
100 dias de caos
Donald Trump quis redefinir a ordem política e económica, mas, por ora, são os EUA e o próprio que mais perdem.
O blitzkrieg do Presidente dos EUA destruiu uma ordem comercial com décadas, ameaçou os aliados mais próximos, trouxe o imperialismo para a Casa Branca, arrasou o soft power americano, desafiou a autoridade dos tribunais, atacou a independência das universidades e cortou o financiamento à ciência.
O novo mundo de Trump é um regresso ao velho mundo. Seja o aumento brutal das taxas aduaneiras ou a expansão através da aquisição de novos territórios, é como se recuássemos ao século XIX. Agora é o Canadá e a Gronelândia, em 1803 foi o Louisiana, em 1819 a Florida ou em 1867 o Alasca.
A prometida época de ouro escapa à economia e ao bolso dos americanos. Antes de Trump chegar à Casa Branca, elogiava-se o excecionalismo americano, virtuosa terra onde o PIB seguia pujante e o mercado de capitais acompanhava a galope, indiferente à anemia na maioria dos restantes países do G7. Agora, os EUA sobressaem pela negativa. Quase 100 dias depois, as bolsas contabilizam uma queda de 14%, o pior registo de um Presidente desde, pelo menos, 1928, emagrecendo o rendimento de muitos americanos.
Os ativos dos EUA eram um convicto “comprar”, agora a ordem mais frequente é “vender”. O dólar perdeu valor contra as principais divisas e a taxa de juro das obrigações do Tesouro subiu com a menor procura, arrastando consigo o custo do crédito à habitação, que desde fevereiro não era tão caro. A inflação, tema com que Trump tanto fustigou Biden, deverá voltar a acelerar.
É o preço a pagar por um renascimento económico futuro, dirão os apoiantes da nova doutrina. A grande maioria dos economistas atesta os danos e duvida dos benefícios. Para já, os dados mostram que a economia está a travar e a probabilidade de uma recessão vai subindo entre os principais bancos de investimento.
Tão negativo para a economia como as medidas é a volatilidade com que são aplicadas. A incerteza sobre o que serão as regras no próximo mês ou na próxima semana paralisa a iniciativa económica.
Para as contas públicas, a arrecadação de tarifas, o corte a fundo no orçamento de várias agências federais e o despedimento de funcionários públicos poderão trazer algum alívio, depois de anos sucessivos de elevados défices.
Na política externa, também não há sucessos a assinalar. O cessar-fogo na Faixa de Gaza permitiu a libertação de parte dos reféns israelitas, mas revelou-se efémero e a calamidade persiste. Na Ucrânia, a paz continua a parecer distante. A prioridade da Casa Branca é conseguir a cedência da exploração de minerais e energia do país como pagamento pelo apoio militar.
Internamente, a “limpeza cultural” foi uma das primeiras medidas. Se é certo que o wokismo foi longe de mais, das políticas de identidade de género ao cancelamento, dando alento à reação conservadora, há aspetos de uma política de diversidade e inclusão que fazem sentido e não são impeditivos do reconhecimento do mérito. Assim que chegou, Trump fez tábua rasa.
Um misto de “limpeza” cultural e redução da despesa federal alimenta também os cortes nos fundos para as universidades e a investigação científica, visando áreas como as vacinas, as alterações climáticas, a igualdade de género e outras. Além de um condicionamento à liberdade da investigação científica, significa um ataque ao sistema de inovação que fez dos EUA uma potência económica e militar. Na Europa, fazem-se esforços para convencer os cientistas a atravessar o Atlântico.
Maioritário na Câmara dos Representantes e no Senado, o Presidente conta com um Congresso domesticado, onde é rara a dissonância. A governação é feita através de ordens executivas. São já 130 desde que assumiu o cargo há três meses, mais de metade do que as que assinou em todo o primeiro mandato (220).
Trump também usou os primeiros 100 dias para testar até onde pode levar o seu poder, rejeitando acatar decisões judiciais sobre deportações. Até ver, o sistema está a aguentar o embate.
Tudo isto vale a pena porque está a render dividendos políticos. Também não. Segundo uma sondagem do Pew Research Center, a taxa de aprovação de Donald Trump está agora nos 40%, menos 7 pontos percentuais do que em fevereiro. Uma clara maioria (59%) está contra o aumento das taxas aduaneiras e 55% desaprovam os cortes na administração federal.
Trump quis provar a sua força, mas acabou a exibir sobretudo fraqueza. Recuou nas taxas aduaneiras perante a pressão dos mercados e dos CEO, foi o primeiro a ceder perante a reação de Xi Jinping mostrando disponibilidade para reduzir as tarifas à China e voltou atrás com as ameaças de despedir o presidente da Reserva Federal.
Poderão os 1.368 dias que faltam para o segundo mandato ser um pouco menos caóticos e frenéticos do que os primeiros 100?
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