Apatia Geral, Governo Nacional
O discurso político não tem imaginação literária, científica, teológica, para conseguir falar ao coração dos portugueses, limita-se em vez disso a alimentar o cinismo e o ressentimento.
A política em Portugal está parada. Os discursos políticos são marcados por um híbrido entre a filantropia e o activismo, tudo embrulhado em politiquês de ocasião. Os mesmos discursos políticos que são piedosos e patrióticos. E o patriotismo é progressista e radical, o patriotismo paternalista e internacional, o patriotismo é conveniente e sentimental.
O exemplo mais flagrante desta disfunção é a mensagem do Presidente da República, uma mensagem apontada para o firmamento do orgulho patriótico, com Oceanos sem fim na fotografia retocada e sensibilidade social a distribuir pelo firmamento de plástico. Fala-se de esperança para os portugueses, fala-se da velha quimera de converter a esperança em realidade com mais saúde, segurança, coesão e inclusão, conhecimento, investimento. A receita está gasta de séculos, mas o discurso político não tem imaginação literária, científica, teológica, para conseguir falar ao coração dos portugueses, limita-se em vez disso a alimentar o cinismo e o ressentimento. Parece que a grande teoria para o futuro de Portugal está contida na ideia de que todos os portugueses coincidem com todos os portugueses num único ponto, e que esse ponto em forma de exclamação vai garantir a prosperidade, a dignidade e a justiça.
Por muito que o Presidente da República queira transmitir uma versão harmoniosa da biografia do Portugal democrático, a mensagem da época propaga-se com uma fluidez politicamente oblíqua e calculista, por que é demasiado cedo para declarações sobre a recandidatura, por que é demasiado irracional hostilizar o PS, por que é sempre tempo para uma viagem institucional em que o Professor redescobre a sua inocência política. E é tão conveniente anunciar a Conferência Mundial dos Oceanos no meio do Oceano, enquanto os portugueses continuam a acreditar que as únicas descobertas verdadeiras e que o progresso permanente só existem na imaginação dos discursos políticos sem imaginação. É verdade que os portugueses nunca desistem de Portugal, mas é pena que Portugal sempre tenha desistido dos portugueses.
A política em Portugal está parada. O Primeiro-Ministro em mensagem da época resolve, primeiro, declarar que na geografia da Península Ibérica existe um Serviço Nacional de Saúde no qual Portugal está integrado. A ideologia monotemática, monomaníaca, monoteísta, vem a conhecer uma adenda, espécie de encore à primeira actuação que não arrancou os risos da plateia. Na segunda mensagem da época, o Primeiro-Ministro designa as prioridades do país como sendo as alterações climáticas, a dinâmica demográfica, a transição digital e as desigualdades. A assimetria da linguagem política tecnocrática trata os portugueses como as crianças Darling na viagem com Peter Pan até à Terra do Nunca. Há um tom de aventura nas palavras do Primeiro-Ministro quando este afirma que Portugal terá atingido o ponto de equilíbrio entre o crescimento, o emprego e a estabilidade macroeconómica. Há qualquer coisa de ficção na visão heróica de um Portugal em velocidade de cruzeiro em direcção à grande cidade invisível do socialismo progressista e moderno.
O programa do Governo é uma liturgia sobre as marcas de uma felicidade que os portugueses no seu quotidiano real ignoram e desconhecem. O supremo Serviço Nacional de Saúde mais parece um hospital de campanha em zona de conflito. Listas de espera, falta de medicamentos, fuga de clínicos, e na catedral da ideologia da nação agressões a médicos por motivos fortuitos e tempos de espera. Os hospitais nacionais não estão na rota habitual dos camiões da ajuda internacional e o tesouro nacional é imperial nas intenções e paroquial nos recursos. Há mais paz e tranquilidade nas esquadras de polícia do que em certos hospitais centrais e regionais. É o discurso político dos ricos na planície esquecida dos pobres.
Com a direita a viver em Marte, a esquerda pressiona o Primeiro-Ministro para a sala verde onde se decide a grande mercearia do orçamento. Convém lembrar que para o Governo é essencial manter a trajectória de convergência com a Europa, o que implica uma política de inovação e de competitividade rumo a um maior conhecimento, a um maior investimento, a um maior rendimento. Eis a receita política para enriquecer Portugal como parte da vanguarda industrial e tecnológica da revolução 4.0 da nova era da produção. Mas se o orçamento é para aprovar à esquerda, esta viagem política é demasiado obscura e desinteressante. A esquerda só conhece e reconhece o caminho estreito para o norte profundo da igualdade, logo nada de aventuras para além do laboratório da devolução dos rendimentos, nada de entusiasmos fora das paredes da justiça social, nada de devaneios ou concessões aos salteadores socialistas democráticos. O silêncio do Governo é o silêncio de quem sabe, tal como é reconfortante para os portugueses saber que não há inevitabilidades que resistam a boas políticas.
Em Portugal há três ideologias em competição – o Serviço Nacional de Saúde, a União Europeia, a Igualdade. Tudo recortado no tríptico da neutralidade carbónica em 2050. Para além das ideologias, para além da engenharia social, há uma pergunta que infecta a atmosfera nacional – por que motivo em Portugal o sucesso não está relacionado com o mérito. Suspenda-se a apatia geral para que os portugueses possam ser impossíveis e exigir o regresso da realidade. A realidade 4.0 plus.
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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