Vidas perdidas no altar do corporativismo

Os médicos, como classe profissional, foram muito maltratados pelo Governo, principalmente, depois do esforço enorme que realizaram durante dois anos.

Muitos dos leitores estarão nesta altura a regressar de férias. Alguns poderão ter exagerado no tempo de exposição solar e estar preocupados com algum sinal na pele que não se lembram de ter tido antes. Com dúvidas, se quiserem marcar uma consulta de dermatologia e estiverem dependentes do SNS, poderão ter de esperar mais de 6 meses. Em algumas zonas do país, até mais de um ano. Para a maioria das pessoas, isso não será um problema porque o tal sinal não será nada de preocupante. Para as mais azaradas, a espera de alguns meses trará um diagnóstico fatal.

Em Portugal, estima-se que morram cerca de 400 pessoas por ano dos vários tipos de cancros de pele, sendo que 90% destas mortes seriam evitáveis agindo sobre os fatores de risco ou diagnosticando os casos a tempo. Infelizmente, para quem está dependente do SNS, o diagnóstico atempado é, em muitos casos, uma miragem. Em algumas zonas do país, o tempo de espera para uma consulta tida como não urgente supera um ano.

O SNS, e o país como um todo, tem uma grande falta de dermatologistas. Não é uma especialidade que faça encerrar urgências ou que gere notícias de abertura de telejornais, mas é uma das especialidades onde existe maior escassez de médicos no país. Seria de esperar que perante uma tão grande escassez de médicos, existisse um esforço no sentido de formar mais especialistas, mas não é esse o caso.

Em 2021 abriram apenas 13 vagas desta especialidade em todo o país. No Centro Hospitalar Universitário de São João, no Porto, abriu apenas uma vaga, o mesmo acontecendo no Hospital Santo António e no Hospital de Braga. Não sendo uma especialidade com grande componente cirúrgica e existindo capacidade formativa, seria de esperar que pudessem abrir mais vagas. No Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte abriram 3 vagas, tantas como no São João, Santo António e Hospital de Braga juntos. E mesmo os médicos de outras especialidades (que poderiam ter tendência a alinhar pelo corporativismo dos colegas) estranham o baixo número de vagas desta especialidade que se abrem, todos os anos, há já muito tempo.

Também não é por falta de bons candidatos que não abrem vagas. As vagas de dermatovenereologia são ocupadas por alguns dos alunos com as melhores notas dos exames de acesso à especialidade. Em 2021, foi mesmo a especialidade escolhida pela candidata mais bem colocada de todos. A candidata que podia escolher qualquer especialidade, em qualquer hospital do país, escolheu, precisamente, a única vaga de dermatovenereologia do Hospital de São João.

Existem poucos dermatologistas e esta escassez torna a especialidade financeiramente atrativa, o que faz com que seja a escolha de muitos dos candidatos mais bem colocados no concurso de acesso à especialidade. Uma forma de garantir que essa escassez se mantém e que os profissionais continuam a ser pagos acima da média por muitas décadas é, precisamente, limitar o número de novos especialistas. Mas esta estratégia tem um custo. Um custo que é medido em vidas perdidas, em pessoas incapacitadas e em famílias afetadas, devido à falta de prevenção primária e a diagnósticos e tratamentos tardios.

Médicos salvam vidas. Mais médicos salvam mais vidas. Restringir a formação de médicos reduz o número de vidas que podem ser salvas no futuro. No Juramento de Hipócrates, que todos os médicos têm de fazer, consta o compromisso: “A Saúde do meu Doente será a minha primeira preocupação.”. Não está explícito, mas percebe-se que deste compromisso resulta, também, que a saúde daqueles que ainda não são pacientes ou que ainda não sabem que estão doentes, deve ser, também, a primeira preocupação de qualquer médico. Seria bom, assim, que alguns médicos mais antigos relessem e reinterpretassem o Juramento de Hipócrates e percebessem as consequências da limitação da formação na sua especialidade, para além das consequências na sua conta bancária. E, sim, não é apenas na especialidade de dermatologia que esta restrição acontece. E, sim, há especialidades em que não existe capacidade para formar mais especialistas.

Os médicos, como classe profissional, foram muito maltratados pelo Governo, principalmente, depois do esforço enorme que realizaram durante dois anos. Se toda a emigração de talento por falta de oportunidades é de lamentar, a dos médicos, que têm de passar por uma longa formação, é, particularmente, preocupante. Como todos os trabalhadores, merecem descanso, tempo de férias e ser recompensados, de forma justa, pelo seu trabalho, anos de estudo e mérito. E, por isso, seria importante que, como classe profissional, não permitissem que alguns se aproveitem das falhas do sistema para manipular o jogo a seu favor, criando escassez artificial na sua especialidade, prejudicando pacientes e a própria imagem da sua classe profissional.

  • Joana Cordeiro
  • Colunista convidada. Deputada da Iniciativa Liberal

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