No xadrez geopolítico de Trump, a Europa (e o mundo) pode ficar refém da guerra comercial com a China
Com a ajuda do Indo-Pacífico, a “guerra comercial” dos EUA com o gigante asiático vai manter-se como a prioridade da nova Administração Trump. Europa arrisca viver mediante regras das duas potências.
Donald Trump está prestes a regressar à Casa Branca com um longo caderno de encargos pela frente: a guerra na Ucrânia sem um fim à vista, o conflito em Gaza cujas consequências se alastram ao resto do Médio Oriente e uma maior cooperação entre a Rússia e a China, os dois maiores concorrentes e rivais dos EUA no tabuleiro do xadrez geopolítico mundial.
Apesar de ser evidente alguma continuidade em relação ao mandato de Joe Biden — em particular no consenso alargado de que a “guerra comercial” com a China é prioridade dos EUA e no apoio a Israel para a estabilização do Médio Oriente –, as declarações do novo Presidente norte-americano, quer ao longo da campanha quer nas semanas que se seguiram à sua vitória a 4 de novembro, fazem prever uma viragem na condução da política externa dos EUA.
Face às ameaças de um aumento das taxas alfandegárias, os analistas consultados pelo ECO antecipam que a política externa norte-americana sob a liderança de Donald Trump vai ser pautada, acima de tudo, pelos interesses nacionais dos EUA e o aumento de poder, ao mesmo tempo que descartará valores como os direitos humanos e a democracia.
“Como a China e a Rússia não aceitam as regras que existiam desde 1945, não faz sentido os americanos continuarem a agir com as mãos atrás das costas, respeitando regras que as outras duas grandes potências já não respeitam. Trump pensa que, se os EUA continuarem a aceitar essas regras, os EUA vão perder”, observa Vasco Rato, que presidiu a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) entre 2015 e 2019.
Segundo o também professor de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Lusófona, é do ponto de vista do crescimento da economia que o Presidente eleito pretende gerir a segurança nacional e a geopolítica norte-americana, refazendo as relações comerciais com outros países a partir de uma “abordagem revisionista da política internacional” e privilegiando os relacionamentos bilaterais em detrimento do multilateralismo.
A lógica de (ainda) maior protecionismo de Donald Trump não significa, porém, que ele seja “isolacionista”, ressalva Raquel Vaz-Pinto, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa (IPRI-NOVA), que antevê que o republicano “vai é ser seletivo em relação ao mundo que lhe interessa”.
Neste contexto, o novo Presidente dos EUA está a rodear-se de uma equipa “mais homogénea” face à do seu primeiro mandato, em particular em termos do pensamento ideológico e da hostilidade para com Pequim, pelo que Raquel Vaz-Pinto questiona se se podem tomar os primeiros quatro anos de Trump na Casa Branca como um esboço do que vai acontecer no próximo quadriénio.
No entanto, Elon Musk será uma incógnita nesta Administração no que diz respeito à política externa. Isto porque, contrariamente à restante equipa, não cabe no perfil de “falcão anti-China”: tal como com Trump, mantém uma relação próxima com o Presidente Xi Jinping, o que lhe permitiu construir em Xangai a maior fábrica de automóveis da Tesla fora dos EUA, fruto de um investimento de 2 mil milhões de dólares.
O Departamento de Defesa e o conselheiro de Segurança Nacional, mais do que Marco Rubio, nomeado para Secretário de Estado, vão ser as figuras mais relevantes para levar a cabo a estratégia de Trump em matéria de política externa, mas será o Presidente a fazer a diplomacia. E tem, pelo menos, dois anos — até às eleições intercalares de 2026 — para concretizar a sua agenda, visto que os republicanos têm maioria nas duas câmaras do Congresso.
Europa arrisca ser “campo de confronto” dos EUA com a China
Apesar da imprevisibilidade de Trump, uma coisa que é dada como certa pelos analistas é a mudança das relações transatlânticas. “Quer com o retraimento estratégico dos EUA, que revaloriza o seu domínio sobre o hemisfério ocidental, alargado à Gronelândia e ao Ártico, quer com a estratégia soberanista do novo Presidente, que recusa subordinar a liberdade dos EUA às suas alianças na NATO“, sinaliza Carlos Gaspar, professor catedrático da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL), em resposta ao ECO.
A ameaça de Trump de retirar os EUA da NATO, caso os aliados não aumentem os gastos em Defesa, coloca a Europa numa encruzilhada estratégica. Este cenário, agravado pela guerra na Ucrânia, beneficia principalmente as empresas de armamento norte-americanas, dificultando o desenvolvimento de uma indústria de defesa autónoma na UE.
“Não é uma boa notícia para a construção, o reforço e a possibilidade de a União Europeia [UE] ter indústrias de Defesa autónomas”, ressalva a investigadora Raquel Vaz-Pinto, que vê “a Polónia, os Estados bálticos, a Escandinávia e a Finlândia — para os quais a opção de ter que esperar por uma indústria de Defesa europeia não funciona — como os países que terão mais interesse em fazer a ponte direta com os EUA”, além da Hungria — cujo primeiro-ministro, Viktor Orbán, é uma das poucas vozes a que Trump dá ouvidos no bloco comunitário.
É neste âmbito que o próprio secretário-geral da NATO tem apelado para um aumento da despesa em Defesa dos membros da Aliança Atlântica, falando já num investimento na ordem de 5% do PIB e não apenas de 2% — algo que para Portugal “não é exequível”, segundo disse no fim de semana o primeiro-ministro, Luís Montenegro. Mas a pressão de Mark Rutte para as nações europeias gastarem mais é “para se poder dizer que é uma opção própria e não uma obrigação imposta pela Administração Trump”, justifica Luís Tomé, professor catedrático de Relações Internacionais na UAL.
"Trump vai fazer da Europa gato-sapato. E a Europa vai engolir muita coisa porque é incapaz de se mostrar forte.”
Ainda assim, o também investigador em Geopolítica e Estudos de Segurança é perentório: “Já nem com Biden nem com Obama a UE era a prioridade da política externa norte-americana. Portanto, como Trump quer que paguemos, nós temos de assumir que falamos a uma só voz de uma forma mais autónoma, ou então ficamos reféns de um campo de confronto apenas entre os EUA e a China e viveremos consoante as regras e as dinâmicas que eles criam“.
Outro motivo de sobressalto para a União Europeia é também a possibilidade de Trump aumentar os impostos sobre as importações. Como explica Vasco Rato, o propósito desta ameaça é “refazer” as relações comerciais com o bloco comunitário para alcançar uma “interação económica mais equitativa”, tendo em conta que os 27 Estados-membros da UE vendem mais do que compram aos EUA, enquanto as empresas norte-americanas estão condicionadas a regulação — como, por exemplo, à Lei dos Serviços Digitais — que lhes impede de aceder ao mercado europeu com a mesma facilidade.
No que toca à Gronelândia, cuja retórica de Donald Trump subiu de tom nas últimas semanas, ameaçando anexá-la aos EUA por via da força, a ambição do novo Presidente é criar a partir dali uma nova rota comercial e poder aceder às reservas de terras raras fundamentais para as novas tecnologias. “Um bocado de terra pode ter importância estratégica diferente consoante o que está a acontecer à volta. O que mudou foi o que está a acontecer à volta e isso tornou a Gronelândia importante”, aponta o ex-presidente da FLAD. A Dinamarca, a que pertence esta ilha do Ártico, já se mostrou disponível para negociações.
A previsão de Francisco Seixas da Costa, embaixador aposentado, é que “Trump vai fazer da Europa gato-sapato” e que “a Europa vai engolir muita coisa porque é incapaz de se mostrar forte”. Não obstante, o desfecho das eleições federais na Alemanha, a crise política em França, e ainda o Governo trabalhista do Reino Unido sob pressão do multimilionário Elon Musk podem ser variáveis que tanto a UE como Trump desconhecem como vão influenciar as relações entre ambos os lados do Atlântico.
Acabar com guerra na Ucrânia para afastar Rússia da China
Trump quer pôr fim à invasão russa da Ucrânia. Mas o que começou por ser uma promessa de acabar com a guerra “em 24 horas” já se transformou num cenário de meses. “Não é evidente que consiga realizar a sua promessa”, assinala o professor catedrático da UAL Carlos Gaspar. Mas esta prioridade de “encontrar uma paz”, segundo Luís Tomé, docente na mesma universidade, é para “parar o apoio financeiro e militar dos EUA a Kiev, porque esta não é a prioridade da política externa dos EUA com Donald Trump”.
Para o novo residente da Casa Branca, tal como para os seus antecessores — incluindo Biden –, o essencial é “normalizar as relações com a Rússia para a separar da China” e “romper a convergência euro-asiática entre as duas principais potências continentais”, sublinha Carlos Gaspar, notando que a estratégia de Trump neste capítulo “pode falhar”, uma vez que “não é certo que o Presidente Putin queira, ou sequer ainda possa, pôr fim à convergência estratégica com Xi Jinping”.
Vasco Rato lembra, por outro lado, que a Rússia “é um dos dois países que pode ser uma ameaça real aos EUA”. Por possuir o maior arsenal nuclear do mundo e ter capacidade para os destruir, “os EUA têm que ter uma relação com a Rússia mais ou menos normalizada, que possa evitar uma catástrofe nuclear”, sustenta.
Recuperar acordos no Médio Oriente para “isolar” o Irão
É no Médio Oriente que se encontra um dos grandes vencedores, em termos práticos, do regresso de Donald Trump à Casa Branca. O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, “pressente que tem maior margem de manobra e menos críticas públicas vindas de Washington com Trump do que com Biden”, realça Luís Tomé, em declarações ao ECO.
Israel mantém-se o aliado privilegiado dos EUA na região para garantir que haja alguma estabilidade, mas a guerra levada a cabo pelo Governo de Netanyahu na Faixa de Gaza põe em causa a normalização das relações com a Arábia Saudita. Por isso, o professor de Relações Internacionais da UAL prevê que o novo Presidente norte-americano deverá “empenhar-se mais resolutamente na reaproximação de Telavive com os países árabes, em particular com o regime saudita, recuperando os Acordos de Abraão”.
Trump deve querer continuar os esforços para completar os Acordos de Abraão com o reconhecimento de Israel pela Arábia Saudita, que vai isolar ainda mais o Irão.
Esses esforços, por sua vez, vão “isolar ainda mais o Irão”, que é o “grande derrotado” da vitória de Trump, antecipam os investigadores Carlos Gaspar e Raquel Vaz-Pinto. O regime do ayatollah Ali Khamenei está numa situação de “recuo estratégico” e, simultaneamente, de “maior expectativa” e “divisão interna”, acrescenta ainda Luís Tomé, apontando a fragilização de vários elementos do eixo de resistência iraniano, em particular do Hamas em Gaza e do Hezbollah no Líbano, mas também a queda do regime de Bashar al-Assad na Síria — onde as relações com os EUA ficam dependentes da Turquia — e os ataques contra os houthis do Iémen.
O também diretor do Observatório de Relações Exteriores (OBSERVARE) alerta, no entanto, para a “complexidade do xadrez e das variáveis” no Médio Oriente que Donald Trump não controla e que, por isso, “podem ter de o obrigar a decisões difíceis ou a ter de se confrontar com opções que ele não queria ter de enfrentar”.
Aumento de tarifas: uma tática para trazer a China à mesa das negociações?
Os analistas são unânimes em dizer que a China é a prioridade da política externa da nova Administração, sendo um dos poucos temas consensuais na sociedade norte-americana. Embora não seja (ainda) possível distinguir entre o que Trump tem prometido e o que vai acontecer na realidade, “se se acreditar no que foi dito, vai haver uma continuação de uma ‘guerra comercial’ entre os EUA e a China”, tendo em conta a ameaça de um forte aumento das tarifas aduaneiras, que, a confirmar-se, segundo Jorge Tavares da Silva, professor de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade de Aveiro, será “trágico para a economia chinesa”.
“A menos que seja — e esta é uma possibilidade — [uma estratégia] para criar condições para negociações“, ressalva o especialista na política do gigante da Ásia. Ou seja, Trump pode aceitar manter as tarifas mais baixas, mas pedir a Pequim que abdique de concorrência em determinadas áreas. Esta ideia é secundada por Luís Tomé, que sublinha que o interesse do Chefe de Estado dos EUA “é escalar para depois ganhar margem de manobra”.
Durante o mandato de Biden, o combate às alterações climáticas e a inteligência artificial foram duas das áreas em que os EUA e a China estabeleceram acordos de cooperação. Mas “Trump não quer saber das alterações climáticas, portanto não se vê como é que aí possa ser uma área de cooperação com a China e, por outro lado, descreve a inteligência artificial como a nova corrida entre China e EUA e que os EUA vão vencer”, nota o docente da UAL.
Antecipando que a competição mais importante entre os dois países será ao nível da tecnologia, Jorge Tavares da Silva frisa que “quem a dominar vai também dominar a economia e vai, no fundo, ter mais importância em termos internacionais“.
Quanto a Taiwan, embora Biden tenha ido mais longe do que Trump quando declarou que os EUA estavam prontos para intervir militarmente para defender o território insular de uma invasão da China, não se perspetiva uma mudança da posição norte-americana.
Todavia, os analistas chamam a atenção para a retórica do novo Presidente no sentido de os taiwaneses investirem mais na sua própria Defesa — antevendo que a indústria do setor nos EUA beneficie disso –, além de esperar que a militarização em curso do Japão e da Coreia do Sul seja suficiente para dissuadir a China. Afinal, é em Taiwan e no mar do sul da China que está “o verdadeiro perigo de uma nova guerra mundial, não é no Médio Oriente ou na Europa”, prenuncia Vasco Rato.
Indo-Pacífico, o aliado para conter Pequim
Na contenção da hegemonia chinesa na Ásia, o investigador de Relações Internacionais Carlos Gaspar considera que Trump vai seguir uma linha de continuidade também no fortalecimento das parcerias estratégicas no quadro do QUAD (Diálogo de Segurança Quadrilateral), nomeadamente com o Japão, a Índia e a Austrália.
A grande preocupação do Indo-Pacífico é a parte económica e comercial.
Contudo, no entender do diretor do OBSERVARE, será numa lógica de instrumentalização, envolvendo os países do Indo-Pacífico na estratégia de competir com Pequim. “A Austrália, o Japão e a Índia vão aproximar-se ainda mais dos EUA para equilibrar a China. Ninguém vai descolar”, antecipa, igualmente, o ex-presidente da FLAD.
A região vai ter, mesmo assim, uma grande preocupação sob a Administração Trump, segundo Raquel Vaz-Pinto: a parte económica e comercial, e não tanto a parte da Defesa (ao contrário da Europa), porque “estes países têm feito um esforço muito grande para investir cada vez mais nessa área”.
Já as relações com os seus dois vizinhos territoriais, Canadá e México, “não se avizinham fáceis” e “vão determinar uma série de fatores, sobretudo em termos da política interna” dos EUA, com a luta contra a imigração em massa e o narcotráfico, assinala ainda Luís Tomé.
Ainda na lógica de conflito comercial entre os EUA e a China, a importância de África para Donald Trump vai ser conter a influência de Pequim e de Moscovo, mas, sobretudo, garantir que, tal como a Gronelândia, será uma fonte das matérias-primas necessárias para as novas tecnologias. Algo que o antecessor, Joe Biden, procurou fazer já no final do mandato, com uma visita a Angola em que anunciou um investimento de 600 milhões de dólares para expandir o Corredor do Lobito.
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