Do protocolo da Irlanda do Norte ao Acordo de Windsor, o que muda entre a UE e o Reino Unido?

  • Joana Abrantes Gomes
  • 4 Março 2023

Bruxelas e Londres acordaram desde uma simplificação dos controlos alfandegários para várias mercadorias a alterações à aplicação de regras da UE no território norte-irlandês.

Depois de vários meses de negociações, a União Europeia (UE) e o Reino Unido chegaram a acordo esta semana, para resolver as questões que envolvem a operacionalização do protocolo da Irlanda do Norte no âmbito do Brexit.

Além de revitalizar a economia, o objetivo passa por aliviar a insatisfação dos unionistas da Irlanda do Norte, que consideram que aquele território está dependente de Bruxelas e desconectado do resto do Reino Unido, estando a bloquear a formação de um novo Governo na região desde maio do ano passado.

Desde a simplificação da burocracia necessária para a circulação de vários alimentos, medicamentos e plantas, a alterações das regras ao nível fiscal e das ajudas estatais, o que muda com o “Acordo de Windsor”, que o primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, diz que “vai fazer uma diferença positiva enorme” para a população e as empresas da Irlanda do Norte?

Circulação de produtos agroalimentares

Um dos principais pontos do acordo diz respeito aos alimentos destinados a supermercados, lojas e outros estabelecimentos da Irlanda do Norte, que até aqui estavam sujeitos a controlos aduaneiros rigorosos na fronteira ao longo do mar da Irlanda. Para simplificar estes procedimentos, a UE e o Reino Unido acordaram reduzir consideravelmente a burocracia aduaneira e os controlos das mercadorias que circulam da Grã-Bretanha e que se destinam a permanecer em território norte-irlandês.

Estas mercadorias, que serão rotuladas “Não para a UE”, terão de passar por uma espécie de “via verde” que requer apenas que os comerciantes preencham um certificado único e digitalizado por movimento de camiões, em vez de múltiplos formulários por carga. Por seu lado, os produtos que se dirigem à República da Irlanda, que integra o mercado único europeu, serão submetidos a controlos aduaneiros completos da UE nos portos marítimos da Irlanda do Norte através de uma “via vermelha”.

A “via verde” entrará em vigor no próximo outono, enquanto os rótulos para carne, produtos de carne e produtos lácteos minimamente processados, tais como leite fresco, serão aplicados a partir de 1 de outubro de 2024. Todos os outros produtos serão marcados até 1 de julho de 2025, com exceção de produtos como pão e massa, que não serão rotulados.

Embora Rishi Sunak tenha afirmado que estas alterações significam o fim de “qualquer sentido de fronteira no mar da Irlanda”, o “Acordo de Windsor” não acaba completamente com a burocracia no Mar da Irlanda. Um funcionário de Bruxelas, citado pelo Politico, reconheceu que o acordo proporciona uma “redução dramática” no número de controlos físicos de segurança alimentar, mas ainda haverá alguns – considerados “essenciais” – para evitar o risco de entrada de mercadorias no mercado único, de modo a prevenir o contrabando e a criminalidade.

As normas de saúde e segurança pública do Reino Unido aplicar-se-ão a todos os alimentos e bebidas na Irlanda do Norte, o que eliminará mais de 60 regras da UE sobre estes produtos no protocolo original. Ainda assim, há salvaguardas para Bruxelas: por um lado, passará a ter acesso, em tempo real, a bases de dados de rastreio das remessas de mercadorias entre a Grã-Bretanha e a Irlanda do Norte; por outro, a Comissão Europeia poderá suspender parte ou a totalidade destas facilidades comerciais caso o Reino Unido não cumpra as novas regras.

Animais de estimação

Viajar com cães ou gatos por todo o Reino Unido também será mais fácil a partir do próximo outono, já que deixará de ser necessário ter qualquer documentação, declarações, controlos ou tratamentos de saúde para doenças como a raiva.

Os animais de estimação terão de ser identificados por um microchip e poderão viajar apenas com um documento de viagem, que será vitalício e emitido gratuitamente pelo Departamento do Ambiente, Alimentação e Assuntos Rurais do Reino Unido. Além disso, os donos precisam de ter uma declaração de que o animal não viajará para a UE.

Medicamentos

“Os mesmos medicamentos, nas mesmas embalagens, com os mesmos rótulos, estarão disponíveis em todo o Reino Unido, sem necessidade de requisitos de leitura de códigos de barras ao abrigo do antigo protocolo”. Foi assim que Rishi Sunak resumiu, na segunda-feira, a solução permanente para assegurar que a população na Irlanda do Norte tenha acesso a todos os medicamentos, incluindo medicamentos novos, ao mesmo tempo e nas mesmas condições que as pessoas no resto do Reino Unido.

As empresas terão de obter da Agência Reguladora de Medicamentos e Produtos para a Saúde (MHRA, na sigla em inglês) a aprovação de uma licença ao nível do Reino Unido para o fornecimento de medicamentos à Irlanda do Norte, em vez de estarem sujeitas às regras e procedimentos da Agência Europeia de Medicamentos (EMA, na sigla em inglês).

O acordo elimina, assim, quaisquer requisitos de embalagem, rotulagem e código de barras da Diretiva Europeia de Medicamentos Falsificados para medicamentos. Isto significa que os fabricantes poderão conceber uma única embalagem de medicamentos para todo o Reino Unido, incluindo a Irlanda do Norte.

Simultaneamente, os medicamentos enviados para a Irlanda do Norte a partir da Grã-Bretanha – o que será feito através da nova “via verde” – deixam de estar sujeitos a documentação, controlos e taxas alfandegárias, estando os comerciantes apenas obrigados a fornecer informações comerciais normais.

Estas regras estão, contudo, sujeitas a determinadas condições para assegurar que os medicamentos autorizados no Reino Unido não acabam no mercado de qualquer Estado-Membro da UE. Para isso, as embalagens individuais de todos os medicamentos colocados no mercado norte-irlandês deverão ter um rótulo a indicar “apenas Reino Unido”. O Governo britânico será responsável pelo controlo contínuo da sua colocação no mercado da Irlanda do Norte, enquanto a Comissão Europeia poderá suspender unilateralmente as novas regras caso o Reino Unido não cumpra as suas obrigações.

Taxas, ajudas estatais e regras da UE

O Governo britânico poderá agora fixar o IVA, as ajudas estatais e o imposto sobre bebidas alcoólicas que também se aplicarão na Irlanda do Norte, o que está a ser visto como uma grande concessão por parte da Comissão Europeia, que em rondas de negociações anteriores havia rejeitado estas regras.

Como salvaguarda, Bruxelas estabeleceu que as empresas da Irlanda do Norte que produzem bens para o mercado interno do Reino Unido só terão de seguir “menos de 3%” das regras do mercado único da UE, segundo um funcionário do Reino Unido. Só que a natureza destes regulamentos é pouco clara, prevendo-se uma maior vigilância e fiscalização do mercado pelas autoridades britânicas para tentar tranquilizar a UE.

Governance e o “travão de Stormont”

Nos termos do novo acordo, a Comissão Europeia terá de notificar o Governo britânico acerca de quaisquer atualizações sobre a regulamentação da UE destinada a ser aplicada na Irlanda do Norte. Mas, ao abrigo do “travão de Stormont”, o Reino Unido poderá suspender a aplicação de novas leis da UE naquele território se pelo menos um terço dos membros do Parlamento de Belfast assim o pedir.

Porém, se os unionistas da Irlanda do Norte quiserem acionar esta ferramenta de emergência, deverão primeiro viabilizar a entrada em funções do Governo e do Parlamento regional, bloqueados desde maio do ano passado. A UE e o Reino Unido poderiam posteriormente concordar em aplicar tal regra numa reunião do Comité Conjunto, responsável pela supervisão do protocolo.

O mecanismo não poderá ser aplicado em circunstâncias “triviais” e só se aplica a novas regras da UE “que teriam um efeito significativo e duradouro na vida quotidiana”, embora não esteja identificada, nos documentos do acordo, nenhuma definição de “trivial” e “significativo”.

Se Bruxelas discordar do desencadear do “travão de Stormont” por Londres, a questão será resolvida através de arbitragem independente, em vez de envolver o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).

Entretanto, os tribunais da Irlanda do Norte irão deliberar sobre litígios que envolvam a aplicação das regras da UE no seu território, e os juízes poderão decidir se consultam o TJUE sobre a forma de os interpretar. A Comissão Europeia concordou ainda em não submeter unilateralmente um caso ao TJUE, apesar de manter o poder de o fazer. Von der Leyen realçou, contudo, que o TJUE continuará a ser o “único e último árbitro do direito comunitário” e terá a “última palavra” sobre as disputas do mercado único da UE.

Envio de encomendas

A UE e o Reino Unido concordaram também em eliminar os processos alfandegários para as encomendas enviadas entre consumidores da Grã-Bretanha para a Irlanda do Norte, cujas novas regras entrarão em vigor em setembro de 2024.

As encomendas enviadas entre empresas irão agora passar pela nova “via verde”, o que permitirá o seu controlo, eliminando a necessidade de se submeterem a procedimentos aduaneiros internacionais. Os operadores de encomendas partilharão dados comerciais com a autoridade fiscal do Reino Unido, numa tentativa de reduzir os riscos para o mercado único da UE.

Plantas

Com o “Acordo de Windsor” passa a ser permitida a entrada em território norte-irlandês de batatas de semente provenientes da Grã-Bretanha, bem como de árvores e arbustos considerados de “alto risco” para o mercado único da UE. Isto permitirá às empresas da Irlanda do Norte vender 11 espécies nativas à Grã-Bretanha e algumas de outras regiões.

Ao mesmo tempo, são eliminados os controlos sanitários e fitossanitários (SPS, na sigla em inglês) em vários tipos de plantas e a burocracia no seu envio para a Irlanda do Norte.

As empresas fornecedoras terão de obter um rótulo fitossanitário da Irlanda do Norte, que será o mesmo que é exigido na Grã-Bretanha, mas com a indicação de “para uso apenas no Reino Unido” e ainda um código QR. Estas regras entram em vigor no outono.

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