Eixo franco-alemão contra a concorrência

A alteração das leis europeias da concorrência para promover o surgimento de campeões europeus constituiria um primeiro passo para o restabelecimento das velhas políticas industriais do passado.

Foi há dias chumbada a fusão entre a francesa Alstom, fabricante do TGV, e a divisão de negócios ferroviários da germânica Siemens. No final, vingou a opinião da Comissão Europeia, pela voz de Margrethe Vestager, a comissária europeia da concorrência, que vetou a fusão sob o argumento de que a mesma seria desfavorável ao ambiente concorrencial do mercado europeu. A decisão, apesar de ter sido acolhida pela Comissão e também pela autoridade da concorrência alemã, gerou polémica junto dos governos alemão e francês, que protestaram. Mas foi a decisão certa.

A fusão foi apresentada da seguinte forma: Vamos criar um campeão europeu que possa ombrear com um concorrente chinês de grande dimensão (no caso, a CRRC). A argumentação não colheu e, em reacção à decisão da Comissão, o presidente executivo da Alstom foi o primeiro a lamentar a utilização da ideia do campeão europeu. “Não imaginei que gerasse tanta adversidade por parte da Comissão”, afirmou à imprensa o presidente executivo da empresa francesa. De seguida, o mesmo afirmou que o negócio devia ter sido “vendido” como uma operação de consolidação, própria de uma indústria em dificuldade.

Ora, não só os números da Alstom e da Siemens não revelaram qualquer dificuldade de maior –- as duas empresas exibem elevada rentabilidade sobre os capitais próprios, de dois dígitos, para além de possuírem uma quota de mercado de quase 100% nos seus respectivos mercados de origem -– como também não foi confirmada a ameaça iminente do concorrente chinês na ferrovia de alta velocidade na Europa. As conclusões do relatório técnico serviram de base à decisão de Vestager, desacreditando assim a argumentação eminentemente política das empresas.

O direito da concorrência está inculcado na construção europeia (sobre isto, recomendo um excelente ensaio de Maria João Melícias em “Enciclopédia da União Europeia”, Petrony 2017) e vertido no Tratado de Funcionamento da União Europeia através de vários artigos. Ele encontra inspiração na escola de pensamento económico de Friburgo na Alemanha – que, por sua vez, encontra o seu intérprete máximo em Walter Eucken, já citado nesta coluna de opinião –, definindo que o papel do Estado na economia passa pela promoção activa da concorrência empresarial. Ou seja, defende que o Estado deve opor-se à concentração empresarial como princípio orientador da sua política económica.

O ordoliberalismo alemão de Eucken continua a ser uma das principais correntes filosóficas do direito da concorrência. O princípio que lhe subjaz é simples: O mecanismo de preços, o mais importante regulador da actividade económica, só é preservado com a manutenção da ordem concorrencial. Na ausência desta, os preços deixam de cumprir a sua função reguladora, entre a procura e a oferta. Passam a estar capturados pelos produtores e forças anti concorrenciais, introduzindo restrições de oferta e alocações ineficientes de recursos, em prejuízo dos consumidores.

A defesa da concorrência consiste na defesa do consumidor e da liberdade de escolha. Pelo contrário, a ideia do “campeão europeu” (um eufemismo que, neste caso, queria dizer campeão franco-germânico), serve sobretudo para acomodar políticas de desenvolvimento industrial que, por sua vez, tendem a constituir estatização da economia. Hoje na ferrovia, amanhã noutro sector qualquer. Com o Estado manipulando a economia, patrocinando incumbentes. É nisto que resulta a ideia do campeão industrial: em empresas grandes de mais para falirem, o que em si mesmo constitui a negação da concorrência, em empresas politicamente relacionadas ou, numa só palavra, rentistas.

Não está em causa o papel do Estado no desenvolvimento da inovação sobre a qual os verdadeiros campeões se erguem. É inegável o papel do Estado no lançamento de desafios emergentes e no financiamento inicial de tecnologias ainda sem viabilidade comercial. A acção pública faz-se através de financiamento à investigação e desenvolvimento (I&D), através do cofinanciamento de fundos de capital semente para “start-ups”, ou ainda, cada vez mais, através de programas de inovação aberta com o sector empresarial. Porém, entre os países que mais investem em I&D (em % do PIB), a maior proporção do investimento, cerca de dois terços, vem das empresas. O Estado é relevante, mas é subsidiário. A iniciativa é privada.

A defesa da concorrência não significa a inexistência de protecção nem o abandono de padrões de excelência. Todos aqueles que querem concorrer na Europa devem fazê-lo obedecendo às regras e aos padrões de qualidade europeus. Cabe, portanto, à União Europeia e aos Estados membros a criação de agências adequadas para o efeito. O mercado europeu e as quatro liberdades fundamentais só são possíveis na base do cumprimento de regras observadas por todos aqueles que nele participam. A alternativa seria a selvajaria, a desigualdade e a anarquia – o oposto da ordem concorrencial sobre a qual se fundou a União Europeia.

A alteração das leis europeias da concorrência no sentido de promover o surgimento de campeões europeus constituiria um primeiro passo para o restabelecimento das velhas políticas industriais do passado. Seria um caminho com duas avenidas possíveis, mas um destino comum: o nacionalismo ou o supranacionalismo económico, de braços dados com a estatização da economia. Representaria a prazo a supressão da concorrência, da liberdade de escolha, e uma ainda maior centralização da vida económica na Europa em torno do eixo franco-alemão. Enfim, seria um caminho de servidão, especialmente para os países mais pequenos.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

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