Entre os diferentes targets e vinhos da José Maria da Fonseca, Francisca Lotra, na primeira pessoa

Rafael Ascensão,

Da maquilhagem ao vinho, Francisca Lotra é hoje responsável por manter relevantes rótulos centenários do grupo José Maria da Fonseca, enquanto tenta descodificar as novas gerações de consumidores.

Há quase três anos a liderar o marketing da José Maria da Fonseca, Francisca Lotra considera que a sua grande missão passa por manter relevantes marcas históricas de vinho — como Lancers, Periquita ou Alambre –, garantindo que continuam no top of mind dos consumidores e, ao mesmo tempo, conseguem atingir diferentes targets no mercado e ir ao encontro de novos consumidores, que procuram vinhos diferentes.

Tendo desde logo por base a ideia de que o mercado dos vinhos é “altamente promocional”, Francisca Lotra considera que o grupo precisa de adotar várias estratégias para captar não só os consumidores que olham para preços, mas também quem já percebe de vinhos. “Temos consumidores super conhecedores dos vinhos e que já sabem exatamente do que estão à procura e o consumidor do dia a dia que tem um foco muito grande em preços. Temos de ter vinhos e capacidade de comunicar para cada um destes diferentes targets“, sublinha em conversa com o +M.

Mas é também necessário conseguir atingir um novo tipo de consumidor, que procura coisas “completamente diferentes”, como vinhos com menos álcool, menos calorias, e que tem “outro tipo de preocupações quando está à procura de uma bebida para apreciar”. Este é um “novo consumidor super desafiante”, a quem “o vinho normal já não diz grande coisa” e que procura outras alternativas, seja até através de “infusões diferentes ou com uma mistura de vinho com cocktails”.

A comunicação e as estratégias das marcas da José Maria da Fonseca dependem assim do consumidor. Nas marcas direcionadas para este setor mais jovem e que procura coisas diferentes, por exemplo, “é importante perceber do que o novo consumidor está à procura e, se calhar, arriscar mais na inovação, comunicação e tipo de linguagem utilizada“.

A Lancers é um exemplo de uma marca na qual o grupo está a envidar esforços para conquistar o seu target natural: os jovens adultos. Com mais de 70 anos e dirigida a um target mais jovem, a Lancers “já teve os seus tempos áureos, em que era das marcas mais vendidas no mundo de rosé”, mas hoje em dia tem um brand awareness que “não é aquele que gostaríamos”, afirma Francisca Lotra.

E estes esforços passam muito por “ser, estar e comunicar” com este target de pessoas entre os 20 e os 35 anos. Para isso é feita uma aposta no digital, em parcerias com universidades e marcas que já comunicam e que já são consumidas por este target, na presença em festivais e concertos, bem como em ações de degustação. “Com o vinho é super importante a prova, muito mais do que qualquer publicidade. A prova é um momento de decisão definitivo“, entende.

No entanto, sublinha a marketing manager de 32 anos, é importante nunca esquecer o legado das insígnias. “Trabalhamos também marcas com muita história, não nos podemos só focar nisso, mas também não o podemos esquecer. Temos de apostar em inovação que seja pertinente e que vá ao encontro do consumidor de hoje em dia“.

Em marcas como Periquita, que está no mercado há 175 anos, o desafio passa por conseguir fazer com que o consumidor além de conhecer a marca — “que já tem um brand awareness gigante — a escolha ao final do dia. Isto tendo em conta também a atual dificuldade de “manter as marcas relevantes num mundo com uma comunicação constante, onde o consumidor é bombardeado a toda a hora com campanhas, imagens e vídeos”, enquadra Francisca Lotra, que se considera uma pessoa “descomplicada” e “orientada para a solução”.

Tendo o grupo José Maria da Fonseca várias marcas muito diferentes, é preciso também ter em conta as suas especificidades e trabalhá-las de maneira diferente, aponta a responsável, até porque algumas marcas são mais direcionadas para mass market, outras para restauração e hotelaria e outras para momentos especiais. “A forma como comunicamos também depende um bocadinho para quem é que nós comunicamos, mas há marcas transversais, que comunicam para todos“, acrescenta.

Antes dos vinhos, Francisca Lotra começou o seu percurso marketing com um estágio moldado pelo ritmo acelerado e competitividade do universo FMCG (fast-moving consumer goods) da L’Oréal, com duas marcas de maquilhagem, onde teve início a sua paixão pelo marketing. “Percebi que gosto do lançamento constante de campanhas e de se estar sempre a tentar evoluir as marcas e a tentar concorrer com o que há no mercado“, refere.

Após esse ano de estágio, seguiu-se uma curta passagem pela Nespresso. Foram apenas seis meses, mas este período foi “muito importante” para conhecer a realidade de um produto “de grande consumo, mas vendido de uma forma, num contexto e a um consumidor completamente diferente”.

O posterior regresso à L’Oréal marcou o início de um ciclo de cinco anos totalmente dedicado às marcas de maquilhagem. Francisca Lotra considera mesmo que o percurso na marca a moldou muito como pessoa e profissional, e a fez apaixonar “ainda mais” pela área de marketing e de trabalhar e pensar consumidor. “A L’Oreal é um bocadinho como uma escola altamente capacitada de marketing. Qualquer pessoa que sai de lá um profissional muito melhor, com maior capacidade de inovação e criatividade“, entende.

Quando a área de marketing da empresa de origem francesa foi transferida para Espanha, Francisca optou por não se mudar para o país vizinho e aceitar um desafio na Wells, do grupo Sonae. Aqui, a missão passava por reinventar a marca própria Skinerie, repensando o portfólio, revitalizando os produtos e renovando a comunicação

Este foi um passo determinante na sua carreira, considera, pois “à medida que se avança na carreira é importante ter-se uma noção de todas as áreas que envolvem o marketing“, desde a criação do produto e a parte estratégica até ao desenvolvimento de campanhas.

Em 2023 aceitou depois o desafio “completamente diferente” de integrar a José Maria da Fonseca como marketing manager. “Passei do mercado de beleza e maquilhagem para o mercado hipercompetitivo de vinhos, que não tem nada a ver. Mas realmente era algo que eu queria bastante experimentar. Queria outro mercado, queria experimentar algo em que nunca tivesse trabalhado, fora da minha zona de conforto“, recorda.

Paradoxalmente, essa distância em relação ao setor dos vinhos tornou-se uma vantagem. “O facto de eu não saber tanto, de não ser uma consumidora muito pontual de vinhos, fez-me querer aceitar este desafio. Ao querer recrutar novos consumidores, achei que pensar como é que faria isso para mim própria, como não consumidora de vinho, iria ser uma ajuda“, diz.

Hoje assume estar “convertida” e fascinada pelas histórias por trás de cada rótulo, pelo trabalho das equipas e pela força cultural das castas e das vindimas. O mergulho neste universo revelou-lhe um mercado “apaixonante”, sustentado tanto pela tradição como pela experimentação.

No que diz respeito à sua vida pessoal, Francisca Lotra vive atualmente em Lisboa, mas cresceu na linha de Cascais, em Oeiras, para onde ainda tenciona voltar. “Agora que vivo mais no centro de Lisboa, valorizo muito mais o facto de acordar e todos os dias e poder ver e estar tão perto do mar. É estar longe do centro de Lisboa e da confusão, estando perto à mesma. Crescer ali [em Oeiras] foi ótimo e irei mudar-me outra vez, de certeza, porque é um sítio de que gosto bastante, calmo e afastado de Lisboa, mas perto o suficiente. É o melhor dos dois mundos”, diz.

Com uma filha e grávida de um segundo filho, os hobbies de Francisca Lotra “são muito à volta dos filhos”. Mas, dotada da característica de, quando vê alguma coisa, achar que que pode e consegue ser ela própria a fazê-la — seja pintar um quadro ou renovar um móvel — grande parte do seu tempo livre é passado entre as artes manuais, mas também edição de vídeos.

Viajar é outra paixão, a qual pôde desenvolver durante os seis meses que viveu em Taiwan, visitando muitos países e locais nessa zona da Ásia e com as Filipinas a terem conquistado a distinção de referência maior no continente asiático. Israel e Jordânia, foram outros dois países que gostou de visitar.

O meio ano em Taiwan decorreu enquanto fazia o mestrado, entre 2015 e 2016, ao abrigo de um programa universitário. Embora conceda que teria sido mais fácil escolher uma universidade na Europa, Francisca Lotra queria experimentar ir para um sítio “completamente diferente” e que a obrigasse a sair da sua zona de conforto.

Mas a verdade é que ao ir para um país tão distante e tão diferente, tive um choque cultural brutal durante os primeiros dias. É um país completamente diferente do nosso, desde a alimentação à forma como vivem. São muito diferentes de nós, são um povo muito regrado, disciplinado e organizado. E embora de início sejam frios e distantes, principalmente com estrangeiros, são um povo muito simpático e acolhedor”, diz.

Uma vez que estava a fazer o mestrado de gestão de marketing, teve também a oportunidade de explorar a forma como é feita a comunicação e o marketing pelas empresas locais e como estas comunicam com o consumidor, algo que considera ter sido “bastante importante” e que lhe “abriu muito os olhos”.

Francisca Lotra em discurso direto

1 – Que campanhas gostava de ter feito/aprovado? Porquê?

A nível nacional, qualquer campanha com um jingle que tenha ficado verdadeiramente na cabeça de toda a gente. É daqueles earworms publicitários que atravessam gerações e continuam a ser lembrados anos depois. Uma campanha consegue mostrar como uma melodia simples, repetitiva e bem alinhada com a marca pode criar notoriedade espontânea e uma ligação emocional quase instantânea. É branding puro através da música.

Já a nível internacional, destaco a campanha “Dove Real Beauty”, porque redefiniu a forma como a publicidade pode impactar a sociedade. Uniu propósito, insights profundos e coragem criativa, conseguindo mudar narrativas culturais e gerar resultados de negócio. É o tipo de campanha que prova o poder transformador do marketing.

2 – Qual é a decisão mais difícil para um marketeer?

A decisão mais difícil é saber quando simplificar: escolher uma mensagem, um público e uma direção criativa, e abdicar do resto. No marketing há sempre múltiplos caminhos possíveis, mas escolher o essencial exige coragem e foco, porque significa renunciar a oportunidades para ganhar impacto.

3 – No (seu) top of mind está sempre?

Consumidor, consumidor e consumidor. A estratégia muda, as plataformas mudam, mas o comportamento humano é sempre o ponto de partida e de chegada. É nele que nos devemos focar, em todos os momentos e locais de possível comunicação com consumidor.

4 – O briefing ideal deve…

Ser claro, conciso e orientado a um objetivo. Deve apresentar o problema ou oportunidade de forma direta, sem ruído, e deixar totalmente claro o que é esperado, para que a equipa criativa tenha espaço para explorar soluções, e que não precise de adivinhar o que é pretendido.

5 – E a agência ideal é aquela que…

Vai além do briefing. É a que lê nas entrelinhas, encontra um detalhe com potencial e o transforma numa ideia diferenciadora, mantendo sempre o equilíbrio entre criatividade e impacto real no consumidor e no negócio.

6 – Em publicidade é mais importante jogar pelo seguro ou arriscar?

Um pouco dos dois, mas inclino-me para o risco (70%). O consumidor está saturado de estímulos e só as ideias que saem do padrão conseguem quebrar a indiferença. Arriscar com inteligência e propósito é o que verdadeiramente diferencia marcas.

7 – O que faria se tivesse um orçamento ilimitado?

Costumo dizer que a falta de budget nos torna mais criativos, e é verdade. Mas, com orçamento ilimitado, criaria uma ação global com impacto cultural real, algo que juntasse experiência física, digital e social, cruzando tecnologia, propósito e storytelling. Uma campanha que não só gerasse awareness, mas que deixasse uma marca no comportamento das pessoas.

8 – A publicidade em Portugal, numa frase?

Criatividade gigante, muitas vezes com recursos pequenos, mas com ambição de competir ao nível global.

9 – Construção de marca é?

É consistência com significado: a capacidade de manter uma identidade, uma mensagem e uma experiência coerentes ao longo do tempo, enquanto se evolui com o consumidor e com a cultura.

10 – Que profissão teria, se não trabalhasse em marketing?

Provavelmente algo ligado à estratégia, psicologia do consumidor ou comunicação criativa, áreas que também envolvem entender pessoas, resolver problemas e contar histórias.

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