A ponte Travanca-Moimenta contra-ataca

A criação de novas freguesias não é apenas mais uma reversão, é o reflexo da nossa incapacidade crónica de avançar sem olhar para trás.

Um dos grandes males da política portuguesa são reversões. Cria instabilidade e imprevisibilidade. Naturalmente, provoca desconfiança entre os eleitores. É, no fundo, um atestado de incapacidade dos políticos para chegar a consensos duradouros e que gerem constância na análise que fazemos das próprias políticas públicas.

No fim da semana passada, assistimos a um grande exemplo disto mesmo: a reversão da agregação de 135 uniões de freguesia. Assim, renasceram 302 freguesias. Espalhadas pelo país, cerca de 25% das uniões desagregadas têm mais de 10 000 habitantes, mas 42% têm menos de 3000 habitantes e 8% não chega sequer aos 1000 habitantes, segundo números do +Factos.

Não tenho uma posição restritiva quanto a este tema. Não acho que deva ser impossível a desagregação das uniões criadas ou até a criação de novas freguesias. As dinâmicas urbanas são voláteis e é crível que freguesias com 10 000 habitantes possam ter condições territoriais, patrimoniais ou infraestruturais para a autonomia.

Considero é ridícula esta febre por reverter políticas passadas sem avaliar o seu impacto, só por mera crendice ou fins políticos e de narrativa, o que implica separar freguesias sem massa crítica para serem justificadamente autónomas. Olhemos para o caso de Barcelos: com 380 km2, e pouco mais de 115 mil habitantes, antes de 2013, tinha 88 freguesias. Com a reforma administrativa, passou a apenas (pasme-se) 61 e agora ainda renasceram meia dúzia, passando para 67. Vila Nova de Gaia com a reversão ganhou 16 freguesias.

Países europeus há onde não há algo como as freguesias. Países esses mais ricos e até mais descentralizados que o nosso. Com isto não digo, como é evidente, que a panaceia para o atraso estrutural seria o fim das freguesias ou do poder de maior proximidade. Acho até que são uma instituição útil para tornar mais fácil a vida dos cidadãos. E sinto que chegam a ser tanto mais úteis quanto mais distantes de centros urbanos falamos.

Mas também devemos considerar que as freguesias, como qualquer órgão de poder, precisam de ter algum tipo de dimensão e massa crítica para serem significativas no arranjo do mesmo. Quando vemos casos como o de Barcelos, ou outros concelhos por este país fora, há mais do que razões para duvidar da sua efetiva utilidade.

Em economia, falamos de economias de escala como aquelas onde o volume beneficia os agentes através da redução dos custos médios de produção. Este conceito é perfeitamente aplicável nestas situações. Duvido que freguesias com poucas centenas de habitantes sejam escalas ótimas e eficientes, tanto para o erário público, como para a resolução dos problemas dos cidadãos.

Sofrem de problemas estruturais como a falta de infraestruturas e de mão de obra e são fontes de despesismo. E este despesismo não se mede apenas pelos aumentos dos cargos e encargos salariais (a IL estimou custos de 30 milhões, diria até que são pouco significativo), mas pela multiplicação de processos eleitorais e com isso da necessidade de satisfação de mais promessas ineficientes. Ineficientes porque têm de ser cumpridas à mais pequena escala, levando ao desdobramento de esforços, verbas ou até infraestruturas.

Sou habitante da freguesia de Cête, no concelho de Paredes. Por fazer parte dos órgãos sociais de uma associação da vila, fui convocado a uma reunião com o presidente da câmara recandidato que procurava ouvir as forças vivas da povoação. Saí daquela reunião com uma certeza apenas: este não pode ser o nível eficiente.

Somos uma freguesia de pouco mais de 3000 habitantes e o que mais se pediu naquela reunião foi a multiplicação de infraestruturas que já existem em freguesias vizinhas e a poucos km. Freguesias essas até com menos habitantes. E o que mais me chocou foi ouvir o presidente da autarquia a prometer que seriam feitas. Significado: gastar milhões de euros desnecessariamente por obrigação eleitoral de satisfazer o orgulho dos fregueses ou a ineficiência da divisão territorial. Chamo-lhe despesismo.

Em 2013, aquando desta reforma administrativa, imortalizada como Lei Relvas, tinha 9 anos e, por isso, este processo, muitíssimo conturbado aqui e nas freguesias vizinhas, ficou-me para a memória por duas razões. Primeiro, por sentir que, por mais pertinente ou necessário que fosse, estava a ser levado de uma forma gravemente centralizada e sem consciência real dos territórios que se estavam a afetar, das povoações que se estavam a unir e como isso, principalmente no interior do país, estava a juntar freguesias rivais e a reavivar ódios locais. Ficou na minha memória a oposição visceral a que assisti na minha freguesia à mínima hipótese de união com a vizinha e até a união das escolas primárias gerou protestos entre os populares.

Em segundo lugar, este processo ficou-me retido na lembrança com a Mixórdias de Temáticas do Ricardo Araújo Pereira que dá nome a este texto. Em pouco mais de 5 minutos o RAP dá vida a um freguês de Moimenta que sofre absurdamente com a possibilidade da união. E a brincar, o humor dava vida a muitas pessoas que viveram este processo de forma verdadeiramente intensa.

Agora os partidos políticos desenterraram este processo. Remexeram nas feridas e reverteram o processo em algumas centenas de freguesias. Com que fim? Nem acho que seja para distribuir dinheiro pelas suas elites locais. Os vencimentos de presidentes de freguesia são baixos. Mas é com certeza para distribuir favores e satisfazer ambições pessoais de mais umas centenas de militantes nas suas vilas e aldeias. E é triste ver que todos os partidos, menos a IL (justiça lhe seja feita), alinharam nestas tristes figuras. Até o Chega, tão contra as panelinhas, se absteve, porque sabe que mais freguesias são mais hipóteses de ganhar alguma.

Quando devíamos discutir, com base nos melhores exemplos de uniões, como podemos caminhar para tornar o processo autárquico mais eficiente, aumentando a escala e juntando freguesias, de forma racional e preocupada com os problemas locais, fazemos o inverso. Multiplicamos cargos, ineficiências e favorecemos clientelas. É verdade que Marcelo ainda pode vetar, mas é apenas adiar o problema, porque a vontade política está lá e é uma questão de tempo até serem aprovadas ainda mais desagregações.

O PSD e o CDS no meio disto tudo mostram uma total falta de rumo. Na sua governação anterior, contra toda a opinião pública e com custos eleitorais tomaram esta medida e pagaram as consequências políticas dela. Hoje, engoliram o sapo, negaram Passos 3 vezes e votaram ao lado da esquerda. Foi um dia infeliz para a nossa democracia.

Esta não é apenas mais uma reversão, é o reflexo da nossa incapacidade crónica de avançar sem olhar para trás. Aguardo as cenas dos próximos episódios e estou mesmo inclinado a pensar que o processo não para por aqui.

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