Bolsas de criptoativos operam como “bancos” sem regulação prudencial, alertam especialistas
Um relatório do BCE expõe as fragilidades das exchanges de criptoativos e os perigos das stablecoins para a economia. Falta de supervisão e riscos de contágio preocupam os reguladores europeus.
O mercado de criptoativos tem sido alvo de uma enorme popularidade nos últimos anos, e também de um grande escrutínio por parte de economistas e outros especialistas, que têm procurado monitorizar de perto os desenvolvimentos neste setor em rápida evolução.
Parte dessa investigação está reunida num relatório do Banco Central Europeu (BCE), publicado esta quarta-feira com análises de mais de 30 especialistas de bancos centrais europeus, que lança luz sobre os riscos e desafios associados a estes ativos digitais, alertando para a necessidade de vigilância contínua, apesar de considerar que os riscos atuais são limitados.
O documento “Criptoativos: Implicações para a estabilidade financeira, a política monetária e as infra-estruturas de pagamentos e de mercado” alerta para a ideia de que o frenesim do mercado não pode ofuscar as vulnerabilidades do universo dos criptoativos, destacando, desde logo, as fragilidades das exchanges e as armadilhas escondidas das stablecoins.
Um dos pontos mais salientes do relatório é a avaliação dos riscos associados às bolsas centralizadas de criptoativos, como a Binance, a Coinbase ou a Kraken. Estas plataformas, que desempenham um papel crucial na facilitação de transações e na custódia de ativos digitais, são identificadas como potenciais pontos de vulnerabilidade.
As cinco maiores exchanges globais de criptoativos controlam mais de 60% do volume de transações, operando frequentemente como “intermediários multifunção — desde custódia de ativos a empréstimos — sem a supervisão prudencial exigida aos bancos tradicionais.”
“Ao contrário das instituições financeiras tradicionais, as bolsas de criptomoedas ainda não foram objeto de regulamentação prudencial e têm frequentemente revelado várias vulnerabilidades”, referem os especialistas, destacando que “as exchanges centralizadas de criptoativos são vulneráveis a ataques cibernéticos, falhas técnicas e fraudes”.
Esta constatação sublinha a necessidade urgente de reforçar as medidas de segurança e os quadros regulatórios que regem estas entidades, desde logo porque as cinco maiores exchanges globais controlam mais de 60% do volume de transações, operando frequentemente como “intermediários multifunção” – desde custódia de ativos a empréstimos — sem a supervisão prudencial exigida aos bancos tradicionais.
“Os riscos são particularmente pronunciados se as exchanges estiverem envolvidas num vasto leque de atividades”, sublinham os investigadores, apontando para conflitos de interesse e lacunas na divulgação de informações.
A recente regulamentação europeia Markets in Crypto-Assets (MiCA), em vigor desde dezembro de 2024, tenta travar estas fragilidades, impondo requisitos de transparência e reservas de capital. Contudo, os especialistas são céticos: “Preocupações sobre a fiabilidade dos dados e lacunas na divulgação persistem”, escrevem.
O aviso é direcionado aos pequenos investidores, que, entusiasmados com a valorização dos ativos digitais, ignoram que “online panels tendem a superestimar a posse de criptoativos devido ao perfil tecnológico dos participantes”.
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A ponte perigosa entre dois mundos
Se as exchanges são o coração do ecossistema, as stablecoins — criptomoedas indexadas a ativos tradicionais, como o dólar ou o euro — são as veias que ligam o universo cripto ao sistema financeiro tradicional. E é aqui que os riscos de contágio ganham contornos concretos.
“Uma corrida a uma stablecoin poderia exercer pressão de venda sobre os seus ativos de reserva, como títulos de governo, e levar a stress no mercado”, alertam Claire Brousse e Tatu Räsänen, dois dos especialistas autores do relatório.
O exemplo histórico do TerraUSD, que em 2022 perdeu a paridade com o dólar e fez evaporar cerca de 40 mil milhões de euros em semanas, ainda assombra o setor. Agora, com a MiCA a exigir que as stablecoins mantenham reservas líquidas e auditáveis, o BCE reconhece avanços, mas mantém a guarda. “A qualidade dos ativos de reserva é crucial para evitar colapsos”, explica o documento, acrescentando que mesmo stablecoins “bem intencionadas” podem minar a estabilidade financeira se adotadas em massa.
“Dada a natureza global dos criptoativos, é essencial que haja uma coordenação internacional na sua regulação e supervisão”, afirmam os especialistas.
Alejandro Zamora-Pérez e Andrea Marini referem que os detentores de stablecoins na Europa tendem a ser “menos sofisticados financeiramente” e mais propensos a usar estas moedas para pagamentos do que como reserva de valor. “São indivíduos que valorizam a privacidade e o anonimato deste dinheiro, como também pela rapidez proporcionada pelos pagamentos sem dinheiro”, descrevem os especialistas no relatório do BCE com base em inquéritos a 40 mil europeus. Para os reguladores, esta dualidade é um desafio: como proteger quem não entende os riscos por trás da conveniência?
Apesar destes riscos, o BCE reconhece o potencial inovador da tecnologia subjacente aos criptoativos. A blockchain e outras tecnologias de registo distribuído (DLT) são vistas como tendo aplicações promissoras em várias áreas, incluindo pagamentos transfronteiriços e liquidação de títulos. O relatório afirma que “a tecnologia subjacente aos criptoativos (blockchain e DLT) pode trazer benefícios para o sistema financeiro e a economia em geral”.
No entanto, o BCE enfatiza a necessidade de uma abordagem cautelosa e bem informada. “É crucial aumentar a sensibilização para os riscos potenciais e promover o grau de preparação entre as autoridades relevantes”. Esta recomendação reflete a complexidade do desafio regulatório enfrentado pelas autoridades, que devem equilibrar a promoção da inovação com a proteção da estabilidade financeira e dos consumidores.
Impacto dos criptoativos na política monetária
O relatório também aborda as implicações dos criptoativos para a política monetária. Embora os especialistas considerem que o risco de impacto atual é limitado, reconhece que uma adoção generalizada de criptoativos poderia potencialmente afetar os mecanismos de transmissão da política monetária. “Uma adoção significativa de criptoativos como meio de pagamento poderia, em princípio, reduzir a procura por dinheiro emitido pelo banco central e afetar o balanço do banco central”, observa o documento.
Um aspeto particularmente relevante abordado no relatório é a análise das chamadas “moedas digitais de banco central” (CBDCs). O BCE reconhece que, embora os criptoativos privados apresentem desafios, também estão a estimular discussões importantes sobre o futuro do dinheiro e dos sistemas de pagamento.
“As CBDCs poderiam oferecer uma alternativa digital segura e eficiente às formas físicas de dinheiro central”, sugere o relatório, indicando que vários bancos centrais, incluindo o próprio BCE, estão a explorar ativamente esta possibilidade.
O relatório conclui reiterando a importância de uma monitorização contínua e de uma cooperação internacional reforçada. “Dada a natureza global dos criptoativos, é essencial que haja uma coordenação internacional na sua regulação e supervisão”, afirmam os especialistas. Esta chamada de ação reflete o reconhecimento de que os desafios apresentados pelos criptoativos transcendem fronteiras nacionais e requerem uma resposta global coordenada.
Embora os autores reconheçam que os riscos imediatos são geríveis, sublinham a importância de as autoridades manterem uma postura proativa face à rápida evolução deste mercado.
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