Como sacanear o parlamento – parte 2
É na arbitragem das taxas de juro associadas aos diferentes prazos que está a borla aos bancos. Custa-me acreditar que o Ministro das Finanças não tenha feito estas contas.
Estávamos no início de Abril deste ano quando Mário Centeno foi à Comissão Parlamentar de Orçamento e Finanças responder às perguntas dos deputados sobre a renegociação do empréstimo do Estado ao Fundo de Resolução (FdR), que acabara de ser anunciada. Dias antes, dois reputados economistas, João Duque e Ricardo Cabral, haviam expressado duras críticas aos termos da renegociação do empréstimo, o primeiro falando em perdas de 1.700 milhões de euros para o Estado e o segundo num perdão de 44.7% da dívida aos bancos.
Centeno ia sob aviso, mas acossado pelos deputados, meteu uma cassete e à pergunta “Qual o valor atualizado líquido dos pagamentos que o Estado recebe por este empréstimo?”, várias vezes enunciada, o ministro das Finanças lá foi balbuciando repetidamente: “Há um empréstimo, uma taxa de juro e um spread acima do da República que permite a solvabilidade do Fundo de Resolução”. Uma prestação lamentável e indigna de país de primeiro mundo. Entretanto, ficámos ontem a saber, através da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) à Assembleia da República, que há mesmo um perdão, uma perda, ou, numa versão mais suave, um desconto ao FdR, logo, aos bancos do sistema nacional que o financiam. O número da UTAO, que o afirma “conservador”, é 630 milhões de euros.
Note-se que a renegociação do empréstimo não me causa qualquer espécie. Quando o BES foi resolvido, o FdR não estava ainda capitalizado, menos ainda para uma operação da dimensão daquela que resultou no Novo Banco (NB). O reembolso do empréstimo do Estado ao FdR no prazo original estava assim altamente dependente da venda relativamente rápida do NB. Como a venda do NB não se concretizou naquele período de tempo, a renegociação do empréstimo do Tesouro ao FdR, para acudir à falta de financiamento interno do próprio FdR, seria apenas uma questão de tempo. Dito e feito.
Ora, alargar o reembolso do empréstimo para o muito longo prazo faz todo o sentido e 2046 é até capaz de pecar por defeito. Todavia, o que não faz qualquer sentido, é o custo do financiamento que será aplicado até lá, em particular a partir de 2022. Recorde-se que desta renegociação saiu um acordo segundo o qual entre 2017 e 2021 o Estado cobrará uma taxa de 2%, sendo que depois, entre 2022 e 2046, o empréstimo será refinanciado a cada cinco anos ao custo de financiamento da República a cinco anos – na prática, a uma taxa de juro inferior àquela que resultaria de uma operação a 30 anos, conforme é o caso. É precisamente na arbitragem das taxas de juro associadas aos diferentes prazos que está a borla aos bancos.
O empréstimo do Estado ao FdR foi renegociado para durar até 2046, criando uma necessidade de endividamento do Estado a 30 anos, e limitando a capacidade creditícia da República para outros fins durante o mesmo período de tempo. E, portanto, se assim é, então, o juro exigido pelo Estado ao FdR deveria ser pelo menos equivalente à taxa de juro exigida à própria República a 30 anos. As contas são fáceis de fazer e ainda há dias Portugal emitiu dívida a vencer em 2045 (a uma taxa de juro de 4,1%), existindo assim uma boa referência para o prémio de risco a tão longo prazo. Deste modo, atendendo às (muito favoráveis) condições de mercado de hoje, deduz-se que o Estado ganhará cerca de 1 ponto percentual na arbitragem das taxas de juro até 2021 (porque a taxa implícita na dívida pública a vencer em 2021 ronda 1% e até lá o Estado cobrará 2% ao FdR).
Porém, a partir de 2022, o caso muda de figura e, assumindo que as condições favoráveis de mercado se mantêm, é o Estado que deixará de ganhar 3 pontos percentuais por ano até 2046, correspondentes à diferença entre o custo da dívida pública a 30 anos e o juro, indexado aos cinco anos, que o Tesouro cobrará ao FdR. O Estado faz o contrário do que faria um banco lucrativo: pede emprestado a uma taxa mais alta e empresta-o a uma taxa mais baixa.
Custa-me acreditar que o Ministro das Finanças não tenha feito estas contas. E mais me custa que tivesse ido à tal comissão de orçamento e finanças sem outra argumentação que não a da cassete. Fez bem a oposição em pedir um esclarecimento à UTAO que, ainda há poucos dias, tinha prestado um outro esclarecimento interessantíssimo ao Parlamento. O esclarecimento de outra borla, uma borla fiscal para uma mão cheia de empresas, que resultou do regime de reavaliação de activos introduzido pelo Governo em 2016.
Relembre-se que esta medida fiscal, mediante a reavaliação de activos fixos tangíveis e propriedades de investimento, permitia a dedução fiscal da reserva (diferença) de reavaliação dos ditos activos a lucros futuros, em troca do pagamento de uma tributação autónoma de 14% sobre o valor da referida reserva. Segundo a UTAO, a EDP, que sozinha terá gerado metade de toda a receita fiscal obtida pelo Estado neste regime, vai pagar 165 milhões de euros de imposto sobre uma reserva de reavaliação de 1.185 milhões, ficando depois com direito a uma dedução fiscal de 339 milhões de euros a lucros futuros – um benefício fiscal líquido de 174 milhões de euros (ou seja, 15% da reserva de reavaliação). Nada mau! Na verdade, lamento apenas que a medida, de tão complexa, e aparentemente tão míope na ânsia de antecipar receitas, tenha sido desenhada a pensar nas grandes empresas, e não nas PME que também apreciariam o alívio fiscal.
Uma vez mais, o problema do exemplo anterior não está no problema em si. Está, sobretudo, na falta de transparência com que o mesmo é tratado. Ou seja, não me aborrece nada que a EDP tenha calculado bem a sua estratégia fiscal. Mas, para além da medida não ter sido justamente concebida para a grande maioria de empresas que constituem a base da nossa economia, incomoda-me que, mais uma vez, estes valores não tenham sido divulgados por iniciativa do Governo. Incomoda-me que tivesse de ser a UTAO a fazê-lo, embora, verdade seja dita, seja precisamente nestas situações que a mesma é mais útil. Infelizmente, estas situações vão-se repetindo – também há dias, o Conselho de Finanças Públicas deu uma reprimenda pública à Segurança Social porque esta não lhe tem disponibilizado a informação que deveria disponibilizar – e denotam um mau funcionamento da instituição parlamentar.
Os exemplos do ministro das finanças ou, pior ainda, do senhor primeiro ministro, que vão ao Parlamento e não respondem ao que lhes é perguntado, evidenciam uma democracia pouco madura. Uma democracia onde há uns maduros que se sentem livres de tentar escapar ao escrutínio dos demais e a quem o presidente da Assembleia da República tudo permite. Devo dizer que tudo isto me parece um pouco ridículo, mas, como dizia o outro, desculpem lá qualquer coisinha, que isto é só a minha opinião pessoal.
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