Quanto valem os funcionários públicos?
Não é possível ter uma estratégia de crescimento e desenvolvimento reduzindo o papel dos funcionários públicos a uma rubrica do Orçamento do Estado.
A clivagem entre os trabalhadores do Estado e do sector privado é uma das mais marcadas na política portuguesa, como bem demonstrou a recente discussão sobre o aumento dos salários dos trabalhadores do Estado. Não é possível ter uma estratégia de crescimento e desenvolvimento reduzindo o papel dos funcionários públicos a uma rubrica do Orçamento do Estado.
As discussões sobre o Estado e os seus trabalhadores ainda fazem lembrar as visões do tempo da Guerra Fria. Dum lado, os defensores indefectíveis do Estado, que ignoram todas as suas falhas – vejam-se, por exemplo, os discursos na Assembleia da República nas comemorações do 25 de Abril, em que os três partidos à esquerda não fizeram qualquer referência aos trágicos incêndios de 2017, a maior falha do Estado no regime democrático. Do outro lado da barricada, a ênfase é colocada nas falhas do Estado e no peso dos salários dos funcionários públicos na despesa.
Talvez o anacronismo destas posições se torne mais óbvio depois de ouvir o primeiro discurso de Theresa May como líder do Partido Conservador, onde aquela enaltece o papel dos funcionários públicos e o seu importante contributo para a economia e coesão da sociedade inglesa.
Em todas as histórias de crescimento e desenvolvimento de sucesso, o Estado teve um papel essencial. Esse papel foi diverso de economia para economia e variou ao longo do tempo. Numa época como aquela em que vivemos, em que a competitividade das economias assenta cada vez mais no conhecimento e no capital humano, as políticas públicas ganham uma nova centralidade na definição e na implementação das políticas públicas.
O investimento do Estado na educação e na produção de conhecimento não pode ser substituído por investimento privado – este seria sempre insuficiente. Sem esses investimentos, Portugal continuará excluído das Grandes Cadeias de Valor Globais, perdendo as enormes oportunidades que as novas tecnologias e as novas formas de globalização abrem para as empresas e para os trabalhadores portugueses.
Por outro lado, alguns dos maiores sucessos do nosso país devem-se ao Estado e aos seus trabalhadores. Durante o período de intervenção da troika, vários documentos chamavam a atenção para o facto de Portugal ter um dos mais elevados rácios de elementos das forças de segurança por 100 mil habitantes. Uma forma de fazer ‘poupanças’ (eufemismo para cortes) seria reduzir o número de efectivos. Felizmente, não foi esse o caminho seguido e Portugal melhorou a sua posição como um dos países mais seguros do mundo, o que tem sido um importante trunfo na atração de turistas.
Também o Sistema Nacional de Saúde, apesar dos desafios que enfrenta, foi capaz de entregar à sociedade óptimos resultados, visíveis na baixa taxa de mortalidade infantil ou no aumento da esperança média de vida.
Na educação, em 2015, os estudantes portugueses obtiveram pela primeira vez classificações médias, nas três categorias avaliadas pelos exames internacionais PISA, superiores às da OCDE. Também as universidades portuguesas e os seus investigadores alcançaram progressos notáveis nas últimas décadas.
Os políticos não hesitam em apropriar-se e em disputar a responsabilidade por aqueles resultados. Infelizmente, revelam-se em muitos casos incapazes de fazerem as reformas necessárias à melhoria na prestação dos serviços públicos, bem como de nomear dirigentes competentes para o exercício de funções de direcção. As muitas ineficiências que subsistem nas instituições públicas, que afectam a competitividade da economia e uma igualdade efectiva de oportunidades, deviam estar no centro da discussão das políticas públicas. Infelizmente, essa discussão não existe.
O Estado e os seus trabalhadores reduzidos a uma rubrica orçamental
A necessidade de reduzir o défice orçamental, desde a violação do PEC em 2001, tornou os salários da função pública um alvo de todos os ministros da Finanças, que os passaram a tratar, exclusivamente, como uma rubrica orçamental. Em 2002, no ‘Portugal de tanga’ de Durão Barroso, o peso das despesas com pessoal do Estado ultrapassou os 14% do PIB – um dos valores mais elevados na área do euro. Por outro lado, nos primeiros anos do euro, o crescimento dos custos do trabalho acima da média dos nossos parceiros comerciais também contribuiu para a ênfase na contenção dos salários.
Sucederam-se, assim, as medidas restritivas à entrada de novos funcionários, a aumentos de salários e às progressões nas carreiras, tomadas por Manuela Ferreira Leite (Governo de Durão Barroso), por Teixeira dos Santos (Governo de José Sócrates) e por Vitor Gaspar e Maria Luís Albuquerque (Governo de Passos Coelho). O resultado foi uma diminuição do peso dos salários dos funcionários públicos no PIB para valores em torno dos 11% do PIB – em linha com os países da área do euro. O ministro Mário Centeno (Governo de António Costa) já manifestou a sua intenção de não aumentar os salários dos funcionários públicos em 2019.
Numa economia sem crescimento e com elevado endividamento público, entende-se – e os funcionários públicos entenderam – que os salários dos trabalhadores do Estado, bem como as suas carreiras, sejam congelados. Dada a importância que o Estado tem para o desempenho da economia, se não há crescimento – logo, não há mais receitas de impostos – os salários dos funcionários públicos não devem aumentar. Numa situação de quase bancarrota, como aquela que estávamos em 2010, até os cortes salariais podem ser aceitáveis.
Por outro lado, quando a economia cresce – e a economia portuguesa retomou o crescimento há quase cinco anos – tem de ser discutida a remuneração dos funcionários públicos. Não o fazer é ignorar ou desvalorizar a sua contribuição para o bem-estar dos portugueses. A decisão pode ser não aumentar os salários, mas é preciso explicar essa escolha. O Estado está sobredimensionado? Não cumpre o seu papel na promoção do desenvolvimento económico? Os dirigentes não cumprem os objectivos definidos? Os funcionários públicos são favorecidos em relação aos trabalhadores do sector privado?
Podem até existir argumentos para não aumentar os funcionários públicos em 2019. Mas não é aceitável reduzir a discussão dos salários da função pública a uma rubrica do Orçamento do Estado e à consolidação orçamental. No fundo, Mário Centeno mantém a tradição iniciada, em 2002, por Manuela Ferreira Leite. No entanto, apesar das dificuldades que persistem na execução orçamental, nesta altura a discussão sobre o papel do Estado já devia estar noutro patamar.
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