A “saturação de problemas” é dos principais desafios na comunicação, diz a Unicef
A necessidade de uma comunicação especialmente responsável e de quebrar um "muro de indiferença", a saturação de problemas na atualidade ou a falta de agências especializadas são alguns dos desafios.
Neste Natal a Unicef Portugal volta a lançar uma campanha e um apelo, destacando que o último ano foi marcado por múltiplas crises e emergências. Mas não é só a Unicef que aproveita a altura do Natal para comunicar, pelo que conseguir sobressair nem sempre é fácil. Este é um dos muitos desafios enfrentados na comunicação por parte das ONG (organizações não governamentais), conforme explica Luísa Motta, diretora de recolha de fundos e parcerias da Unicef Portugal, ao +M.
Ressalvando o facto de que nem todas as ONG dispõem de um orçamento para marketing – que no caso da Unicef foi de 3,2 milhões de euros em 2023 – os principais desafios encarados por quem comunica campanhas solidárias são múltiplos. Desde logo por terem de enfrentar uma adversidade de “saturação de problemas“.
“Estamos num mundo em crise permanente, as pessoas têm a sensação geral de que as coisas só pioram, nunca melhoram. Penso que as pessoas constroem um muro de indiferença – ou porque o problema não está perto delas ou porque sentem que não podem fazer nada – e quebrar esse muro de indiferença e chegar ao coração das pessoas, mantendo a nossa relevância ao longo do tempo, é o primeiro grande desafio“, explica Luísa Motta.
Penso que as pessoas constroem um muro de indiferença – ou porque o problema não está perto delas ou porque sentem que não podem fazer nada – e quebrar esse muro de indiferença e chegar ao coração das pessoas, mantendo a nossa relevância ao longo do tempo, é o primeiro grande desafio.
Relacionado com este, as ONG deparam-se com a necessidade de conseguirem sobrepor-se ao descrédito que muitas pessoas têm em relação a este tipo de organizações, até pela existência de casos de fundos mal utilizados e outros, que depois “vão afetar a reputação de todas as outras ONG. E isto pode gerar falta de confiança, mas acho que cabe-nos a nós também construir essa confiança e mantê-la, e isso é também um desafio”, diz a diretora de recolha de fundos e parcerias.
Depois a Unicef depara-se ainda com a sensibilidade intrínseca a determinadas temáticas, pois sendo uma organização apolítica, a esta não interessa que tipo de regime está à frente de um terminado país. “Esta às vezes é uma mensagem muito difícil de passar”, diz Luísa Motta, exemplificando com o último apelo que foi feito para ajudar as crianças em Gaza, que é um tema “muito polarizante”.
“Para nós, nem sempre é fácil explicar que estamos tanto para as crianças israelitas como para as crianças em Gaza, sendo que neste momento as crianças em Gaza estão a viver uma verdadeira catástrofe humanitária e precisam de ajuda imediata, assim como estamos para as crianças israelitas que foram raptadas. Mas às vezes é pouco difícil explicar isto, até porque – e muita gente não sabe – mas a Unicef só entra num país a convite dos governos”, concretiza.
Também é preciso ter-se em atenção o uso de determinadas expressões. Por exemplo, por vezes não pode ser utilizada a palavra “guerra”, uma vez que um dos lados do conflito não aceita essa designação, explica a responsável.
A par disto, a Unicef tem de ter em atenção e “muito cuidado” com uma comunicação “muito responsável”. “Existem muitas regras na Unicef, a nível de utilização de imagens, por exemplo, e também de forma a garantir que as histórias que nós estamos a partilhar são reais”.
A responsável pela recolha de fundos e parcerias da ONG diz ainda sentir que existe falta de agências especializadas no terceiro setor, com know-how. “Ou seja, as agências estão muito viradas para aquilo que o fast market necessita”, afirma, exemplificando que fazer uma campanha de televisão para uma marca como a Sagres é muito diferente de fazer uma campanha de televisão da Unicef, porque enquanto uma está a trabalhar notoriedade e quer ir para os grandes canais, onde tem mais audiências, esses canais não são necessariamente os que funcionam melhor para uma campanha da organização.
Na verdade, a Unicef consegue perceber o que pode ou não funcionar melhor, em termos de comunicação em canais televisivos, uma vez que nas campanhas dispõem de um número de telefone para cada canal, explica.
O mercado português de angariação de fundos não está ainda muito desenvolvido, do ponto de vista dos profissionais. Ainda não há uma consciência do que é isto da angariação de fundos.
E dessa forma “eu consigo saber exatamente as chamadas que aquele anúncio gerou, ou seja, consigo saber qual o canal que me gera mais chamadas, qual o programa, qual a faixa horária, e eu tendo esse detalhe – que uma marca generalista, comercial, não precisa e não tem este cuidado – eu consigo fazer aqui uma matriz porque eu sei exatamente qual me traz o ROI [retorno sobre investimento] mais positivo”, diz Luísa Motta, acrescentando que as agências “não estão treinadas para fazer este tipo de análise”.
Na verdade, “o mercado português de angariação de fundos não está ainda muito desenvolvido, do ponto de vista dos profissionais. Ainda não há uma consciência do que é isto da angariação de fundos”, considera.
Questionada pelo +M, a também responsável pela recolha de fundos e parcerias da Unicef Portugal adianta que um canal que funciona bem é a SIC Notícias, mais do que os generalistas, nos quais o custo em relação o retorno não compensa. A responsável adianta ainda que não compensa ter muitos anúncios – ainda que em canais diferentes – na mesma faixa horária, uma vez que isso vai gerar um grande fluxo de chamadas aos quais depois as operadoras de telemarketing não conseguem dar vazão.
Já quanto às principais diferenças entre comunicar campanhas comerciais ou de solidariedade, Luísa Motta defende que “não há grande diferença”, entre os dois tipos de comunicação, existindo “muitas semelhanças do ponto de vista de construção de uma campanha e de todas as técnicas de marketing e comunicação“.
“Nós comunicamos para uma determinada audiência com um objetivo, que no nosso caso em vez de ser a compra de um produto ou serviço, é a ‘compra’ de ajuda humanitária, mas as técnicas que estão por trás são as mesmas“, diz.
De uma forma geral, a principal diferença prende-se com a sua natureza e o objetivo das campanhas, pois enquanto uma campanha solidária tem como objetivo causar um impacto positivo na sociedade e ajudar a resolver um problema, numa campanha comercial o objetivo passa pela promoção de produtos ou serviços de forma a gerar vendas e lucros.
O foco, segundo Luísa Motta, também é diferente entre os dois tipos de campanhas. Enquanto a campanha solidária destaca uma necessidade social ou um problema incentivando e tentando gerar empatia e a consciencialização – “que eu diria que são mesmo os elementos-chave de uma campanha solidária” – numa campanha comercial o foco passa antes por promover um determinado produto ou serviço, destacando os seus benefícios ou características diferenciadores para atrair os consumidores e gerar sempre uma venda e lucro.
Existe ainda uma diferença “do ponto de vista da narrativa, pelo menos no caso da Unicef”, diz a diretora de recolha de fundos e parcerias da Unicef Portugal, uma vez que as histórias comunicadas “são todas reais, são autênticas, as crianças são reais, não são atores”. Já numa campanha comercial, é tudo “mais faz de conta”.
Tal como acontece com as marcas, ONG nas suas campanhas deparam-se também com o desafio de existir “muita concorrência por atenção, principalmente em alturas como esta do Natal“.
Nós precisamos de contar histórias importantes, envolventes, que criem relação com o potencial doador.
Quanto aos “ingredientes” a juntar à fórmula que pode efetivamente ajudar as campanhas de ONG a sobressaírem e a atingir o seu objetivo, Luísa Motta considera que estas têm de ter sempre algo que “gere interesse e empatia que leve à ‘conversão“.
“Nós precisamos de contar histórias importantes, envolventes, que criem relação com o potencial doador. Normalmente, mostramos a história de uma criança, real, que foi afetada por um determinado problema, e depois mostramos o desafio que esta criança tem de enfrentar e como é que a ajuda da pessoa pode fazer a diferença”.
Para isso, e para ajudar passar a história, a ONG utiliza imagens – não só fotografias mas também vídeos “impactantes”, amplificando o alcance através das redes sociais, cuja “importância tem vindo a aumentar“, tanto por ser um meio de divulgação mais barato como por permitir uma maior rapidez.
“A qualquer momento eu posso pôr uma atualização nas nossas redes sociais, de forma imediata. Não tenho de contactar uma agência, fazer um plano… é muito mais rápido. E as pessoas podem também partilhar e aumentar ainda mais o alcance e permite-nos uma interação diferente e um maior envolvimento com as pessoas“, explica Luísa Motta, acrescentando que a Unicef às vezes também apela à participação de influencers, algo que “tem mais potencial” e que tem de ser mais trabalhado, confessa.
Por outro lado, “é muito importante navegar o tema com maior foco mediático“, revela a responsável, referindo que é preciso ter uma “grande rapidez”, e exemplificando com o facto de terem tido de adiar a campanha de Natal quando foi desencadeado o conflito em Gaza.
Este foco mediático ajuda ainda a conferir credibilidade às campanhas, apelos e trabalho da Unicef, até porque “uma coisa é estar a pagar para qualquer coisa no Bangladesh que ninguém ouviu falar e outra é quando é feito um apelo para algo que toda a gente vê na televisão todos os dias a acontecer e em que vê que de fato há uma grande necessidade”.
Além disso, a Unicef aposta numa segmentação dos vários públicos e adaptação das mensagens, tentando torná-las mais relevantes para cada um deles, além de numa continuação da relação com o doador, uma vez que “além de pedirmos o donativo depois explicamos o que aconteceu com esse donativo que a pessoa deu”.
Os últimos dois anos, infelizmente, foram bastante ricos em emergências, o que fez com que também a sazonalidade aqui ficasse disfarçada. Isso faz com que obviamente existam picos de atenção e em que nós temos de colocar toda a nossa máquina de comunicação a funcionar rapidamente para aproveitar a onda mediática, porque isso faz uma grande diferença e com que o retorno seja maior.
Concedendo que isso pode variar consoante a ONG, a diretora de recolha de fundos e parcerias da Unicef refere que o público-alvo é aquele com idades mais elevadas, sendo difícil alcançar as pessoas abaixo dos 35 anos. “É muito difícil e isto leva a que seja muito importante para nós trabalhar o topo do funil para depois chegarmos aos targets mais novos”.
“Estes targets mais novos não têm também tanta disponibilidade financeira mas é importante – e penso que se perdeu um pouco isso – gerar a notoriedade e a apetência de ajudar o próximo, explicando que não basta só falar e meter a fotografia no Instagram mas que é preciso contribuir de facto. E isso cabe-nos também a nós, porque se não estivermos próximos destes targets mais novos, também vai ser difícil conquistá-los mais tarde”, afirma.
Para a campanha de Natal deste ano da Unicef Portugal foi a lista com pedidos de presentes que as crianças partilham nesta altura do ano que serviu como conceito criativo, tendo sido utilizadas imagens representativas das múltiplas crises que aconteceram em 2023, pelo que as listas de presentes das crianças representadas na campanha são compostas por bens essenciais que permitam a sua sobrevivência.
A ideia criativa passou por fazer uma maior ligação à audiência, tendo por base um “insight de que na verdade o Natal não é igual para todos”, explica Luísa Motta. A criatividade foi trabalhada pela agência I-Brothers e a responsabilidade pelo planeamento de meios recaiu sobre a Starcom, numa campanha que contou com um investimento de cerca de 350 mil euros.
A campanha marca presença nas redes sociais, em out-of-home, imprensa pontual, televisão (SIC Notícias, Fox Life, Fox Crime, SIC Mulher, CMTV e TV Record) direct mail (DM), com cartas (ainda por correio) enviadas aos doadores, “e a verdade é que ainda tem bastante impacto”, diz Luísa Motta. No DM é usada a história de uma criança em específico, para criar uma ligação mais direta e pessoal, usando nesta caso o exemplo da Latu, uma criança que nasceu na Etiópia e que neste momento se encontra num campo refugiados.
Embora o Natal seja uma altura em que “as pessoas estão de facto mais generosas”, a ONG tem ao longo dos últimos anos desfasado mais a comunicação, não concentrando toda a atividade no final do ano.
“Os últimos dois anos, infelizmente, foram bastante ricos em emergências, o que fez com que também a sazonalidade aqui ficasse disfarçada. Isso faz com que obviamente existam picos de atenção e em que nós temos de colocar toda a nossa máquina de comunicação a funcionar rapidamente para aproveitar a onda mediática, porque isso faz uma grande diferença e com que o retorno seja maior“, diz Luísa Motta, exemplificando com o apelo para Ucrânia que foi quatro vezes superior ao registado no Natal.
No entanto, também não é que o investimento seja superior na altura do Natal. Segundo explica a diretora de recolha de fundos e parcerias, a Unicef realiza quatro a cinco campanhas por ano, nas quais investe sensivelmente o mesmo, sendo que “o retorno é que pode ser diferente”.
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