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“São muitos os humoristas que investem o seu tempo a justificar que é só uma piada” por “medo de serem cancelados”

Carla Borges Ferreira,

As fronteiras do humor são tema de discussão em Portugal e no Brasil. A advogada Ana Rita Duarte de Campos e o produtor Hugo Nóbrega são unanimes: os limites são os da liberdade de expressão.

“Também tenho uma opinião sobre a interpretação do hino e deste processo judicial, mas, como fiz alguns investimentos recentemente, neste momento receio não ter liquidez suficiente para dá-la. Fica para outra vez”. A frase com que Ricardo Araújo Pereira termina a crónica “Os Anjos acham que nós somos anjinhos”, no Expresso, resume o caso que fez as delícias das redes sociais na última semana. Apesar de na génese estar uma piada, e de os episódios em tribunal terem provocado certamente muitas gargalhadas durante os últimos dias, a humorista Joana Marques está a responder no âmbito de um processo em os Anjos lhe exigem uma indemnização superior a um milhão de euros, na sequência de um vídeo que mostrava partes da atuação da dupla constituída por Nelson e Sérgio Rosado, antes de uma prova do MotoGP em Portimão, a cantar o hino, intervalada com reações do júri do programa “Ídolos”. O caso remonta a 2022. Numa primeira fase, que aconteceu em 2024, terá sido tentado um acordo em audiência preliminar, que não foi alcançado.

Um humorista pode ser condenado a uma pena de prisão por uma piada? Um sketch pode causar mais de um milhão de euros de danos aos visados?

Os limites do humor estão em discussão também no Brasil, país onde o humorista Leo Lins foi este mês de junho condenado a oito anos e três meses de prisão e ao pagamento de uma multa de 1,4 milhões de reais (cerca de 220 mil euros), por piadas ditas no YouTube, também em 2022. Neste caso, a sentença terá identificado 13 discursos preconceituosos e discriminatórios contra nordestinos, idosos, homossexuais, portadores de VIH, negros, obesos, judeus, evangélicos, indígenas e portadores de deficiência.

O produtor Hugo Nóbrega, que a título de exemplo traz por estes dias a Portugal o “Céu da Língua”, espetáculo de Gregório Duvivier, distingue os temas. “No caso da Joana Marques, estamos a discutir, quanto a mim, o direito das pessoas mencionadas numa peça humorística de pedirem indemnização por danos à reputação, e não os limites do humor”, aponta.

Hugo Nóbrega, fundador da H2N

“Problemas técnicos são infelizmente comuns em eventos que não foram pensados para atuações, como é o caso da MotoGP. Penso que a maioria dos ouvintes entendeu que o acontecimento não se deveu a má preparação dos Anjos. E quem está na área musical, como agente ou contratante, consegue discernir sobre isso e não colocar a responsabilidade na falta de talento ou profissionalismo dos Anjos. Portanto, custa-me aceitar a ideia de que após este momento, existiram cancelamentos na área profissional devido a este episódio”, descreve. “Conseguimos entender que os Anjos considerem que o conteúdo foi altamente manipulado, de forma a que a narrativa tivesse mais graça. Mas creio que a responsabilidade pelos danos causados à reputação da banda deve ser analisada em relação ao evento e à organização do mesmo e não às peças humorísticas sobre o mesmo”, defende o fundador da H2N.

Hugo Nóbrega diz não acreditar numa condenação e defende que Joana Marques, ao não apagar o vídeo, apenas quis mostrar que o conteúdo humorístico não deve ser retirado porque alguém se sente ofendido. “É um tema bastante sensível, para mais entre colegas do setor artístico, onde é normal que entendam que tem de existir uma empatia e uma não ofensa entre pares. E a Joana Marques, enquanto humorista não se vê nessa necessidade de posição empática, por achar quanto a mim, que o riso deve ser transgressor e que cabe também a quem assiste conseguir relevar. O risco muitas vezes é este”, resume.

“As consequências são totalmente diferentes como vemos no caso do Leo Lins. À luz da Justiça brasileira, pode estar em causa a propaganda de conteúdos racistas e xenófobos, considerados crime, mesmo num contexto de palco e de espetáculo. A decisão pode vir a ser revertida no recurso, acredito que sim, mas há que tem em conta que no Brasil temas de ordem racial são claramente red flags, como um não assunto de comédia, dada a história tão recente de opressor e oprimido”, enquadra.

No caso da Joana Marques, por seu turno, falamos de direito cível e de danos reputacionais, na opinião de Hugo Nóbrega “muito difíceis de relacionar”, até porque “há ali no momento uma falha técnica que torna todo o momento estranho no mínimo para quem assiste”. Ora, “e é aí que normalmente o humorista entra, com o seu olhar cómico, acutilante, mas dentro dum conteúdo relativo ao acontecimento em si, que todos admitimos que é bastante editado e manipulado, mas que quanto a mim não tem uma base de ofensa gratuita aos visados, mas sim ao contexto daquele momento”, distingue o produtor.

No Brasil, quem defendeu o humorista no que concerne à sua liberdade de expressão, foi altamente cancelado e “obrigado” a retratar-se. Em Portugal, a nova série “Ruído”, criada pelo Bruno Nogueira, leva-nos para um mundo onde o riso foi proibido. São muitos os humoristas que investem o seu tempo a justificar, primeiro, que é só uma piada, e segundo a explicarem a própria piada, com medo de serem cancelados, pela má interpretação da mesma.

Hugo Nóbrega

Fundador da H2N

Ana Rita Duarte de Campos, sócia contratada da Abreu Advogados e especialista em Direito Penal, esclarece que uma sentença idêntica à de Leo Lins não podia acontecer em Portugal. “Esta sentença tem que ver, sobretudo, com a aplicação de normas penais recentes cujo alcance, sobretudo fora do Brasil, penso que ninguém anteciparia”, defende a especialista.

“Muito já foi dito no espaço público e eu concordo que o humor, enquanto arte, goste-se mais ou menos do humorista ou da piada concretos, encerra uma dimensão hiperbólica, de redução ao absurdo e de crítica e, muitas vezes, de condenação de atitudes através da sua aparente emulação. Digo aparente porque quem não perceber isto não percebe o que é o humor, enquanto expressão artística”, comenta a advogada. “Isto não foi tido em linha de conta pela decisão proferida, que assentou na qualificação dos crimes pela circunstância de terem ocorrido no contexto artístico e não apenas pelo facto de terem sido difundidos em plataformas de streaming (tendo o Tribunal, em momento anterior do processo, determinado que o vídeo em questão fosse retirado)”, prossegue. Mais, “desconsiderar as características do discurso humorístico é fazer equivaler pensamento a ação penal, e esse caminho também é muito perigoso. Basta ler o “1984”, de Orwell que, também por esta razão, está cada vez mais atual”, aponta.

Ana Rita Duarte de Campos acrescenta outro ponto. “É ainda de notar que a apropriação estadual de determinados bens jurídicos individuais, sob o manto das tarefas do Estado, pode levar a resultados perniciosos e o exemplo está à vista, na escalada que vai de crimes de injúria, para crimes de racismo que, de repente, permitem que o Ministério Público Federal se transforme em polícia de costumes e que a multiplicação das “injúrias”, por via da teoria do concurso de crimes dê amparo à pena única e à multa absurdas em que Leo Lins foi condenado”.

Ana Rita Duarte de Campos, sócia contratada da Abreu Advogados e especialista em Direito Penal

O ​ contexto do Brasil, em que estamos a assistir a um processo crime vindo do Estado, é ainda diferente de Portugal, onde alguns casos que levaram a acusações ficaram na esfera do processo cível, reforça Hugo Nóbrega.

Contudo, é um tema que preocupa bastante os humoristas, sejam ou não a favor desta condenação. “No Brasil, quem defendeu o humorista no que concerne à sua liberdade de expressão, foi altamente cancelado e “obrigado” a retratar-se. Em Portugal, a nova série “Ruído”, criada pelo Bruno Nogueira, leva-nos para um mundo onde o riso foi proibido. São muitos os humoristas que investem o seu tempo a justificar, primeiro, que é só uma piada, e segundo a explicarem a própria piada, com medo de serem cancelados, pela má interpretação da mesma”, constata o produtor.

Recentemente em Lisboa, assistimos a um humorista claramente transgressor como Ricky Gervais, a fazer um disclosure no final do show, alertando de que isto é um show, não a sua opinião real. Para muitos, este prólogo foi altamente estranho, para outros altamente importante — ambos riram dessas piadas durante o espetáculo”, acrescenta como exemplo.

Hugo Nóbrega diz não ser propriamente fã do género dark , embora reconheça que humoristas com carreiras nesta área de comédia, como Jimmy Carr (UK) ou o fenómeno recente Anthony Jeselnyk (USA) têm uma legião de fãs, “que riem de piadas moralmente inaceitáveis, completamente transgressoras de qualquer limite, mas que são surpreendidos na atuação pelo que é dito, pela forma como é entregue o texto, num contexto de espetáculo, que pagaram para assistir”.

Também polémico, acrescenta, é o recente foco em crowd work — onde o fenómeno aclamado no TikTok Matt Rife (19M seguidores) tem o seu mais recente especial na Netflix, só a interagir e a fazer troça do público, que pagou um bilhete sabendo que pode calhar a qualquer um ser gozado de forma hostil.

No seu caso, enquanto programador e produtor de festivais de comédia com artistas nacionais e internacionais, Hugo Nóbrega opta por trazer o que define como um humor afiado, inteligente e atual, fugindo a um género mais brejeiro. Sendo a programação algo de pessoal e subjetivo, o produtor diz-se “feliz por ter optado por declinar certos artistas, por entender que a proposta base vinha dum mau princípio, de ofensa pura, e não de rir, sem conteúdo bem preparado — apesar de ser polémico e ter público” e, por outro lado, “por ter trabalhado com grandes nomes do humor nacional e internacional, que tendo um humor transgressor, conseguem ter um olhar que nos surpreende pela forma como a piada é entregue”.

A Porta dos Fundos, com quem trabalha há cerca de 10 anos, tem um histórico de frequentemente bater no opressor e não no oprimido. “Em algumas polémicas eles retrataram-se, em outras não, por entenderem que de forma alguma o teriam de fazer. Mas ao terem sido alvo dum atentado em 2019 na sua sede por parte de grupos que se consideraram ofendidos, nomeadamente em assuntos de religião e de homossexualidade, ficou bem patente o risco e o medo que existe à volta do humor e que num mundo extremado como o de hoje, tende a piorar”, conclui.

O humor, enquanto arte, goste-se mais ou menos do humorista ou da piada concretos, encerra uma dimensão hiperbólica, de redução ao absurdo e de crítica e, muitas vezes, de condenação de atitudes através da sua aparente emulação. Digo aparente porque quem não perceber isto não percebe o que é o humor, enquanto expressão artística.

Ana Rita Duarte de Campos

sócia contratada da Abreu Advogados e especialista em Direito Penal

Tal como o produtor, Ana Rita Duarte de Campos vê os limites do humor como os da liberdade de expressão. “Mesmo considerando as especificidades do discurso humorístico, é possível que alguém se sinta ofendido por uma determinada piada. Isso pode dar origem a um processo-crime ou a uma ação de indemnização que, na esmagadora maioria dos casos, não levam, em Portugal, a decisões condenatórias”, aponta.

Tal acontece porque, ao contrário do Brasil, “não só não abdicamos de considerar o discurso artístico especial, bem como, para além da questão da liberdade de expressão, protegemos a liberdade de criação artística”.

“É preocupante ver um país como o Brasil, onde a expressão artística (humor, literatura, música) tiveram um papel fundamental no combate à ditadura, num país que é e sempre foi um portento artístico, o legislador penal ser mais severo relativamente aos factos que possam (tendo relevância criminal) ocorrer na esfera artística. E isto é um lamentável retrocesso jurídico, histórico e cultural”, conclui a especialista em Direito Penal.

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