Marcelo a pedir aplausos para o PCP, analfabetos a votar e milionários improváveis. As primeiras eleições livres foram há 50 anos

Quando faltam 23 dias para as Legislativas antecipadas de 18 de maio, cumprem-se 50 anos das eleições que levaram a São Bento os primeiros 250 deputados eleitos livremente e em sufrágio universal.

“Votai, mas votai com consciência. Não nos envergonhará a falta de cultura política, porque até essa sempre nos foi negada e escamoteada”. O apelo ao voto de Francisco da Costa Gomes, Presidente da República de setembro de 1974 a junho de 1976, assinalava a necessidade de chamar os portugueses a um momento novo das suas vidas.

As eleições que viriam a decorrer a 25 de abril de 1975 cumprem-se nesta sexta-feira 50 anos, eram as primeiras livres, por sufrágio direto e universal. A idade era o determinante do direito de voto e acabavam-se exceções como a da iliteracia. Estava dado o passo para a criação da Assembleia Constituinte, cuja função era a elaboração da Constituição da República Portuguesa.

A televisão era um meio privilegiado para as autoridades, enquanto no terreno se destacavam as ações dos partidos políticos. Como aquela em que Marcelo Rebelo de Sousa, membro do Partido Popular Democrático — PPD, com ainda era designado o atual PSD –, foi a Grândola e, perante uma sala cheia e hostil, pediu uma salva de palmas para o PCP, pelo trabalho dos comunistas na instauração de uma democracia. A sala explodiu num aplauso.

Marcelo conquistou o direito a falar do programa do PPD, recorda ao ECO Helena Roseta, então candidata a deputada na Constituinte por este partido (do qual se viria a desvincular uma década depois, aquando do apoio a Mário Soares para as Presidenciais de 1986).

Havia curiosidade enorme das pessoas, toda a gente aparecia nas sessões. As pessoas estavam a ver o país mudar e queriam ser parte da história. É uma coisa que não há hoje. O país acordou para a democracia com curiosidade de experimentar. Não havia tanto cinismo. Valorizava-se muito a ideia de que todos temos direito à opinião.

Helena Roseta

Deputada eleita para a Assembleia Constituinte pelo PPD

Naqueles tempos verdadeiramente excecionais, a realidade era bem distinta da atual, desde logo nas contas dos partidos. O CDS apresentava receitas de 1.781 contos (cerca de 9.000 euros) na campanha, valor aproximado aos 1.483 contos (quase 7.500 euros) do MDP/CDE.

O PS, partido que sairia vencedor, apresentou, segundo os números da Comissão Nacional de Eleições, cerca de 11.200 contos (cerca de 55 mil euros), o PPD ficou em cerca de um terço (3 mil contos) e, surpreendentemente, o PCP apresentava receitas superiores a 7 mil contos (35 mil euros), mais do dobro do PPD.

Enquanto o PS se destacava no capítulo das “contribuições pecuniárias para campanha eleitoral” e “produtos de venda de artigos de propaganda”, ambas as dotações acima de 5 mil contos (25 mil euros), o PCP brilhava nos fundos próprios, com mais de 4 mil contos (20 mil euros).

A corrida eleitoral exigia esforços máximos para conquistar uma população que nunca votara em liberdade. “Havia curiosidade enorme das pessoas, toda a gente aparecia nas sessões de esclarecimento. As pessoas estavam a ver o país mudar e queriam ser parte da história. É uma coisa que não há hoje. O país acordou para a democracia com curiosidade de experimentar. Não havia tanto cinismo. Valorizava-se muito a ideia de que todos temos direito à opinião”, diz aquela que foi uma das 19 mulheres eleitas a 25 de abril de 1975.

Íamos fazer sessões para sítios onde havia hostilidade ao PPD, como no Alentejo, mas não tenho memória de andar com segurança”, diz Roseta. Aqueles eram tempos de “certa inocência, com muita curiosidade antes das eleições” e com “menos malícia e cinismo nas sessões” de esclarecimento.

Foi precisamente numa delas que Pedro Roseta, seu marido e também ele eleito para a Constituinte a 25 de abril de 1975, acompanhou Marcelo Rebelo de Sousa a Grândola. “Nas sessões de esclarecimento, um pequeno grupo aparecia para provocar, mas não era uma situação generalizada. Tínhamos de sair com grandes tiradas da mesa para virar a questão”. De todas as chapeladas orais, recorda precisamente a do atual Presidente da República.

“Uma das pessoas que era perita nisso era o Marcelo. Há uma célebre sessão em Grândola, pouco depois do 25 de abril. O PPD era considerado um partido fascista. Chegaram a Grândola o Marcelo e o Pedro, num café havia folhetos com um esqueleto e morte ao PPD”, descreve. O Marcelo diz ‘quero começar por fazer homenagem aos que durante 48 anos lutaram, peço uma salva de palmas para o PCP'”. A plateia correspondeu. “É o caso mais óbvio de virar um auditório”, realça.

Uma das pessoas que era perita nisso era o Marcelo. Há uma célebre sessão em Grândola, pouco depois do 25 de abril. O PPD era considerado um partido fascista. Chegaram a Grândola o Marcelo e o Pedro, num café havia folhetos com um esqueleto e morte ao PPD”, descreve. O Marcelo diz ‘quero começar por fazer homenagem aos que durante 48 anos lutaram, peço uma salva de palmas para o PCP.

Helena Roseta

Deputada eleita para a Assembleia Constituinte pelo PPD

“O país estava armado até aos dentes, o risco de guerra civil era real”, recorda Helena Roseta. “Havia militantes que levavam pancada e ficavam magoados”, recorda.

Era este o ambiente com que o país seguia para eleições, uma decisão do Movimento das Forças Armadas que Álvaro Cunhal chegou a tentar travar em 1974, conta ao ECO Carlos Brito, histórico do PCP e um dos deputados eleitos para a Constituinte.

Com uma parte do espetro político dominado por “caciques reacionários”, o PCP sentia que “o povo não podia votar em liberdade”, diz Carlos Brito. “Certa esquerda propunha eleições adiadas até ser resolvida a questão. A partir de determinada altura, o Álvaro Cunhal vai junto do Vasco Gonçalves tentar o adiamento. A resposta foi determinante”, recorda Carlos Brito: “a data da eleição é um compromisso de honra dos militares e como tal vai ser cumprido”.

Certa esquerda propunha eleições adiadas até ser resolvida a questão [do condicionamento dos eleitores por uma ala da esquerda]. A partir de determinada altura, o Álvaro Cunhal vai junto do Vasco Gonçalves tentar o adiamento. A resposta foi determinante

Carlos Brito

Deputado eleito para a Assembleia Constituinte pelo PCP

Efetivamente, na RTP, a 17 de dezembro de 1974, passava o filme do Movimento das Forças Armadas (MFA) em que o então aspirante José Nuno Martins explicava o processo de recenseamento eleitoral. “Meio de expressão da vontade popular” e “uma arma do povo”, assim era destacada a importância do voto a uma população com taxa de analfabetismo a rondar os 25%, anos-luz dos 3% de 2021, segundo números da Pordata.

“Sem que o povo possa exprimir a sua opinião, sem que o povo possa criticar as autoridades, sem que o povo possa dizer quais são as suas necessidades, em suma, sem que o povo escolha as suas autoridades, não há Governo que seja efetivamente um Governo democrático”, versava então o MFA.

Privados de literacia para lerem o nome dos partidos, os símbolos de cada um eram a marca que as comissões de esclarecimento incutiam, aponta Helena Roseta — ainda que, cinco décadas passadas, ainda tenha havido quem, em 2024, confundisse AD com ADN, segundo alegou a coligação nas legislativas de há um ano.

De 1926 até à revolução de 25 de abril de 1974, o Parlamento era monocolor, apenas com a União Nacional, partido único da ditadura, que seria renomeado Acção Parlamentar com Marcelo Caetano, o líder do regime que caiu a 25 de abril de 1974.

No referido programa na RTP, o MFA apontava eleições para a Constituinte para março e um universo eleitoral que quintuplicava de um milhão de votantes para cinco milhões. Na realidade, as eleições seriam proteladas para 25 de abril de 1975, a pedido dos partidos que pretendiam mais tempo para preparar o ato eleitoral, recapitula Helena Roseta.

Da campanha iniciada em março, Carlos Brito recorda um “entusiasmo que na presente campanha eleitoral não há”. O histórico comunista recorda o “sentimento de vitória” do momento do voto.

Chegados a 25 de abril de 1975, sobrava a ansiedade pelos resultados, recorda Helena Roseta. “Já nem me lembro de onde votei. O PPD tinha ido a jogo sem líder, O Sá Carneiro estava doente no estrangeiro”, conta. “O Magalhães Mota não tinha metade do impacto do Sá Carneiro”, acentua, e “toda a comunicação social estava dominada pelo PCP, estatizada”, com a liderança do Diário de Notícias e do seu diretor-adjunto José Saramago — futuro Nobel da Literatura –, relembra.

A vontade de mudança, a curiosidade, ou outros motivos quaisquer, levaram a uma participação superior a 90%, a mais alta de sempre em eleições livres em Portugal. “Naquele momento, as pessoas queriam escolher”, afirma Helena Roseta. Há exatamente 50 anos, “a festa estava na rua, a poesia estava na rua”.

Veio o resultado (mais de 30 horas depois, segundo a RTP) e o sucesso do PCP que alguns esperavam e outros temiam, não se confirmava. Vitória do PS, com 37,9%, que leh valeram 116 dos 250 deputados que então foram eleitos. Seguiu-se o PPD, com 26,4% e 81 deputados, mais do dobro dos 30 deputados e 12% do PCP.

“O PPD em segundo lugar, ninguém queria acreditar”, diz a deputada da Constituinte, eleita junto de mais 80 colegas de partido.

A Assembleia Constituinte contaria ainda seis deputados para o CDS, cinco para o MDP/CDE, um para a Associação de Defesa dos Interesses de Macau (só mais de 20 anos depois Portugal entrego aquele território à China) e outro para a UDP. Este era “intratável, um esquerdista incapaz de dialogar”, recorda Carlos Brito, ex-dirigente do Partido Comunista.

Helena Roseta, por seu lado, fala numa “linha mais radical que defendia as Forças Armadas. A UDP não acreditava muito na democracia parlamentar”, diz. O país passava a estar representado no seu todo na Assembleia, com distribuição de deputados por círculos eleitorais segundo o método de Hondt. Ao longo destes 50 anos, várias alterações foram introduzidas na distribuição, desde logo com introdução dos círculos fora de Portugal (ver tabela).

Apurados os resultados, a Assembleia Constituinte começou a trabalhar às 16h12 de 2 de junho de 1975. “A história, juiz implacável, dirá um dia se fomos ou não capazes de desempenhar cabalmente a missão que o eleitorado nos atribuiu nessa grande e inesquecível jornada cívica que foi o 25 de abril de 1975”, dizia então o presidente interino da Assembleia Constituinte, Henrique de Barros, na sessão inaugural do primeiro parlamento eleito em período democrático.

Ao contrário de hoje, não havia desconfiança para com os políticos, mas o mesmo não se podia dizer relativamente a militares, explica Helena Roseta: “todo o trabalho de preparação das eleições é feito com um Governo provisório, que não era Governo eleito. Não se desconfiava dos partidos enquanto tal. A desconfiança aparece de não se cumprir o que se promete”. Dos seus primeiros meses enquanto deputada da Constituinte, dá como exemplo das dificuldades o baixo salário dos deputados e os atrasos nos vencimentos.

O início da Constituinte foi marcado por “muita oratória”, recorda Carlos Brito, em que já existiam os apartes que hoje motivam tanta contestação por alegadas intervenções atentatórias da honra de deputados, mas estes eram políticos, e não pessoais, recorda o ex-deputado da Constituinte. Ainda assim, “os deputados estavam muitos períodos em roda livre. Os principais chefes estavam envolvidos numa certa posição da barganha do dia-a-dia”, desfia. “A certa altura, os deputados compenetraram-se na missão histórica que lhes estava confiada e começou a elaboração do texto constitucional”.

A certa altura, os deputados compenetraram-se na missão histórica que lhes estava confiada e começou a elaboração do texto constitucional.

Carlos Brito

Deputado eleito à Assembleia Constituinte pelo PCP

A votação e aprovação da Constituição da República Portuguesa, documento para o qual foi constituída a Assembleia eleita a 25 de abril de 1975, acabaria por acontecer um ano depois. A 2 de abril de 1976, a Constituição foi aprovada, iniciando um percurso de reconhecido sucesso, já com 49 anos de vida, durante os quais se registaram sete revisões constitucionais. Destas, as duas primeiras, em 1982 e 1989, significaram, como pontos mais relevantes, a extinção do Conselho da Revolução e criação do Tribunal Constitucional, e o fim da proibição de reversão das nacionalizações.

Carlos Brito recorda-se de o Presidente da República, Costa Gomes, se deslocar de Belém para São Bento, de forma a assinar o diploma ali aprovado. “Coisa extraordinária. O Presidente da República sair de Belém para evitar que a conspiração progredisse”.

“O Álvaro Cunhal não queria acreditar. Não tinha depositado confiança política naquela Assembleia Constituinte”. Mas o líder histórico do PCP viria a tornar-se grande defensor da Constituinte, assegura Carlos Brito, enaltecendo o trabalho de Mário Soares e do PS no texto constitucional.

A opor-se esteve, assegura o comunista, Francisco Sá Carneiro, que, ainda antes da votação, terá vociferado “isto é uma constituição marxista”. Ainda assim, recorda, apesar desta alegada vontade do líder, “os deputados do PPD estiveram envolvidíssimos na Constituição. O Vital Moreira e o Jorge Miranda destacaram-se como defensores. Isolaram o Sá Carneiro”, assegura.

Pelo meio, os 250 deputados iniciais da democracia portuguesa enfrentaram o Verão Quente, período de forte agitação social, política e militar, de que resultaram, por exemplo, as nacionalizações, o cerco de 36 horas à Assembleia da República a 12 de novembro, e o 25 de novembro, dia em que o país esteve próximo da guerra civil.

Há exatamente 49 anos, com a Constituição da República Portuguesa já aprovada, decorreriam as primeiras eleições para a Assembleia da República, com nova vitória do PS, com 35% dos votos e 107 deputados, entre 263 eleitos. Seguiram-se PPD, com 24,3%e 73 deputados, CDS, com 16% e 42 eleitos, PCP, com 14,4% e 40 assentos e a UDP, um dos partidos que viriam a dar lugar ao Bloco de Esquerda mais de 20 anos depois, com um deputado único.

As regiões autónomas iriam a votos também em 1976, mas a 27 de junho, dia em que também é eleito o Presidente da República Ramalho Eanes, único, neste período de 49 anos, vindo do setor militar. Finalmente, a 12 de dezembro, há autárquicas. O processo eleitoral livre por sufrágio universal, iniciado há 50 anos, estava definitivamente implementado. A 19 de julho de 1987 seria altura de eleger, pela primeira vez, deputados portugueses ao Parlamento Europeu.

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