Eh, IVA lindo!
Eu sei que noção de liberdade em algumas cabeças e em alguns tempos foi a de que era proibido proibir, mas isso não é liberdade, é anarquia.
Escrevo este artigo acabadinha de chegar do supermercado. Foi só o tempo de ir guardar o queijo e o fiambre no frigorífico e sentar-me ao computador. Queijo e fiambre: ambos pedidos na charcutaria, mas o primeiro paga IVA a 6%, enquanto sobre o segundo incide uma taxa de 23%. Também trouxe uma garrafa de vinho, que está sujeito à taxa intermédia; pagaria a normal, se tivesse escolhido cerveja.
Quando há uns anos me estreei nas lides dos artigos de opinião, fi-lo com um texto intitulado “A Fiscalidade Tem Razões Que a Própria Razão Desconhece”. No caso do IVA, a existência de várias taxas tem uma racionalidade que vem perfeitamente explicada no preâmbulo do respectivo Código aprovado em 1984. Aí, no seu ponto 9, pode ler-se que “a linha orientadora foi a de determinar taxas que assegurassem uma receita de IVA aproximadamente igual à obtida com os impostos que o IVA irá substituir.” Pragmatismo orçamental à cabeça, portanto. Mas que atendeu a “preocupações distributivas”.
Assim, manteve-se a isenção fiscal para “consumos essenciais que constituem ainda uma parte importante das despesas das famílias”; fixou-se uma taxa reduzida para os bens “menos essenciais do que os que recebem o benefício da isenção com reembolso, mas ainda julgados merecedores de uma certa protecção fiscal”; e estabeleceu-se também uma taxa agravada, “atendendo de algum modo ao preceito constitucional que manda onerar os consumos de luxo na tributação do consumo”.
Contudo, esse mesmo ponto do preâmbulo começa por notar que “É com efeito assente que, nesta matéria, os impostos gerais de transacções muito têm a ganhar, e pouco a perder, com uma estrutura de taxas o mais simples possível ‒ no limite, com uma taxa única. Evitam-se assim não poucos problemas administrativos.”
Uma das primeiras coisas que aprendi nas aulas de Introdução à Microeconomia foi que a carga excedentária, ou seja, a perda de bem-estar gerada por um imposto, é tanto menor quanto menor for a elasticidade da procura. Tragicamente, a procura tende a ser menos elástica (isto é, a responder menos a variações do preço) para os tais bens essenciais, ou seja, temos aqui um claro conflito entre equidade e eficiência. Num artigo publicado em 2009, no Boletim Económico do Banco de Portugal, Cláudia Braz e Jorge Correia da Cunha analisaram os efeitos redistributivos do IVA em Portugal. Concluíram que o imposto era moderadamente progressivo em relação à despesa e claramente regressivo quanto ao rendimento, sugerindo que, dados os custos administrativos de ter várias taxas, a política redistributiva fosse seguida com recurso a outros instrumentos.
Portanto, se faz sentido manter esta distinção de taxas é uma discussão que devemos ter. Essa foi, aliás, uma das propostas da troika, reforçada mais recentemente pelo comissário Pierre Moscovici e que tem a adesão, por exemplo, do antigo Ministro da Economia Augusto Mateus ou do antigo Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Rogério Fernandes Ferreira. Ideia mais radical apresentou Luís-Aguiar Conraria, num artigo em que colocou em cima da mesa a hipótese de substituir a actual tributação do rendimento por uma sobre o consumo: «E se pagar 50% de IVA fosse uma boa ideia?”, perguntou ele.
O certo é que, passados quase 33 anos da sua vigência, o IVA continua a dispor das listas I e II, onde constam os bens e serviços a que se aplicam as taxas reduzida e intermédia, respectivamente. E da lista I fazem parte livros, jornais, revistas e outras publicações periódicas, contando que não tenham “carácter obsceno ou pornográfico”.
Ora, era isto que a Ministra da Cultura, Graça Fonseca, devia ter respondido à deputada Vânia Dias da Silva, que, a propósito da não descida do IVA da tauromaquia, acusou o Governo de “discriminação” e de “ditadura do gosto”. Devia ter explicado que temos uma estrutura diferenciada de taxas de IVA e que essa diferenciação tem subjacente o (des)incentivo de certos consumos. Missão que, como referi, pode e deve ser discutida.
Ora, se na Saúde, por exemplo, a (in)desejabilidade de certos bens é coisa mais ou menos objectiva, na Cultura as coisas são bastante mais complicadas. Ainda no outro dia, o Paulo Ferreira observava que “Às vezes não é fácil explicar a arte a uma criança de nove anos”, desabafo feito diante do quadro “Abstract Painting” de Ad Reinhardt, que é uma tela quadrada de 1,52 m de lado, totalmente pintada de preto. E há uns tempos, numa galeria de arte em Itália, a empregada da limpeza deitou para o lixo parte da instalação do artista Paul Branca, que não reconheceu como obra de arte.
Não se trata, efectivamente, de matéria de gosto, mas a avaliação do que são os projectos merecedores de apoio tem um lado muito subjectivo. Em Julho de 2013, assisti, no Teatro Rápido, a uma excelente peça de Vicente Alves do Ó, “As Inbejosas”, que se dedicava precisamente a esta reflexão sobre o que é a Arte, que limites tem, o que a define. É essa a essência de um Ministério da Cultura: não valeria a pena existir um se fosse para considerar que Justin Bieber tem tanta qualidade quanto Mozart. E isto era o que deveria ter sido assumido no debate parlamentar.
Quando se responde que se trata de uma questão de civilização, não se ofende ninguém, porque não se está a dizer que uma ou outra posição é incivilizada, está-se a definir o terreno em que o debate deve ser tido. Mas, se é uma questão de civilização ‒ e eu concordo que é ‒, então, sai do domínio da fiscalidade. Que taxa de IVA preconizamos para a prestação de serviços de homicídio? Nenhuma. Porque, no nosso entendimento civilizacional, tirar a vida a alguém não é admissível. E, portanto, proíbe-se, não arranjamos uma taxa agravada ou um imposto especial.
Sendo uma questão de civilização, o que há a discutir previamente é se achamos que é legítimo e razoável infligir sofrimento a um touro para proporcionar divertimento. Eu sou das pessoas que julga que não, que não é aceitável. Mas admito que haja quem, na senda do pensamento consequencialista de Bentham, diga que se matamos gado bovino para comer também o podemos matar por diversão. E acho legítimo que se defenda que o regozijo humano é mais importante e se sobrepõe à dor de um touro, embora eu discorde profundamente de tal ideia.
Manuel Alegre disse que é “este tipo de intolerâncias que cria os Bolsonaros” e que “atitudes como esta colocam a democracia em causa”. Não, caro Manuel Alegre, não. Os Bolsonaros fazem-se de banhos de ética a toalhetes e a champô seco e da falta de vergonha de currículos com habilitações que não se têm, adquiridas em idade que era outra. Mas fazem-se, sobretudo, das pessoas que não percebem que, se a defesa da tauromaquia sangrenta reside no argumento da tradição, então, por lógica, teremos de aceitar que a tradição seja invocada para defender coisas como a excisão feminina; fazem-se das pessoas que não compreendem que, quando se está a proibir actos de racismo, não se está a obrigar ninguém a gostar de outras “raças”, do mesmo modo que tornar ilegal a tourada não seria proibir o gosto pela tourada; fazem-se das pessoas que não entendem estes raciocínios e os confundem com dizer que tourada é o mesmo que excisão feminina ou que racismo. É desta massa que se alimenta o populismo.
Eu sei que noção de liberdade em algumas cabeças e em alguns tempos foi a de que era proibido proibir, mas isso não é liberdade, é anarquia. Convém não confundir. Eu só sou livre de conduzir um carro se a minha condução estiver limitada por regras. E um verdadeiro liberal percebe isto: que a sua liberdade individual tem a barreira da liberdade dos outros. E conta com o Estado para civilizar.
Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.
Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.
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