Baixou à terra Fernando Guedes (1930/2018). Foi setembro a vida inteira e levou o vinho português mais longe do que ninguém. Apegado a valores que ficam, ganhou o futuro.
Há homens que deixam rasto. Sulcam a terra e as gentes, semeando-lhes riquezas. São poucos, muito poucos. Esta semana morreu um desses homens. Português, empresário visionário, âncora nos vinhos e coração na Sogrape. “Devo o que fui à Sogrape, uma empresa que o meu pai fundou e que eu continuei”. Na verdade foi bem além, ao sucesso herdado acrescentou as bases para se transformar numa das principais multinacionais portuguesas. Mais do que uma empresa, a Sogrape é a sua casa. De certa forma, mais um filho. Mas já lá vamos.
Na quinta-feira, o Douro desceu, o Alentejo subiu, Dão, Gaia e Avintes cruzaram o rio. Diferentes geografias no mesmo luto, homens e mulheres no último adeus a Fernando Guedes. Uma multidão na Igreja do Foco, no Porto. Em cada rosto, uma história de Fernando. Lá à frente, os netos, os três filhos – Salvador, Manuel e Fernando. Também a mulher, Mafalda Guedes. Sessenta anos de casamento festejados em dezembro, tão-longe os dias da lua-de-mel, os dois a banhos nas águas de um Algarve gelado. Sessenta anos a par e passo, eles e a empresa. Tanto que ela, alfacinha de gema, ganhou o costume de, todas as noites, encomendar família e Sogrape a Deus. Mais distantes ainda, os tempos de namoro por carta, ela em Lisboa e ele em Dijon, a cumprir estudos. Em época de “cheiristas”, ter formação em enologia era feito raro, foi o terceiro português a sair da afamada escola.
Fernando conhecia a Sogrape como se conhece um filho, qualidades e fragilidades, sempre aquele desejo de mais e melhor. Até ao fim, visitou quintas e adegas. Pouco o entusiasmava mais do que descer à sala-de-provas, à hora a que os enólogos provam o vinho. Cheirava, opinava.
Daqui a pouco mais de um mês, é certo que Mafalda e Fernando rumariam à Quinta de Azevedo. As férias são sempre lá, no solar a que Fernando se entregou. Cuidou de cada pormenor da reconstrução, de cada detalhe da quinta. Gostava de ali estar, caminhar pelas vinhas, perscrutar a adega e respirar o ar dos vinhos verdes. Lembravam-lhe a casa que o viu nascer, a Quinta da Aveleda, naquele final de 1930. Veio ao mundo antes de tempo, contava que a mãe se assustara “com um ratito”. Uns 11 anos passados, com um punhado de sócios, o pai haveria de fundar a Sogrape. Depois, de inventar o Mateus Rosé. “O vinho primeiro”, dizia o filho, com orgulho. Seguiram-se outros, muitos outros, a empresa a fazer fé no slogan “do Mateus ao Barca Velha”.
Mas, antes das férias de agosto, Fernando haveria de continuar a ir todas as manhãs ao piso da administração, em Gaia, na sede da Ferreira. Tinha por lá o seu gabinete, chão alcatifado e secretária. Nunca teve computador, só papéis meticulosamente arrumados. Um telefone, um calendário, uma lupa e a mulher a sorrir na moldura. Há pouco mais de uma semana, continuava a chegar de manhã cedo, a arrumar a pasta atrás da cadeira. Sabia o nome de cada funcionário, as alegrias e as dores de muitos. Mal o via, a assistente trazia-lhe os resultados das vendas do dia anterior. A empresa fatura mais de 215 milhões por ano, soma operações em três continentes, e ele atentava em cada número. “Já não mando nada”, lamentava-se, volta e meia, diante dos novos caminhos. Passados segundos, retocava o pensamento: “Isto agora é tudo diferente… há que deixar os novos”. E os novos ouviam-lhe as queixas e as recomendações.
Fernando conhecia a Sogrape como se conhece um filho, qualidades e fragilidades, sempre aquele desejo de mais e melhor. Até ao fim, visitou quintas e adegas. Pouco o entusiasmava mais do que descer à sala-de-provas, à hora a que os enólogos provam o vinho. Cheirava, opinava. Conhecia cada palmo das propriedades – Portugal, Argentina, Chile, Espanha. Só nunca pisou a Nova Zelândia. Sabia o lugar exato de cada tomada, de cada pipa. Ninguém se admirava de o ver condenar um quadro torto ou uma lâmpada fundida. Foi assim a vida inteira. Há uns anos, mal o viam à porta da adega, os funcionários estremeciam – era certo que o patrão encontraria algum desalinho.
Austeridade era valor de vida, não regra de trabalho. Em casa, os filhos provavam da mesma cartilha. Homem de pés na terra, nunca foi de esbanjar nem de aplaudir luxos. Um frango assado ou um bife com batatas fritas faziam as suas delícias. Ainda há pouco mais de dois anos, na tarde do seu 85º aniversário, era vê-lo na cozinha de Azevedo a provar o assado. Pouco antes, ele e a mulher entretinham o dia à lareira. O telemóvel sem sossego e ele a desentender-se com as teclas. Ela a mostrar-lhe os truques da tecnologia, os dois no despique que só o melhor dos entendimentos conhece. A chama alta e a vida em revista, os filhos, a juventude, as alegrias que dão sentido à saudade. Os amigos, a caça. “Que saudade do tempo das caçadas”, atirou então Mafalda. E Fernando, naquele seu sentido de humor que sempre desconcertava a austeridade: “Olha, a melhor coisa que cacei de jeito foi a ti”. Os dois numa gargalhada cúmplice.
Há coisas que de que já me esqueci… Pertencem a um passado que já não é meu, é dos novos. Tive uma vida bonita. O vinho é uma vida bonita.
A igreja não tem lugar livre, somam-se almas em pé. Família, funcionários, amigos. Fez seu o lema do pai: “Antes de fazer um negócio, faz um amigo”. Lá está Zé, o motorista. Desde os anos 80 que a sua vida é guiar o “Senhor Fernando Guedes”. Quantas madrugadas os dois a partirem para a adega de Vila Real ou para o Douro? Era o próprio Fernando quem preparava a merenda para a viagem, uma sandes para cada um. Saíam às quatro ou às cinco da manhã para chegar a tempo. Nunca foi homem de atrasos, sempre preferiu aparecer antes da hora marcada. Levava o gosto tão a peito que, normalmente, chegava às adegas ainda antes de abrirem portas.
Este inverno, a cruzar o novo túnel do Marão, recordou estas histórias. Estava encantado com o túnel, quanto o futuro suavizava a vida. Pensar que o pai correra o Douro de burro… Gostava também de recordar as peripécias da construção da adega de Vila Real. A mesma que, nessa noite, se vestia de festa para celebrar o lançamento do último Legado, o vinho que os filhos fizeram em homenagem ao pai. O maior legado é uma mão-cheia de valores, o exemplo de que ser empresário de sucesso pode rimar com respeito. Nessa noite, à roda da mesa, haveria de encantar, o discurso povoado de memórias e modos de cavalheiro. Combinaria uma ida a Azevedo na próxima vindima. Era na adega ou na terra, por entre cepas, que se sentia vivo. O fervor dos cachos enternecia-lhe o olhar como as tropelias dos bisnetos [Nota de redação: Ana Sofia Fonseca é a autora do filme “setembro a Vida Inteira”, em que é entrevistado Fernando Guedes].
Está calor na igreja, ouvem-se leques de senhora. Choveu granizo no Dão. Já há cachos promissores no Douro e no Alentejo. Foi há meses, a vindima no Chile e na Argentina. Em cada rosto desta igreja há uma colheita de Fernando. Estava frio em Azevedo, naquele dia em que caminhou pelo jardim como se adivinhasse o começo deste verão: “Há coisas que de que já me esqueci… Pertencem a um passado que já não é meu, é dos novos”. Dois passos e um sorriso: “Tive uma vida bonita. O vinho é uma vida bonita”.
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“O vinho é uma vida bonita”
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