O atraso da Justiça é falha de governo
Neste estado de coisas não há inocentes. O sector vive fechado sobre si próprio e o poder das suas corporações profissionais é evidente, mas os recursos públicos nesta área parecem parcos.
Teve pouca repercussão a divulgação há dias, por parte do INE, da 2ª edição do inquérito aos custos de contexto. De memória, e correndo o risco de ser injusto com alguém, recordo-me de ler um excelente artigo de opinião de Daniel Bessa sobre o assunto e pouco mais. É uma pena. Como escreveu Bessa, a análise do inquérito aos custos de contexto deveria merecer a atenção de todos nós. Nele se descrevem alguns dos principais obstáculos enfrentados pelas empresas portuguesas, consoante a dimensão das mesmas e as suas respectivas áreas de actividade. Os resultados não (me) surpreendem. Destacam-se alguns problemas do costume, como o sistema fiscal e os licenciamentos. Levantam-se questões novas, como a dificuldade de contratação de técnicos qualificados (o que é simultaneamente um bom e um mau problema). Mas, no final, é a lentidão da Justiça que ocupa o lugar cimeiro dos obstáculos identificados.
Não é a primeira vez que sublinho a lentidão da Justiça. Em Novembro do ano passado, publiquei aqui no ECO um artigo intitulado “Privilegiar insolvências céleres” no qual afirmava que o atraso da Justiça, designadamente dos tribunais de comércio, era a maior falha de governo em Portugal. De igual modo, noutro artigo intitulado “Isonomia e liberdade” (Janeiro deste ano), apontei também baterias aos tribunais administrativos e fiscais do Estado, realçando a demora dos mesmos, bem como a deformação conceptual do próprio direito administrativo. Todavia, a verdade é que os meses (e os anos) vão passando e nada de substancial muda. Pelo contrário, em alguns aspectos a realidade está cada vez pior. Mas pior ainda é a apatia e a indiferença com que esta temática é abordada na opinião pública. É como se fosse normal termos a Justiça que temos. Uma Justiça que vive enclausurada sobre si própria.
A regulação da Justiça não pode ser deixada apenas aos “insiders” do sector. Se assim for, como parece ter sido o caso da recente iniciativa de reforma patrocinada pelo senhor Presidente da República, nada mudará. Ou melhor, tudo mudará para que tudo fique como está. Não pode ser. É, pois, necessário espírito de abertura, envolvendo outros agentes institucionais e participantes da vida pública, a fim da reforma da Justiça. É tempo de colocar a Justiça ao serviço dos cidadãos e das empresas, protegendo-os contra os abusos de terceiros incluindo os abusos do Estado. É também tempo de deixar o cliché da separação de poderes. A administração da Justiça é Administração Pública e, portanto, era o que havia de faltar que o sector ficasse encapsulado e a viver num mundo à parte.
As mais recentes estatísticas publicadas pela Direcção Geral da Política de Justiça (boletim nº 54, de Julho 2018) são esmagadoras: no primeiro trimestre de 2018, a duração média dos processos findos de falência, insolvência e recuperação de empresas atingiu os 51 meses. Deixem-me repetir por extenso para que não restem dúvidas: cinquenta e um meses, ou seja, mais de quatro anos em média, para despachar este tipo de processos de fio a pavio, incluindo todas as fases do processo até ao chamado “visto em correição”. De acordo com os dados apresentados no boletim da DGPJ, os 51 (cinquenta e um) meses representam um agravamento de sete meses face ao período homólogo e o valor mais elevado do último decénio. A título de comparação, segundo o índice “Doing Business” do Banco Mundial, a vizinha Espanha despacha estes processos em ano e meio, o Reino Unido demora um ano e a Irlanda trata de tudo em apenas cinco meses.
A ineficiência do sistema judicial já havia sido identificada como o principal constrangimento, ou custo de contexto, na primeira edição do inquérito do INE, que foi publicada em 2015 com referência a 2014. Nesta segunda edição, publicada há dias com referência a 2017, sucede o mesmo, mas em dose reforçada. Agora, ao contrário de antes, a ineficiência do sistema judicial é identificada como sendo a principal barreira à actividade empresarial entre todo o tipo de empresas independentemente da sua dimensão. Onde antes as microempresas identificavam o sistema fiscal como o custo de contexto mais relevante, agora são os tribunais. As microempresas juntam-se assim às pequenas, médias e grandes empresas nas queixas sobre o funcionamento dos tribunais como queixa número um.
O INE entende como custos de contexto “os efeitos negativos decorrentes de regras, procedimentos, ações e/ou omissões que prejudicam a atividade das empresas e que não são imputáveis ao investidor, ao negócio ou à organização”. Ora, o funcionamento defeituoso da Justiça representa um efeito negativo, mas na prática representa mais do que isso. Constitui um custo de transacção ou, dito de uma outra forma mais gravosa, constitui um imposto implícito sobre a actividade económica que as empresas portuguesas suportam em excesso face às empresas de outros países. Mas há mais ainda. É que, ao não funcionar como deve ser, a Justiça defeituosa produz um incentivo à informalidade contratual e esta, por sua vez, degenera noutros custos de diversa ordem que mais oneram a economia nacional.
Neste estado de coisas não há inocentes. É verdade que o sector vive fechado sobre si próprio. O poder das suas corporações profissionais é evidente e a própria forma como se redigem sentenças, num português críptico e inacessível aos leigos (a palavra habitualmente usada pelas corporações para se referirem e se fecharem aos demais cidadãos), é também sintomática de um sistema impenetrável no mau sentido. Mas também é verdade que os recursos públicos destinados a financiar a Justiça parecem parcos, existindo assim uma suborçamentação que em última instância cabe ao Parlamento resolver. Em Portugal, o sistema judiciário (tribunais) absorve apenas 486 milhões de euros, ou seja, 29% do total da despesa acometida ao Ministério da Justiça, representando somente 0,5% da despesa pública total. Noutros países europeus, o rácio correspondente aproxima-se de 1% da despesa pública total.
O atraso da Justiça representa uma falha clamorosa de governo. Assim, do mesmo modo que temos hoje em Portugal brechas visíveis nos hospitais e nos transportes públicos, também o atraso dos tribunais resulta da ausência de reformas e da carência de recursos. Em parte, derivam da gestão orçamental do executivo que, como diz o senhor primeiro-ministro, são opções. De resto, é neste tipo de opções que reside o desafio orçamental do país a médio prazo. Não é possível manter o investimento público sob repressão, para acomodar outros grupos de interesses, e ao mesmo tempo não querer uma infraestrutura ferroviária decrépita. Não é possível manter a despesa pública em saúde (em percentagem da despesa pública total) tão abaixo da média da OCDE e não querer os doentes em macas nos corredores dos hospitais. Não é possível manter a Justiça como está e não querer custos de contexto. Não é possível.
A gestão da despesa pública encontra hoje o seu momento alto durante a execução orçamental. Trata-se de um equívoco, porque é na discussão e na aprovação do Orçamento do Estado que deveriam ser discutidas as grandes prioridades. Investe-se pouco tempo na discussão das prioridades em sede de generalidade, altura em que exercícios simples de “benchmarking” face a outros países europeus seriam muito úteis à definição das grandes rubricas orçamentais. E, ao invés, na especialidade, perde-se muito tempo em minudências técnicas que, sendo relevantes a fim da aplicação do Orçamento, representam frequentemente uma oportunidade de enviesar o mesmo ao gosto dos lobbies e dos fregueses do costume.
Países como a Alemanha, o Reino Unido ou a Espanha, que têm níveis de despesa pública (em percentagem do PIB) iguais ou inferiores ao nosso, são muito mais eficazes do que nós na triagem das prioridades. E não devemos recusar a comparação só porque são países mais ricos do que nós. A riqueza (ou a pobreza) não é apenas material; frequentemente, a riqueza (ou a pobreza) é até mais de espírito. Assim, não se trata apenas de comparar estágios de desenvolvimento diferentes; trata-se também de comparar diferentes níveis de desenvolvimento democrático. Esta maior cultura democrática envolve, pois, maior escrutínio sobre o executivo, maior responsabilização da legislatura e críticas acérrimas quando alguma coisa não está bem. É esta evolução que Portugal tem de fazer, sendo que o atraso clamoroso da Justiça marca uma diferença distintiva entre um país de primeira e um país de segunda. Qual dos dois queremos ser?
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
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