Marcas deixam Rússia mas produtos voltam a marcar presença no mercado
Há um ano, antes de aplicadas sanções, grandes marcas ocidentais boicotaram a Rússia em sinal de protesto. Hoje, muitas voltaram a estar presentes no mercado. Impacto na reputação divide especialistas
Adidas, Burberry, Cartier, Chanel, H&M, Zara, Bershka, Massimo Dutti, Pull & Bear, LÓreal, Nike, Prada, Puma, Coca-Cola, McDonand’s, Pepsi ou Starbucks são algumas das empresas ou marcas que há um ano anunciaram que iam suspender as suas operações em território russo, como forma de protesto pela invasão à Ucrânia.
“Foi bastante interessante como em tão pouco tempo as marcas atuaram, e decidiram sair da Rússia. Na minha opinião algumas marcas anteciparam-se a uma potencial pressão do mercado, e consequentemente decidiram atuar”, recorda, um ano depois, João Freire, professor no Instituto Português de Administração e Marketing (IPAM). “Obviamente, as primeiras marcas ao tomarem este tipo de decisão, baseada num bem comum, colocaram pressão em todas a outras marcas para agirem da mesma forma. Seria difícil para a Pepsi ficar no mercado russo quando a Coca-Cola anunciou a sua saída”, prossegue.
A decisão de boicote não é inédita. “Interessante é a rapidez do boicote”, salienta o professor, lembrando que um boicote a um país feito por marcas, e por imposição do mercado, aconteceu durante o regime do apartheid na África do Sul durante os anos 80 e meados dos anos 90 do século passado. A diferença é que “a imposição do boicote pelas marcas demorou bastante tempo, foi preciso sensibilizar as administrações das empresas e manter o assunto vivo junto da sociedade para que houvesse uma pressão do mercado”. No caso da Rússia, as decisões de saída foram quase imediatas.
Salvador da Cunha, CEO da consultora Lift, distingue, três tipos de comportamentos. Por um lado, “houve claramente uma tendência das marcas globais para tomar uma posição contra a invasão. Muitas marcas saíram da Rússia, logo como primeiro statement e como resultado da pressão dos seus clientes globais, mas também das sanções impostas pelo ocidente”. Num segundo plano, outras marcas, menos conhecidas, tiveram comportamentos ambíguos. “Manifestaram-se contra o conflito, mas continuaram a exportar para a Rússia”, descreve. Outras ainda, assumiram que não sairiam da Rússia, apesar de estarem contra o conflito, por considerarem que as ações do Estado russo não deveriam prejudicar a população, recorda Salvador da Cunha. “Esta ambiguidade acarretou um custo elevado para algumas marcas que não assumiram frontalmente e com clareza a sua posição”, acredita o especialista em reputação.
A decisão acertada foi a saída do território, considera Salvador da Cunha. “Os consumidores globais ocidentais identificam-se muito com essa decisão. As marcas que optaram por ficar estão a criar a perceção de que estão a ser, de alguma forma, complacentes com esta guerra e isso prejudica a sua reputação global”, diz.
O risco reputacional aqui é real e a equação é simples: ou perdem vendas na Rússia e ganham reputação global, ou perdem reputação global e mantêm negócios na Rússia.
A grande questão, para o CEO da Lift, é se as empresas estarão empenhadas em merecer a confiança dos seus grupos de interesse, mesmo que o preço a pagar seja a perda de competitividade e a redefinição das suas relações comerciais. “O risco reputacional aqui é real e a equação é simples: ou perdem vendas na Rússia e ganham reputação global, ou perdem reputação global e mantêm negócios na Rússia”, concretiza o responsável. “Para a maioria das empresas globais a opção de sair da Rússia foi a decisão adequada. A que gerou menos perdas e que afirmou o empenho das empresas em operar de acordo com o seu propósito e com valores comuns aos dos seus stakeholders”, explica. “As perdas reputacionais relevaram-se superiores aos custos de sair da Rússia e as empresas já perceberam isso”, afirma.
Na decisão de sair ou ficar, João Feire também distingue as marcas que operam no mercado B2B e aquelas que se dirigem ao consumidor final, onde a pressão para a adesão ao boicote é maior e mais óbvia. Depois, há outras questões a somar às reputacionais. “Para as marcas não cotadas em bolsa, sem grande pressão de investidores e dos seus clientes, a decisão de saída poderá estar ligada, não a questões reputacionais, mas sim a questões operacionais do negócio”, diz o professor do IPAM, lembrando que “as sanções da UE e EUA e o facto de na Rússia ter sido suspenso o sistema de comunicação interbancário SWIFT, poderá complicar em grande medida as operações das empresa”.
Empresas deixam a Rússia mas produtos voltam ao país
O certo é que um ano após o início da invasão contínua a ser possível aceder a algumas das marcas que deixaram o território. A Reuters avançava esta semana que, mesmo tendo várias marcas ocidentais deixado a Rússia, os produtos continuam disponíveis no território. Os camiões carregados com Coca-Cola continuam a cruzar a fronteira, os turistas entram no país com malas carregadas de artigos da Zara e nos sites de ecommerce locais encontram-se móveis do Ikea.
Apesar de empresas europeias, norte-americanas e japonesas saírem da Rússia, o impacto sobre os consumidores locais é mínimo, embora os prazos de entrega possam ser mais longos e alguns produtos mais caros, dizia a reportagem local da Reuters, explicando que a principal mudança foi nas rotas de abastecimento. “Os compradores só precisam saber onde procurar”, resume, explicando que a grande maioria das mercadorias em questão não está sujeita a sanções, esses fluxos transfronteiriços são legais e Moscovo fica feliz pela chegada destes produtos, qualquer que seja a porta de entrada.
A título de exemplo, a plataforma Wildberries tem quase 17 mil produtos Zara e os sites de ecommerce Ozon e Yandex Market vendem Coca-Cola, que chega a ser anunciada como importada para os consumidores saberem que se trata da original.
Também no final de novembro o Politico, citando a agência Tass, dizia que através de uma parceria com a Post Global, sediada em Hong Kong, os russos podiam voltar a aceder a produtos da Zara, Nike, Adidas, Lego ou Hugo Boss.
E como é que fica, neste contexto, a reputação das marcas? “As marcas não serão minimamente afetadas, bem pelo contrário”, defende João Freire. “As marcas que são compradas em mercados paralelos e são notícia, isso apenas reforça a sua relevância”, diz o docente do IPAM, acrescentando que “o mercado procura soluções criativas para satisfazer as necessidades dos consumidores relativamente às marcas mais relevantes”.
Será interessante observar se de facto a Heineken ou a Carlsberg serão afetadas por continuarem a operar no mercado russo. Como é óbvio, não nos podemos esquecer que ao sair do mercado russo, as marcas ocidentais serão substituídas por marcas de outros países, por exemplo da China.
Salvador da Cunha não partilha da mesma opinião. “O valor das marcas pode sofrer com esse facto, ainda que possa ser menor caso as marcas não sejam responsáveis pela venda direta”, começa por dizer, alertando para que os riscos de “serem apanhadas a promover o circuito paralelo”. “Já o risco de danos reputacionais para as marcas que estão a vender online é superior, muito embora a falta de informação credível que vem da Rússia projete, de alguma forma, essas mesmas marcas”. “Em ambos os casos, não deixa de ser ‘gato escondido com rabo de fora’. Há riscos sérios de serem apanhadas em contradição”, resume o CEO da Lift.
Com a guerra sem fim à vista, João Freire defende que será cada vez mais imoral justificar a permanência no mercado russo e o aproveitamento de um mercado menos concorrencial. “Esse será um risco reputacional e que poderá ser problemático para as marcas que decidiram ficar. Mas, uma vez mais, este é um problema reputacional para as marcas que operam num mercado B2C”, volta a distinguir. “Será interessante observar se de facto a Heineken ou a Carlsberg serão afetadas por continuarem a operar no mercado russo. Como é óbvio, não nos podemos esquecer que ao sair do mercado russo, as marcas ocidentais serão substituídas por marcas de outros países, por exemplo da China”, conclui.
“A geopolítica e a geoeconomia global mudou de paradigma”, afirma Salvador da Cunha. “Apesar de importante, o mercado russo não é muito significativo a nível global, e a comprovar isso mesmo está o facto de muitas marcas terem encontrado alternativas à Rússia para as suas exportações”, defende contrariando assim a ideia defendida por João Freire. “Enquanto o conflito se mantiver e mesmo que termine a breve prazo (assim esperamos), vão passar muitos anos até que as marcas ocidentais voltem a olhar e a considerar a Rússia”, antecipa o CEO da Lift.
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