“Será que é desta?”

  • Edson Athayde
  • 13 Outubro 2025

A política ao ser transformada num campeonato, torna o eleitor num adepto: não quer compreender, quer ganhar. Vamos transformando a democracia num grande estádio, onde a razão é o árbitro mais vaiado.

A todos os bons candidatos e eleitores que perderam no último domingo, e a todos os bons candidatos que ganharam: a democracia nunca se faz apenas de uma noite eleitoral. Aos vencedores, falta cumprir o prometido. Aos derrotados, faltam apenas quatro anos para o próximo embate.

É curioso como insistimos em tratar a democracia como um espetáculo com início, meio e fim, como se fosse uma peça em três atos, onde o público bate palmas, vai dormir e acorda convencido de que o mundo mudou enquanto dormia. Mas a verdade é menos épica e mais teimosa: no dia seguinte, o mundo continua lá, igual, com as mesmas filas no centro de saúde, os mesmos buracos na estrada e as mesmas promessas a ecoar nas caixas de comentários.

A beleza da democracia está precisamente na sua imperfeição cíclica. É um sistema que se corrige a si próprio, devagar. Cada eleição é apenas um capítulo de um livro interminável, escrito a várias mãos e com muitas rasuras.

Mas o marketing político e os media tradicionais (esses fiéis escudeiros do drama) parecem preferir vender a ideia de que cada sufrágio é uma final da Liga dos Campeões. Há “vitórias históricas”, “derrotas humilhantes”, “terramotos políticos” e “renascimentos surpreendentes”. Tudo em letras garrafais, porque a democracia precisa de emoção, dizem.

A política ao ser transformada num campeonato, torna o eleitor num adepto. E um adepto não quer compreender, quer ganhar. Não lê programas, lê placares. Não discute políticas públicas, discute percentagens. E assim, entre gritos de “meu partido é melhor que o teu”, vamos transformando a democracia num grande estádio, onde a razão é o árbitro mais vaiado.

Talvez por isso a democracia se pareça tanto com “Esperando Godot”, a peça de Beckett em que duas personagens passam o tempo à espera de alguém que nunca chega. Tal como Vladimir e Estragon, também nós, cidadãos, passamos os dias à espera de uma reforma que resolva tudo o que está torto, de um amanhã que nunca chega. Mas continuamos ali, no palco da vida pública, a falar uns com os outros, a discutir o sentido da espera, e a acreditar (contra todas as evidências) que, desta vez, Godot virá. O absurdo, afinal, é o combustível da esperança.

Nietzsche nos presenteou com o conceito do “eterno retorno”, a ideia de que tudo o que acontece voltará a acontecer, repetindo-se infinitamente. Um conceito terrível para quem acredita em progresso, mas reconfortante para quem vive de ciclos eleitorais.

No meio deste ruído, esquecemo-nos de que um mandato é uma espécie de procuração. Um papel simbólico que diz: “Toma lá o meu voto, vai lá resolver o que eu não consigo sozinho, mas lembra-te de quem te deu o canudo.” Só que muitos eleitos, mal sentam o corpo na cadeira do poder, acham que receberam um trono e não uma tarefa.

A democracia, coitada, observa tudo isto com a paciência de quem sabe que há de voltar. Ela regressa sempre, de quatro em quatro anos, com o mesmo sorriso cansado, a mesma esperança tímida e a mesma pergunta: “Será que é desta?”

Não é. Nunca é. E é aí que mora o agridoce encanto da democracia: não entregar finais felizes, apenas continuações possíveis. E, convenhamos, há algo de extraordinariamente humano nisso. Porque, se há coisa que o ser humano faz bem, é cair, levantar e tentar outra vez.

Ou como diria o meu Tio Olavo: “Nas democracias, o poder muda de mãos, já o enredo, esse, continua a ser escrito pelos mesmos dedos apressados e as mesmas cabeças distraídas que acreditam que o próximo capítulo será o último”.

  • Edson Athayde
  • CEO e CCO da FCB Lisboa

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