RTP quer manter receitas publicitárias. É a única solução?
O modelo de financiamento da RTP assenta na Contribuição Audiovisual, paga na fatura da luz, e em receitas publicitárias, em concorrência com os privados. Mas há outros caminhos.
O financiamento de toda a estrutura da RTP (canais de televisão e rádios) é assegurado através da Contribuição Audiovisual (CAV) – que representa 80% do financiamento – e das receitas provenientes de publicidade (20%). Numa altura em que o Governo apresenta a proposta de Orçamento de Estado, é legítimo questionar: o atual modelo de financiamento da RTP ainda faz sentido? E poderá a estação pública de televisão caminhar para um modelo sem publicidade?
O presidente do Conselho de Administração da RTP, Nicolau Santos, garante que a estação precisa do financiamento das receitas publicitárias e comerciais para esta se manter “em níveis de relevância”. Já Poiares Maduro, ex-governante com a tutela da comunicação social, admite em teoria a hipótese de o modelo de financiamento não contar com publicidade – embora o considere muito difícil -, sendo que a única coisa que critica no atual método de financiamento da RTP é o facto de o valor da CAV não ter vindo a aumentar anualmente à luz da inflação, tal como está inscrito na lei.
O financiamento da RTP enquanto serviço público de rádio e televisão é assim assegurado através de uma junção do valor recolhido através de publicidade (e outras receitas comerciais) e da Contribuição Audiovisual (CAV), taxa que surge discriminada na fatura da luz e que tem atualmente o valor mensal de 2,85 euros (3,02 euros, com IVA). Ou seja, por ano, são 36,24 euros.
Este modelo de financiamento da RTP, atualmente em vigor, “é o modelo que do meu ponto de vista assegura a estabilidade financeira da RTP“, defende Nicolau Santos, presidente do Conselho de Administração da RTP, relembrando que cerca de 80% das receitas da RTP são provenientes da taxa do audiovisual e cerca de 20% decorre da receita de publicidade e de outras receitas comerciais. No entanto, “em relação aos privados, temos um modelo de receitas comerciais que nos impede de ter publicidade por hora superior a seis minutos, enquanto os privados podem ter até 12 minutos”, sublinha.
Quanto à possibilidade de se acabar com a publicidade na RTP, Nicolau Santos diz que essa é uma questão “que deve ser definida no domínio das opções politicas e do país”.
“O que nós temos de saber é se queremos um serviço público que seja relevante, que tenha influência, que seja significativo e contribua para a coesão social do país e para estar perto das nossas comunidades emigrantes e para as comunidades que vivem em África” defende.
Segundo Nicolau Santos, pode existir outro modelo, de um serviço público de media, como existe nos Estados Unidos, mas que tem audiências de 1 a 2% e que “não tem nem de perto nem de longe as missões que estão consagradas no contrato de serviço público do Estado com a RTP”.
“Nós temos uma missão muito relevante, é essa missão de coesão social, que é do meu ponto de vista importantíssima em termos de defesa de língua portuguesa e de afirmação dos interesses estratégicos do Estado Português. Se se entender que isto não é relevante, então pode-se encontrar outra maneira de financiar a RTP ou financiar bastante menos ou retirar receitas”, diz.
“Mas isso estamos no domínio de âmbito político. Não cabe seguramente à administração da RTP dizer como se deve ou não fazer. Agora nós hoje em dia, para a missão que temos, precisamos seguramente do financiamento através da CAV e precisamos do financiamento das receitas publicitárias e comerciais para manter a RTP em níveis de relevância“, disse Nicolau Santos, lembrando que a RTP conta com oito canais de televisão e sete canais de rádio.
“Para fazer face aos atuais compromissos que a RTP tem, nós precisamos destas duas fontes de financiamento. Por um lado a CAV está congelada desde 2016 e as receitas publicitárias têm este modelo que é um modelo 50% inferior ao dos privados, também há vários anos. Portanto, há vários anos que nem sequer competimos a 100% com os privados, competimos, quanto muito, a 50% com os privados em matéria de receitas comerciais“, argumenta o presidente do CA da RTP.
O “problema neste momento”, segundo Nicolau Santos, está relacionado com o valor da CAV, o qual, segundo a legislação em vigor, devia ser atualizado anualmente à luz da inflação, o que não está a acontecer. Na verdade, o valor desta taxa – que rendeu cerca de 195 milhões à RTP, segundo o seu relatório de contas de 2022, não é atualizado desde 2016.
“E portanto as nossas receitas estão de alguma forma estagnadas, com alguns pequenos aumentos quando a economia melhora [o que faz crescer as receitas provenientes da publicidade e outras atividades comerciais], mas estão mais ou menos estagnadas”, diz o presidente do Conselho de Administração da RTP.
Sobre um eventual aumento desta taxa, Nicolau Santos lembra que essa é uma decisão que cabe unicamente ao Governo e que embora esse aumento esteja previsto, o mesmo não tem vindo a acontecer, “assim como não tem vindo a acontecer [o pagamento de] uma dívida que o Estado tem para com a RTP de subfinanciamento do serviço público e que neste momento é calculada e um pouco superior a 14 milhões de euros e que foi reconhecida inclusivamente ao nível da União Europeia. São situações que existem e têm de ser resolvidas”, mas que ultrapassam o CA da RTP, refere.
Miguel Poiares Maduro, ex-governante com a tutela da Comunicação Social e atual comentador da RTP, diz que esse “é o único aspeto” que critica no modelo de financiamento da RTP em vigor. “A lei impõe o seu aumento de acordo com a inflação e isso devia estar a ser cumprido. Não há justificação, do meu ponto de vista, para isso não estar a ser cumprido“, diz ao +M.
O ex-ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional do governo de Pedro Passos Coelho diz defender a existência de um sistema de financiamento público do serviço público de televisão em Portugal, até porque “nós não temos um mercado para assegurar pluralismo suficiente só através de operadores privados“.
Poiares Maduro deixa também o aviso de que os melhores sistemas de financiamento de sistemas públicos são aqueles que não se limitam à “discricionariedade dos governos”, mas que dependem de “sistemas financeiros que são estabelecidos com estabilidade e que garantem maior independência ao serviço público (de televisão)”, exemplificando precisamente com o caso da CAV.
“Agora, se se pode substituir a CAV por outro instrumento, semelhante, mas financiado por outro tipo de taxa, já é outra questão. Acho que deve haver abertura para isso. Do meu ponto de vista, não deve é voltar a ser financiado pelo Orçamento. E acho que isso não está em causa. Têm-se falado é na possibilidade de [se implementar] outro instrumento semelhante mas que não a CAV”, acrescenta ao +M.
Segundo Poiares Maduro, existem várias alternativas e esses diversos instrumentos deviam ser estudados de modo a “tentar perceber qual é o impacto que teriam no mercado” e que outras formas de financiamento poderiam existir.
“Há várias questões a estudar antes de se decidir. O fundamental é que o financiamento deve ser público, mas deve decorrer de um instrumento estável e não depender de transferências anuais do Orçamento de Estado. Esse instrumento neste momento é a CAV, mas deve haver abertura para estudar outros. Só após esse estudo é que faz sentido alguém se pronunciar se há algum preferível relativamente ao atual”, refere.
Quanto à possibilidade de se acabar com a publicidade na RTP, Miguel Poiares Maduro disse “admitir” essa hipótese.
“Há quem diga que o facto de ter um bocadinho de publicidade ajuda a regular o tipo de conteúdo e portanto para que o serviço público não esteja totalmente desfasado do mercado. Mas não tenho uma grande convicção disso. Se pudesse ser só financiamento público, faria sentido, agora o problema é que isso significa ou que se aumenta a taxa da CAV ou se diminui o financiamento da televisão“.
“Agora, neste momento, tenho consciência que é muito difícil aumentar o valor da CAV. As pessoas já estão com muitas dificuldades, é muito difícil de se fazer. E, ao mesmo tempo, do meu ponto de vista, não é viável diminuir o montante do financiamento público atual, porque o serviço público da televisão portuguesa já é um daqueles que recebe menos financiamento em comparação com outros na Europa.
Sobre a possibilidade de estas questões poderem vir a fazer parte ou a ser discutidas no âmbito do Orçamento de Estado apresentado esta terça-feira, Poiares Maduro diz não ter “qualquer informação” que lhe permita dizer que esse será o caso. “Sendo possível um debate mais amplo, o que acho importante é começar por cumprir a lei atual“, disse o ex-governante.
O +M tentou também falar com Pedro Adão e Silva, ministro da Cultura, mas o responsável pelo ministério que tutela a RTP disse que não iria falar “nesta fase”. Contactado, o PSD também não defendeu nenhuma posição em relação ao tema.
A opinião das privadas
Questionada quanto à possibilidade de a RTP poder não ter publicidade, a SIC optou por não responder. Já por parte da TVI, José Eduardo Moniz – responsabilizando-se apenas a si próprio pelas respostas – defende que a questão central relacionada com a RTP “é a que se prende com a definição do que é ou deve ser o serviço público de televisão numa sociedade moderna”.
“Em minha opinião, a conceção hoje vigente há muito que está caduca e, portanto, desajustada a um tempo novo. É insensato conceber, hoje em dia, um serviço público que se inspira em modelos com mais de 70 anos e que a vertigem tecnológica, as dinâmicas sociais e as evoluções da economia e do mercado se encarregaram de desfazer. À luz desta perspetiva, antes de se falar de financiamento deve olhar-se para o objeto“, defende o diretor-geral da TVI.
“Sem que se repense o modelo, com base em parâmetros de utilidade social ajustados à sociedade atual e racionalidade económica, discutir as atuais formas de financiamento só serve para justificar e perpetuar um sistema inadequado, que resiste à marcha do tempo pelo imobilismo político agarrado à ideia de que a realidade pouco se transforma”, diz ainda José Eduardo Moniz. “Só ideias estatistas e retrógradas podem continuar a excluir da prestação de serviços públicos, em qualquer setor de atividade, entidades privadas, como se estas fossem uma espécie de peste“, acrescenta.
Um contrato de concessão ultrapassado mas cuja atualização não chega antes de 2024
Celebrado entre o Estado e a RTP, o contrato de concessão do serviço público de rádio e televisão atualmente em vigor data de 2015. Por altura da apresentação do Livro Branco sobre o serviço público de media, em maio deste ano, a sua coordenadora Felisbela Lopes defendeu que o enquadramento legal e o contrato de concessão estão “desajustados da realidade”.
“A RTP tem futuro, se quem tem responsabilidade política – tutela e parlamento – reunir as condições necessárias para o efeito, nomeadamente alterando o respetivo enquadramento legal e o contrato de concessão, hoje desajustados da realidade”, disse Felisbela Lopes na altura.
Agora, questionado pelo +M, Nicolau Santos diz que “este contrato de concessão é de há vários anos e já devia ter sido revisto há bastantes anos. Como é óbvio houve uma emergência, sobretudo das plataformas digitais, e basta só olhar para essa situação para perceber que há todo um mundo novo no setor dos media que é preciso ter em conta quando se fizer agora o contrato de concessão“.
Exemplificando com as plataformas de streaming que surgiram em Portugal, como a RTP Play ou a OPTO (SIC/Impresa), o presidente do Conselho de Administração da RTP diz que existem “novos problemas de interação e integração entre a plataforma digital e os meios tradicionais de rádio e televisão, desafios de organização da empresa, novas maneiras de olhar para os novos públicos que não consomem os conteúdos de rádio e televisão de uma forma tradicional”.
“E, portanto, há todo um mundo novo que não existia na altura e que tem de ser contemplado no contrato de concessão e portanto estou inteiramente de acordo que o contrato de concessão tem de ser atualizado face aos tempos que correm“, afirma.
O novo contrato encontra-se neste momento em fase de elaboração. “Vamos trabalhar em conjunto e presumivelmente esse trabalho irá beber seguramente parte das conclusões que decorrem do Livro Branco. E, do meu ponto de vista, tendo em atenção os tempos que todos estes processos demoram, eu admito que não teremos um novo contrato de concessão antes de 2024“, disse Nicolau Santos.
Quanto a este novo contrato, Nicolau Santos antecipa que haja novidades “relativamente a uma série de áreas”. “E, não sei se poderá vir a acontecer, mas em termos de flexibilidade de organização da empresa, também espero que haja alguma possibilidade de vir a acontecer”, diz.
“Os graus de liberdade da administração para organizar a empresa de maneira a corresponder aos novos desafios são limitados por questões legais e, portanto, será necessário também aí olhar para esses enquadramentos legais e adaptá-los aos novos tempos para que possamos dar uma resposta mais eficaz, mais célere e mais assertiva, aos desafios que o serviço público de media tem pela frente”, conclui Nicolau Santos.
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