, mas continua fechado e sem uso público. São 4,5 hectares no centro de Lisboa, exibição maior da incapacidade de governos e governantes tomarem uma decisão.

Desde 2009, o complexo pertence à Estamo — Participações Imobiliárias, S.A., empresa pública encarregada da gestão do património de todos nós. Foi comprado por 25 milhões de euros (comprado ao Ministério da Saúde), mas entrou num longo limbo político e burocrático. A degradação avançou, enquanto se aguardava e aguarda uma decisão sobre o seu futuro. Uma vergonha nacional, a somar ao conjunto de outras vergonhas que pululam pelo país e pela cidade. Para se imaginar a dimensão da coisa, notícias referem que o presidente da câmara de Lisboa esperou um ano para poder visitar as instalações (a Estamo é difícil de entender, já sabíamos).

A visita é limitada, só se pode fotografar o Panóptico, mas podemos ver a degradação extrema do balneário D. Maria II e imaginar doentes agitados a serem acalmados em águas mornas. Ficamos a saber imensas coisas: como as mulheres eram tratadas, as roupas típicas de campos de concentração que usavam, a falta de espaço que obrigava a acumular doentes como animais, o papel da filha de Marcelo Caetano na mudança desse estado de coisas, ou saber que crianças pequenas com problemas mentais eram misturadas com adultos.

[Foi também um momento para recordar como até há pouco tempo, em Portugal, a doença mental era gerida. Maria Adelaide Coelho da Cunha, herdeira do co-fundador do Diário de Notícias, foi destratada por um trio-maravilha composto pelos doutores Júlio de Matos, Egas Moniz e Sobral Cid, os três membros da junta médica que a condenou. Em 1919, foi interditada e internada no Hospital Júlio de Matos, com diagnóstico falso aprovado pelos três génios, porque preferiu o amor do motorista ao do homem com quem tinha casado e que lhe roubou a fortuna. Outro caso é o de Valentim Barros, o primeiro bailarino português a fazer carreira internacional, que foi enjaulado quase 50 anos por ser homossexual.]

O Hospital Miguel Bombarda já não cura, mas continua a ensinar. Entre o abandono e a monumentalidade, permanece como espelho de uma cidade e de um país que hesita entre preservar a miséria ou gerar riqueza. Um país que vai melhorando apesar do desgoverno e incúria nas empresas públicas e governos sucessivos, presos às suas loucuras habituais, ao paroquialismo, aos dogmas ideológicos, e, acima de tudo, à incompetência, essa velha prostituta que continua a exibir-se na avenida de salto alto e tez clara.

  • Vitor Cunha
  • CEO da JLM & Associados

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