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Os media e a IA: quem celebrou acordos e quem avançou com processos?

Rafael Ascensão,

As opiniões dividem-se quanto ao uso de IA no jornalismo. Quais os meios jornalísticos que optam pela celebração de acordos com empresas de IA e quais estão a avançar com processos legais?

A inteligência artificial (IA) e a sua aplicação já não é uma possibilidade mas sim uma certeza nos mais variados setores. O campo do jornalismo e a sua principal ferramenta de trabalho – a informação – são sensíveis ao uso desta tecnologia na produção noticiosa e as opiniões dividem-se.

Na verdade, têm sido paulatinamente levantadas questões e dúvidas sobre a inteligência artificial e as suas possibilidades, implicações e consequências para o jornalismo.

A organização internacional Repórteres Sem Fronteiras (RSF), por exemplo, em conjunto com 16 parceiros, divulgou em novembro a Carta de Paris sobre inteligência artificial e jornalismo, de forma a definir princípios e padrões éticos para jornalistas, redações e meios de comunicação na sua relação com a inteligência artificial.

A carta define dez “princípios fundamentais” para salvaguardar a integridade da informação e preservar o papel social do jornalismo, entre os quais que “a ética deve governar as escolhas tecnológicas nos meios de comunicação” ou que “a mão humana deve continuar a ser central nas decisões editoriais”.

A maioria das pessoas parece não subscrever um amplo ou total uso da inteligência artificial no jornalismo. Na verdade, apenas 5% usam ferramentas de inteligência artificial (IA) para ter acesso às últimas notícias. No entanto, 24% utilizam estas ferramentas para ter acesso a informação e 28% já as utilizou para criar algum tipo de conteúdo, seja texto, áudio, código, imagem ou vídeo.

As conclusões são de um estudo do Reuters Institute for the Study of Journalism, que evidencia também que a maioria das pessoas espera que as notícias produzidas maioritariamente através de IA sejam menos confiáveis e transparentes.

A verdade é que os órgãos de comunicação social e as organizações e entidades jornalísticas têm-se dividido entre a celebração de acordos com empresas de inteligência artificial e o avançar de processos em tribunal, embora a maioria enverede por acordos e pela exploração dos benefícios que a IA tem para oferecer ao mundo das notícias.

Naquele que talvez tenha sido o caso mais mediático, o The New York Times avançou no final do ano passado com um processo contra a Microsoft e a OpenAI, criadora e proprietária do ChatGPT, por violação de direitos de autor.

Esta foi a primeira ação legal iniciada por um dos grandes meios de comunicação social norte-americanos contra as donas de plataformas de inteligência artificial. O jornal norte-americano argumentou que “milhões” dos seus conteúdos e artigos publicados foram e estavam a ser usados sem a sua permissão para “alimentar” as plataformas de inteligência artificial destas empresas tecnológicas, de forma a torná-las mais completas, fiáveis e inteligentes.

Já em fevereiro deste ano, três meios digitais norte-americanos (The Intercept, Raw Story e Alter Net) encetaram ações judiciais contra a OpenAI, opondo-se ao uso dos seus artigos para o treino do ChatGPT. Entre estes, o The Intercept também avançou com um processo contra a Microsoft.

Em maio deste ano, um grupo de jornais dos EUA também processou a OpenAI e a Microsoft, alegando que as empresas de tecnologia têm estado a “roubar milhões” de artigos noticiosos sujeitos a direitos de autor. Entre os títulos que apresentaram a queixa num tribunal federal, em Nova Iorque, estavam o The New York Daily News, o Chicago Tribune e o Denver Post.

No final de junho, a primeira organização de jornalismo de investigação sem fins lucrativos que foi criada nos EUA, o Center for Investigative Reporting, avançou com um processo contra a OpenAI e a Microsoft, justificando a ação com o facto de estas empresas terem usado o seu conteúdo “sem permissão ou sem oferecer compensações”, acusando-as de “práticas de exploração”.

Ainda antes de todos estes, em janeiro de 2023, a Getty Images iniciou um processo judicial contra a Stability AI, no Reino Unido, alegando que esta “copiou e processou ilegalmente” milhões das suas imagens protegidas por direitos de autor. Em dezembro do mesmo ano, o Tribunal Superior de Londres decidiu que o caso podia ir a julgamento depois de a Stability AI não ter conseguido “justificar” os aspetos da reclamação relacionados com os direitos de autor.

Mas, por outro lado, são muitos os órgãos de comunicação social que optam por celebrar acordos com as empresas e plataformas de inteligência artificial.

O jornal francês Le Monde e o grupo espanhol Prisa Media, por exemplo, firmaram uma parceria com a criadora e proprietária do ChatGPT em março, com o objetivo de “permitir que os utilizadores do ChatGPT se conectem com notícias de novas formas que são interativas e esclarecedoras”.

Esta parceria visou permitir ao ChatGPT incluir conteúdos noticiosos nos idiomas francês e espanhol, para que os utilizadores desta ferramenta de IA conseguissem interagir com conteúdos destes meios através de “resumos selecionados” que contam com a atribuição da fonte e com links para os artigos originais, permitindo o acesso a informações adicionais ou a artigos relacionados nos respetivos sites de notícias.

Segundo referia na altura, citado em comunicado, o chief operating officer (COO) da OpenAI, Brad Lightcap, a OpenAI está empenhada “em apoiar o jornalismo através da aplicação de novas tecnologias de IA e do aumento de oportunidades para os criadores de conteúdo“.

Depois destes, também o Financial Times (FT) avançou para uma parceria com a OpenAI, com o objetivo de permitir que a OpenAI possa treinar as suas plataformas de inteligência artificial através do acesso a conteúdos arquivados do jornal.

Segundo os termos do contrato, o jornal britânico disponibiliza material à OpenAI de forma a ajudar ao desenvolvimento de tecnologia de inteligência artificial generativa que possa criar textos, imagens e códigos indistinguíveis das criações humanas. O acordo visa permitir que o ChatGPT responda a questões com resumos provenientes de artigos do FT, com links a encaminharem para a fonte original, no site do jornal.

Já no início de junho deste ano, a Associação Mundial de Jornais (WAN-IFRA) e a OpenAI também anunciaram que se encontravam a colaborar num programa para “acelerar” a exploração e integração de inteligência artificial (IA) nas redações de mais de uma centena de jornais a nível global. O objetivo passa por ajudar as redações a adotar e implementar IA no seu trabalho, de forma a aumentar a eficiência e a criação de “conteúdo de qualidade”.

No total são 128 as redações da Europa, Ásia-Pacífico, sul da Ásia e América Latina que vão beneficiar deste programa onde a OpenAI vai proporcionar financiamento e assistência técnica.

Também em junho deste ano, a Time assinou um acordo “plurianual” e “parceria estratégia” com a OpenAI, dando acesso à criadora do ChatGPT ao seu arquivo centenário e aos seus relatórios para que esta possa fornecer respostas atualizadas aos seus utilizadores, recorrendo a citações e links para o site. Por outro lado, a Time terá acesso à tecnologia da OpenAI para construir os seus próprios produtos. A revista vai também dar feedback à empresa tecnológica sobre o acesso a jornalismo através das suas ferramentas.

A Vox Media também celebrou uma “parceria estratégica de conteúdo e produto” com a OpenAI o que inclui a abertura do conteúdo dos seus meios (Vox, The Verge, Eater, New York Magazine, The Cut, Vulture e SB Nation) para uso por parte do ChatGPT e o uso da tecnologia da OpenAI para desenvolver produtos internos e dirigidos ao público.

Em maio, a Dotdash Meredith (que publica mais de 40 títulos, incluindo People, Instyle e Investopedia) e o The Atlantic também celebraram acordos com a OpenAI, em termos semelhantes.

No mesmo mês, o grupo News Corp também estabeleceu uma parceria que abrange vários dos seus meios do Reino Unido (The Times, The Sunday Times, The Sun), Estados Unidos da América (The Wall Street Journal, Barron’s, MarketWatch, Investor’s Business Daily, New York Post) e Austrália (The Australian, The Daily Telegraph, The Courier Mail, The Advertiser, Herald Sun), num acordo de 250 milhões de dólares, segundo o The Wall Street Journal.

Já a Informa anunciou também um acordo de parceria e acesso a dados não exclusivo com a Microsoft, através de uma taxa inicial de mais de 10 milhões de dólares, seguida de mais três pagamentos anuais recorrentes, segundo a Press Gazette. O acordo abrange melhorias na produtividade, desenvolvimento de um sistema de citações e acesso a dados.

A OpenAI e a Associated Press também assinaram um acordo em julho do ano passado, que permite à empresa de IA licenciar o arquivo da agência de notícias desde 1985 para fins de treinamento dos seus modelos de linguagem. As empresas também avançaram que estavam a analisar “possíveis usos da IA generativa em produtos e serviços de notícias” sem adiantar detalhes.

No mesmo mês, a OpenAI deu cinco milhões de dólares ao American Journalism Project para apoiar o trabalho desta entidade e prometeu conferir cinco milhões de dólares em créditos da OpenAI para ajudar as organizações deste projeto a testar tecnologias emergentes de IA.

O grupo alemão Axel Springer, depois de já ter celebrado uma parceria com a OpenAI, fez também um acordo com a Microsoft relativo à IA mas também a publicidade e conteúdos. No que diz respeito à IA, a Microsoft vai ajudar o grupo de media a desenvolver um chat alimentado a inteligência artificial para informar os utilizadores dos meios do grupo.

Há cerca de um ano, a Shutterstock também expandiu sua parceria com a OpenAI através de um acordo de seis anos que permitiu acesso a uma grande quantidade de dados, incluindo imagens, vídeos, músicas e metadados associados. Já a Shutterstock obtém, desta forma, “acesso prioritário” às novas tecnologias da OpenAI e pode oferecer os recursos de texto para imagem do DALL-E diretamente na sua plataforma.

Qual é o panorama em Portugal?

Segundo a opinião da esmagadora maioria dos inquiridos na segunda edição da “Sonda +M / Central de Informação”, barómetro de media composto por 49 jornalistas em cargos de edição/direção de mais de 30 órgãos de comunicação social portugueses de âmbito nacional, a regulamentação para limitar o uso de IA no jornalismo é necessária e urgente.

De acordo com 68% dos jornalistas inquiridos, a utilização descontrolada de IA pode colocar em risco os códigos deontológicos e, para 27% dos inquiridos, o seu desenvolvimento tem sido muito rápido e descontrolado. Os restantes 5% consideram que a regulamentação para limitar o uso de IA no jornalismo é necessária mas para informar, não limitar.

O cidadão português comum também parece não estar muito agradado com a interferência de inteligência artificial na produção noticiosa, uma vez que a informação é o tipo de formato onde uso de IA mais é rejeitado pelos portugueses.

Segundo um estudo da Gfk sobre a relação dos portugueses com a inteligência artificial (IA), em particular na produção audiovisual, sendo que os programas de informação são mesmo o tipo de conteúdos audiovisuais que apresentam menos aceitação por parte dos portugueses no que toca à utilização de IA para a sua criação, sendo que 26% dizem “não concordar nada” com a sua utilização. No entanto, sublinhe-se, 14% dizem que “concordam muito”.

Naquela que foi a primeira vez que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) se pronunciou sobre conteúdo gerado por IA num programa televisivo de informação, este órgão exigiu em abril a publicação de uma carta de princípios para o uso de inteligência artificial por parte da CNN Portugal, depois de o canal ter usado esta tecnologia numa rubrica a propósito dos debates eleitorais no âmbito da campanha para as eleições legislativas de 2024.

O objetivo, segundo o regulador, passava por “garantir a integridade, quer dos conteúdos decorrentes dessa tecnologia, quer das prerrogativas inerentes à atividade jornalística, e tornar transparentes perante os espetadores o tipo de tarefas que são executadas por estes sistemas – editoriais e/ou não editoriais”.

O caso mais expressivo da utilização de IA no jornalismo em Portugal talvez tenha ocorrido em abril do ano passado, quando o jornal i lançou uma edição feita, na íntegra, através do ChatGPT. Segundo explicou na altura o diretor do jornal, Mário Ramires, ao +M, o jornalismo online em vários sítios já é feito através de computadores e algoritmos, que recebem as notícias colocadas na internet e divulgam as que consideram válidas, pelo que a inovação passou por “não ter a intervenção de jornalistas”.

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