Combater fogo com fogo
O crescimento das marcas próprias continuará imparável? E às marcas de fabricante restará o papel de mera ‘muleta’ na ocupação das prateleiras ou de animador do espaço comercial?
O conceito de combater fogo com fogo surge de uma prática efetivamente usada na prevenção e combate aos incêndios, através de uma técnica normalmente denominada de queima de expansão em que, na prática, o fogo queima pequenas faixas do terreno para eliminar a vegetação que é combustível, permitindo que quando os focos chegam a essa faixa queimada, já não existe aí combustível e, dessa forma, o incêndio é contido.
Ou seja, utilizar pequenas faixas de terreno para conter a propagação do incêndio….
Entretanto, perguntando ao mais conhecido software de inteligência artificial generativa sobre como se pode aplicar o conceito de combater fogo com fogo para o mercado de produtos de grande consumo, a resposta refere que esse conceito se refere à estratégia de usar uma abordagem semelhante àquela usada pelo seu oponente para neutralizar ou superar uma situação desafiadora.
Vem isto a propósito de um artigo publicado, há dias, no site da revista Grande Consumo, que refere que “Portugal foi o país da Europa onde a quota da marca própria mais cresceu em 2023, de acordo com o estudo conduzido pela NIQ, a antiga Nielsen IQ, para a Private Label Manufacturers Association (PLMA). Com uma subida de 4,4 pontos percentuais, a marca própria atingiu em Portugal uma quota de 43,7%”.
A mesma notícia indica que “a nível ibérico, a marca própria ganhou 2,5 pontos percentuais de quota, destacando-se a sua evolução nas bebidas não alcoólicas, onde cresceu 3,4 pontos percentuais. Apenas na categoria dos cuidados de saúde a marca própria registou um declínio em Portugal e Espanha” e que, numa visão mais transversal, “a redução do volume de vendas em 2022, em comparação com o ano recorde de 2021, transformou-se em 2023 num crescimento de 2% dos artigos de marca própria vendidos nos canais de retalho da Europa”, sendo que Portugal com mais 9%, se destaca claramente da média.
Contudo, percebendo que esta evolução, obviamente negativa para o universo das marcas de fabricante, também tem tido consequências para a dinâmica e quota de mercado de vários retalhistas no mercado português, para a sua capacidade de atrair e reter o consumidor e, de forma clara, para a sua rentabilidade, remeteu-me para a discussão antiga sobre, sim ou não, se deve combater o fogo com fogo.
Mas, voltando ao tema da notícia da Grande Consumo, o forte impacto do crescimento da marca própria em Portugal é ainda ampliado quando verificamos que aquela quota atingiu os 46,1% no mês de Janeiro, ou que os tais 43,7% de quota em valor em 2023, se convertem em 58,1% quando falamos de quota em volume e que atingem uns estratosféricos 68,9% e 69,8% quando nos focamos nas macrocategorias de personal care e de home care.
Seguramente, o temporal inflacionista e as dificuldades económicas sentidas por uma larga maioria das famílias portuguesas, ajudaram a empurrar os consumidores para a compra de produtos mais baratos e todos sabemos que, mesmo quando tal não se verifica, há uma presunção de que os produtos de menor preço serão os produtos de marca própria.
No entanto, em boa verdade, há, pelo menos, sete outros argumentos que ajudam a justificar aquele crescimento das vendas dos produtos de marca própria…
Desde logo, a evolução que a marca própria tem trilhado… em qualidade, sem dúvida, mas também em segmentação, posicionamento, gama ou packaging, para além, claro, da entrada em inúmeras categorias ou microcategorias em que ainda não estavam presentes.
E também pela prescrição explícita que é feita aos produtos de marca própria por entidades, por organizações e nos media, em espaços de comunicação não patrocinados. O repetido apelo à dita compra ‘inteligente’, sem olhar às diferenças entre produtos e, menos ainda, às razões objetivas que conduzem aos grandes diferenciais de preços na prateleira (valendo a pena lembrar que Portugal é, de longe, o país da Europa Ocidental onde esse gap é mais elevado), acaba por interferir nas escolhas dos consumidores
Adicione-se também o esforço comunicacional e promocional que a generalidade dos retalhistas faz relativamente às suas marcas próprias. Nunca, como agora, se viu tanta publicidade televisiva e noutros meios de comunicação feita em cima de produtos de marca própria. Nunca, como agora, se viram tantos folhetos em que – integralmente ou maioritariamente – as promoções se referem a produtos de marca própria, não deixando de ser surpreendente apostar em ações de preço sobre produtos que são, por força das estratégias dos retalhistas, os mais baratos das suas prateleiras,
Depois, pelo desenvolvimento do que normalmente se designam como marcas-fantasia, ou seja, produtos que não ostentam o nome da insígnia, a que se junta a multiplicação de marcas exclusivas. São muitos os consumidores que compram esses produtos sem terem consciência clara de estar a comprar produtos de marca própria e esse é, obviamente, o objetivo dos retalhistas, por entenderem que, em muitas categorias, a utilização da marca-insígnia desvaloriza o produto aos olhos do consumidor.
É igualmente óbvio que a competição entre retalhistas se faz em múltiplos tabuleiros – localização, sortido, qualidade dos produtos frescos, experiência de compra – mas que ela é, atualmente, especialmente agressiva ao nível da concorrência entre marcas próprias. Hoje, para qualquer retalhista, é muito importante ser reconhecido pela qualidade e pelos preços da sua marca própria e a entrada no mercado (e a dinâmica) de operadores cujo principal ativo resulta, exatamente, das suas marcas, eleva aquela competição para um novo patamar. Em vários casos, o foco quase exclusivo nessa competição afunila de tal forma as estratégias que, na ânsia de ‘combater fogo-com-fogo’, se esquece que, em vez de conter a propagação do ‘incêndio’, se está a contribuir para o seu alastramento.
A estes, juntam-se dois outros argumentos que por razões, diria, algébricas, potenciam o crescimento da quota global de marca própria no nosso mercado…
Em primeiro lugar, se as insígnias que mais crescem no nosso mercado são cadeias que fazem mais de 85% das suas vendas (em valor) com marcas próprias, aquela quota global tende obviamente a crescer.
De seguida, faz sentido recordar que uma parcela substancial dos metros quadrados de área de venda que são, ano após ano, inaugurados, ou se referem a lojas de insígnias do chamado sortido curto, ou são lojas das insígnias de sortido mais alargado, mas de menor dimensão (as chamadas lojas de proximidade), onde o sortido é manifestamente mais curto e a parcela de produtos de marca própria é proporcionalmente bastante maior. Nestas lojas, muitas famílias de produtos vêm os lineares exclusivamente ocupados pelas marcas do retalhista, ou compartilhando esse espaço apenas com a marca-líder, o que penaliza fortemente a penetração das marcas de fabricante e muito especialmente das segundas e terceiras marcas que vão, progressivamente, perdendo espaço de prateleira e contacto com o consumidor.
Sendo verdadeiros todos estes argumentos, então o crescimento das marcas próprias continuará imparável? E às marcas de fabricante restará o papel de mera ‘muleta’ na ocupação das prateleiras ou de animador do espaço comercial quando o retalhista sentir alguma necessidade de revigorar a sua experiência de compra?
Julgo que não!
Desde logo, porque todo o lançamento e reconhecimento da marca própria necessita do esforço prévio de estudo de mercado, de inovação e desenvolvimento e de comunicação e marketing da parte dos fabricantes. Há, obviamente, exceções, mas o alargamento de gama e a progressiva conquista de territórios por parte da marca própria, beneficia – em muito larga medida – do trabalho, da audácia e do risco que os fabricantes assumiram para desbravar esses mesmos territórios.
Como é fácil perceber, se um produto falhou na sua tentativa de conquistar a atenção e a carteira do consumidor, muito dificilmente será ‘reciclado’ sob a forma de uma marca própria. Ao contrário, quando um novo produto conquista presença e vendas, muito facilmente é adotado pelos retalhistas sob a forma de marca própria, sendo que não são poucos os casos em que produtos diferenciados e mais ou menos disruptivos são completamente canibalizados quando a marca própria ‘equivalente’ é colocada no mercado. E aqui a força da marca é fundamental. Se o produto, por muito bom que seja, não tem a ‘protecção’ de uma marca forte, é seguro que não resistirá ao assédio e ao diferencial de preço da marca própria.
Um outro ângulo é o do diferencial de preços – e, paralelamente, de margens – que existe entre marcas próprias e marcas de fabricante. Independentemente do custo de aquisição mais ou menos diferenciado, é muito amplo o diferencial de preços de venda ao público, em larga medida resultado do diferencial de margens que os retalhistas aplicam a umas e outras marcas. Ainda há poucos dias, o director geral da APED, numa peça publicada no Dinheiro Vivo, referia e com razão que “o crescimento do consumo de marca própria não é sinónimo de rentabilidade para as empresas”.
Outra forma de perceber que estas estratégias têm implicações diferentes para modelos de retalho diferentes é a constatação de que várias insígnias, especialmente aquelas que são reconhecidas por sortidos mais longos e maior oferta ao consumidor, à medida que vão aumentando a parcela de marca própria nas suas vendas totais, têm – em paralelo – perdido quota de mercado.
Tenho de há muito a convicção de que se o esforço das marcas de fabricante no sentido de conquistar ou recuperar espaço de prateleira é fundamental para ganhar penetração e distribuição numérica e para captar a atenção do consumidor, beneficiando da sua preferência de compra, seja pela via da inovação e da diferenciação, seja pelo esforço de marketing e de comunicação, seja pelas estratégias de pricing e de promoção, tal dificilmente surtirá efeito se não beneficiar do interesse e do espírito de parceria, mutuamente positiva, do lado dos retalhistas
E para tal é muito importante que as diferentes insígnias percebam o papel positivo que as marcas de fabricante podem desempenhar.
No caso das insígnias de sortido mais longo, as marcas de fabricante podem gerar um reforço da atratividade, melhorar o sortido oferecido ao shopper, introduzir inovação, oferecer uma melhor experiência de compra, criar dinâmica promocional e, inequivocamente, beneficiar a rentabilidade dos retalhistas.
Podem ainda ser especialmente úteis para atrair o consumidor que visita frequentemente as insígnias de sortido mais curto, mas que aí não encontra os produtos das suas marcas favoritas e que pretende continuar a adquirir. Quanto mais curto o sortido de um retalhista, maior a probabilidade de haver uma parte da cesta cuja compra pode ser transferida para uma insígnia concorrente onde produtos e marcas favoritas do consumidor existam. Mais ainda quando essa transferência possa ser realizada em geografia próxima.
De ângulo diverso, também as insígnias de sortido mais curto terão um maior interesse em introduzir um conjunto relevante de marcas de fabricante nos seus lineares, quando sentirem que a sua oferta menos diversa está a gerar uma menor fidelização do shopper e que uma parte da compra é perdida para competidores que têm uma oferta mais ampla e uma maior presença de marcas incontornáveis para o consumidor.
Melhores condições económicas tenderão a alterar progressivamente a equação de compra do consumidor e podem fazer crescer o mercado, beneficiando os dois tipos de marcas, mas mesmo em períodos de maiores dificuldades financeiras, há sempre uma larga franja de consumidores que – em pelo menos alguns produtos – não estará disponível para abdicar das suas marcas de sempre.
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