A banca e as empresas
É necessário que o sistema financeiro compreenda essa importância e desenvolva as capacidades de análise necessárias para que possa apoiar com segurança empresas de setores produtivos.
A economia portuguesa tem apresentado uma forte dependência do comportamento da economia da União Europeia. Concentrando cerca de 3/4 do nosso comércio internacional, não surpreende que, como demonstram Alves e Tavares (em “A Banca e a Economia Portuguesa”, Nomics, 2017) seja legítimo concluir que o crescimento do PIB da UE explica uma parte muito elevada (os resultados apontam para valores que vão de 60% a mais de 85%) do crescimento do PIB nacional.
Por isso, um grande desafio que se coloca à economia portuguesa é o de conseguir reduzir essa correlação e tornar-se assim menos vulnerável às vicissitudes da economia europeia. O que passará pela diversificação de mercados e produtos e, acima de tudo, por um aumento da competitividade das empresas que operam em Portugal, de forma reforçar a sua capacidade de conquista de quotas de mercado. A variável chave neste processo é a produtividade e a redução do seu “gap” face aos nossos parceiros e concorrentes e que se tem mantido teimosamente em valores muito elevados.
Este é hoje o único caminho que temos para que possamos olhar o futuro com maior autonomia, repousando mais no que nós próprios fizermos e menos no que for o comportamento dos outros.
A integração na zona euro teve dois efeitos contraditórios:
- Por um lado criou um espaço de estabilidade financeira, propício ao investimento e ao crescimento sustentado.
- Ao mesmo tempo retirou-nos instrumentos de política económica (especialmente a taxa de câmbio) e a autonomia da política monetária.
Esta mudança radical de regime económico implicava uma mudança de comportamentos e políticas domésticas (especialmente a orçamental e as microeconómicas) que durante um longo período não se verificou. O resultado foi o desencadear de situações de severos desequilíbrios económicos e financeiros, traduzidos em défices externos e orçamentais insustentáveis. Uma vida tranquila neste espaço e no momento em que vivemos exige, por um lado, que não se repitam os erros do passado e, por outro, que sejam criadas as condições apropriadas ao investimento produtivo dirigido essencialmente aos sectores transaccionáveis. Uma vez mais a chave está nas empresas e na eliminação das barreiras ao desenvolvimento da sua produtividade. Só assim será possível compensar a ausência da taxa de câmbio como meio de defesa da competitividade e do crescimento.
Neste processo, o bom financiamento das empresas será um elemento crucial. Não o crédito fácil e barato que mais cedo ou mais tarde se paga muito caro. Mas o financiamento diversificado e equilibrado, conjugando harmoniosamente capitais alheios e capitais próprios e afectando os nossos recursos escassos aos sectores mais produtivos.
Financiamento, eficiência e crescimento
Nos últimos 20 anos verificou-se um forte aumento do crédito bancário, a par de uma alocação de recursos que privilegiou investimentos nos sectores que se revelaram menos eficientes. O que se reflectiu negativamente no crescimento económico e numa elevada dívida (pública e privada) que não se traduziu num stock de capital mais produtivo e, portanto, em competitividade acrescida. Alguns elementos quantitativos ilustram bem estas conclusões.
O crédito bancário passou de cerca de 60% do PIB em 1995 para mais de 200% em 2010 e, apesar do ajustamento nos anos seguintes, mantinha-se ainda em cerca de 160% do PIB, em 2015 (120% em 2018), revelando um crescimento correspondente a cerca de 2,5 vezes (2 vezes em 2018) o do PIB.
No entanto, o crédito foi dirigido, essencialmente, aos sectores produtores de bens não transacionáveis:
- O crédito a SNF do sector transacionável tem representado apena cerca de 9% do crédito total (em saldos);
- Entre 2001 e 2015, os sectores da Construção e de Actividades Imobiliárias absorveram 78% (74% entre 2001 e 2018) dos fluxos de crédito. Além disso, o crédito privilegiou os sectores menos eficientes, podendo observar-se uma correlação negativa entre os fluxos de crédito sectoriais e a eficiência marginal do capital dos respectivos sectores.
Ainda no mesmo período, a eficiência marginal do investimento foi inferior ao custo marginal, levando à conclusão de que ou investimos excessivamente ou investimos mal. Sendo o stock de capital per capita cerca de 55% da média da UE (70% em paridades de poder de compra), a conclusão parece ser que investimos mal durante esse período, criando-se assim a elevada dívida que não se traduziu em maior eficiência económica.
Chegámos, assim, a 2015 com um endividamento elevado de todos os agentes e, particularmente das sociedades não financeiras, cuja dívida em percentagem do PIB, se situava entre as mais elevadas na UE. Ao mesmo tempo, a produtividade por hora trabalhada (medida em paridades de poder de compra) apresentava em 2017 face à UE praticamente os mesmos gaps de há 20 anos: cerca de 1/3 relativamente à média da UE(28) e de 50% face à Alemanha, por exemplo. Ou seja, como é confirmado por estudos econométricos apresentados no livro citado, o forte crescimento do crédito não revelou efeitos positivos sobre o crescimento e o aumento dos rácios de endividamento das empresas teve efeitos negativos no seu investimento.
O relevante não será exportar muito volume se os produtos exportados tiverem pouco valor acrescentado nacional. Crucial é que se aumente o valor exportado e isso passará pela modernização e pelo fortalecimento das nossas empresas. O que exigirá um novo paradigma do investimento produtivo e das formas de financiamento das empresas.
Haverá, pois, que reforçar a atenção sobre as formas de financiamento dos sectores produtores de bens transacionáveis internacionalmente, com vista a garantir que o desejável esforço de investimento novo nestes sectores dispõe de fontes de financiamento (dívida e capital) em proporções e qualidade adequadas. Condição que obviamente se estende aos sectores de bens não transacionáveis, cuja importância e eficiência não podem ser descuradas.
A lógica terá de ser a afectação prioritária dos recursos aos sectores mais produtivos e não àqueles que proporcionem ganhos mais rápidos e de curto prazo. Mesmo no sector transacionável, todos concordaremos que foi muito importante o aumento do peso das exportações no PIB. No entanto, mais do que o aumento do peso do volume exportado interesse avaliar qual foi o progresso feito em termos de valor acrescentado exportado.
Infelizmente, julgo que não haverá dados recentes sobre este aspecto. Mas ele é a outra face da moeda do que foi referido a propósito da necessidade crítica de aumento da produtividade. O relevante não será exportar muito volume se os produtos exportados tiverem pouco valor acrescentado nacional. Crucial é que se aumente o valor exportado e isso passará pela modernização e pelo fortalecimento das nossas empresas. O que exigirá um novo paradigma do investimento produtivo e das formas de financiamento das empresas.
No sector transacionável precisamos de mais empresas, melhores empresas e maiores empresas. Não podemos esquecer que, por exemplo no sector industrial, o volume de negócios médio de uma empresa alemã representa 8 vezes o de uma empresa média portuguesa, sendo esse múltiplo cerca de 6 nos casos da Áustria e da Bélgica, 3 no caso francês e cerca de 2 para Espanha ou Itália.
Este “gap” de dimensão vai de par com um não menos relevante “gap” da produtividade média das empresas industriais nacionais, que é cerca de metade da produtividade alemã, 47% da austríaca, 37% da belga, 56% da francesa, 54% da espanhola e 61% da italiana (em ppc). Estes diferenciais são corrigidos pelos níveis salariais, de tal modo que o indicador do VAB/Custos com pessoal (produtividade por unidade de salário) mostra um quadro bem diferente, com valores bastante próximos e estando o português entre os mais elevados. As circunstâncias referidas mostram bem a necessidade premente de ganhos de dimensão e de produtividade, bem como de uma gestão dos custos do trabalho que tenha presente a evolução dos níveis de produtividade.
No sector transacionável precisamos de mais empresas, melhores empresas e maiores empresas. Não podemos esquecer que, por exemplo no sector industrial, o volume de negócios médio de uma empresa alemã representa 8 vezes o de uma empresa média portuguesa, sendo esse múltiplo cerca de 6 nos casos da Áustria e da Bélgica, 3 no caso francês e cerca de 2 para Espanha ou Itália.
É com empresas com estes níveis de dimensão e produtividade que se defrontam as portuguesas seja nos mercados internacionais seja no mercado interno. Este último não deve ser descurado, já que, apesar do aumento das vendas para os mercados externos, o mercado doméstico continua a representar mais de metade das vendas das indústrias transformadoras. E, como se sabe, de um ponto de vista macroeconómico, é tão importante competir e vender nos mercados externos como no mercado interno, sendo que será muito difícil que uma empresa seja forte nos mercados externos se for fraca no seu próprio mercado. Essa é uma razão primordial para dar grande atenção ao reforço da concorrência sobre o mercado interno, de modo que as empresas tenham aí condições de exigência semelhantes às que encontram nos mercados internacionais.
Em suma, também do lado das empresas, o ajustamento tem de ir muito para além do mero ajustamento financeiro. A sobrevivência e o sucesso do sector de bens transaccionáveis passam agora por um ajustamento empresarial de natureza essencialmente económica, que será, aliás, condição essencial para a sustentabilidade financeira no médio prazo.
Proprietários, Empresários e Gestores
No desenvolvimento das empresas portuguesas, há que ter em conta as implicações – positivas e negativas da respectiva estrutura de propriedade.
Tal como na maioria dos países europeus, as empresas familiares representam uma parte significativa das empresas existentes: cerca de 70% das empresas, correspondendo a cerca de 2/3 do PIB. No entanto, 74% destas empresas não têm qualquer presença nos mercados externos e apenas 7% exportam 50% ou mais do seu volume de negócios.
É minha convicção que a banca não tem sido capaz de desempenhar este papel de aconselhamento financeiro e estratégico, bem como de configuração dos instrumentos financeiros e de busca dos investidores que permitam a capitalização e o crescimento das empresas.
Muitas dessas empresas foram criadas e desenvolveram-se em ambientes de negócios muito diferentes do que enfrentam hoje e seguramente ainda mais diferentes daquele que encontrarão no futuro. A arte estará em aproveitar o bom que têm, como o conhecimento do negócio por aqueles que as criaram e fizeram crescer, numa lógica de adaptação às novas condições do mercado. Desde logo, tendo presente que as qualidades de capitalista, empreendedor e gestor só por acaso se encontram numa só pessoa.
Por isso, o desenvolvimento das empresas familiares terá de assentar na combinação da iniciativa e capacidade de tomada de riscos do empreendedor com as fontes apropriadas de capital e uma gestão com a componente de profissionalização adequada. Tudo isto enformado por um modelo de governo societário que siga os princípios fundamentais do bom governo, devidamente adaptados às características e dimensão da empresa.
Neste processo, o papel dos bancos de relação e dos investidores adequados é essencial. É minha convicção que a banca não tem sido capaz de desempenhar este papel de aconselhamento financeiro e estratégico, bem como de configuração dos instrumentos financeiros e de busca dos investidores que permitam a capitalização e o crescimento das empresas, sem deixar de beneficiar da presença e do papel insubstituível dos empresários – ou dos seus sucessores – que tiveram a visão de criar empresas bem sucedidas e de vida longa. E no entanto, não se vê que possa haver substitutos nesse papel.
O papel do sistema financeiro e o BEM
O sistema financeiro português é, como acontece em geral na Europa continental, essencialmente um sistema bancário. Para além do elevado peso do financiamento da economia pela via bancária os grupos bancários têm controlado os intermediários financeiros típicos do mercado de capitais (Sociedades Gestoras de Activos; Sociedades de Corretagem e Financeiras de Corretagem, Bancos de Investimento). Tal facto traduz-se na limitação da concorrência entre os sectores bancário e não bancário do mercado financeiro, quer na captação do aforro, quer na sua aplicação.
Esta circunstância tem também limitado a o acesso das PME e “mid caps” a fontes alternativas de financiamento ao crédito bancário, designadamente a instrumentos de capital ou quase-capital. E dado o elevado nível de endividamento criado, precisam de ser recapitalizadas para enfrentar um indispensável novo ciclo de investimento produtivo e ganhar dimensão competitiva (via crescimento orgânico ou fusões e aquisições). Mas estes segmentos de empresas carecem de serviços de aconselhamento financeiro, concepção de soluções de obtenção de capitais permanentes e da procura de investidores nos respectivos títulos. Esta é uma falha de mercado que será indispensável preencher.
É precisamente com este objectivo que surge o Banco de Empresas Montepio.
O BEM centra-se principalmente num segmento de empresas crucial para o desenvolvimento da economia portuguesa: média dimensão; predominantemente do sector transacionável; em geral com potencial significativo de crescimento; carentes de uma oferta de produtos e serviços eficiente e abrangente.
O “unbundling” dos serviços de banca de investimento relativamente ao banco de retalho, a par da integração na mesma entidade dos serviços de banca corporativa permite mitigar os conflitos de interesses e o risco de arbitragem na oferta numa lógica de puro curto prazo (por exemplo incentivando mais ou menos crédito em função dos objectivos de curto prazo da conta de resultados do banco) em prejuízo dos interesses dos clientes e do banco numa óptica de médio prazo.
A concentração da oferta de serviços e produtos para o segmento de empresas potencialmente mais carecido de maior sofisticação numa unidade especializada voltada para o negócio novo e adequadamente estruturada em função dos seus objectivos permite assegurar maior eficiência, agilidade e personalização nos serviços prestados.
É claro que o papel das políticas públicas e do sistema financeiro, sendo essenciais, não dispensa nem substitui a acção das empresas e dos empresários, nomeadamente do sector industrial, para que, depois do ajustamento e da racionalização verificados no passado recente em parte das empresas, encetem um processo de investimentos de expansão e modernização, que confiram ao sector uma maior capacidade produtiva e melhores condições de competitividade.
Precisamos de mais empresas, de maiores empresas, de empresas mais capitalizadas. Relativamente ao extenso número de empresas desequilibradas financeiramente (entre um quarto e um terço do total) será necessário avaliar quais as que têm condições económicas para se reequilibrar e consolidar e aplicar soluções de regeneração, que podem passar pela recapitalização e/ou processos de fusão que dêem origem a empresas maiores e mais sólidas. E que a competitividade seja assegurada por um contínuo aumento da produtividade e não pela simples contenção das margens ou pela penalização do factor trabalho.
Os empresários já demonstraram que têm capacidade para se ajustarem e serem bem sucedidos em circunstâncias adversas. Nesta fase terão de demonstrar que têm também a capacidade de tomar riscos e de crescer com segurança e ambição. É preciso também que os novos empresários se interessem pelo sector industrial que parece estar fora de moda, mas que constitui certamente uma base produtiva indispensável numa pequena economia aberta como é a portuguesa. E é finalmente necessário que o sistema financeiro – bancário e não bancário – compreenda essa importância e desenvolva as capacidades de análise necessárias para que possa apoiar com segurança empresas de sectores produtivos que tantas tradições têm entre nós.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
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