A extrema-esquerda ao virar da esquina
O que está em jogo nestas eleições não é somente o equilíbrio de forças dentro da geringonça, mas sim o equilíbrio de um sistema político.
São vários os motivos que fazem das eleições legislativas do próximo mês de outubro um momento crucial e definidor da política nacional.
- Em primeiro lugar, os eleitores terão finalmente oportunidade de se pronunciarem sobre a união das esquerdas – comumente denominada de “geringonça”. Apesar de ser possível extrair ilações dos resultados das eleições de 26 de maio, os altíssimos níveis de abstenção e a dimensão europeia do sufrágio destorcem qualquer leitura que possamos fazer.
- Em segunda instância, será a primeira prova de vitalidade do centro-direita português no pós-troika. Se em 2015 os candidatos eram os mesmos protagonistas que tinham preconizado o Governo da crise, hoje os partidos – sobretudo o PSD – renovaram-se e apresentam caras distintas e projetos diferentes.
- Em terceiro plano, assistiremos a novo teste à resistência do parlamento português a novos fenómenos partidários. Após os escassos casos de sucesso de partidos que conseguiram ganhar lugar entre as forças parlamentares com representação desde a constituinte – onde se contam os casos do PRD, BE e, mais recentemente, PAN – são vários os novos pequenos partidos que tentam conquistar um assento na Assembleia da República. Apesar do manifesto fracasso dos resultados obtidos nas eleições europeias, a existência de grandes círculos eleitorais poderá facilitar a entrada de deputados dos partidos emergentes.
Não obstante todos estes motivos, que só por si já confeririam a esta eleição um estatuto crucial na definição do espetro político a médio prazo, acresce um facto preocupante para a democracia portuguesa.
A julgar pelos resultados que as sondagens têm divulgado – que não estando isentos de discrepâncias, não deixam de ser indicativos – pela primeira vez na história, há a conjugação de dois fatores preocupantes: as esquerdas unidas podem atingir 2/3 da Assembleia da República e o Partido Socialista demonstra mais interesse e abertura em negociar com os partidos à sua esquerda do que com os partidos moderados.
Ora, desde a Assembleia Constituinte que a Constituição da República Portuguesa – quer a sua aprovação em 1976, quer as sucessivas revisões – se alicerça sobre o equilíbrio encontrado por PSD e PS, assegurando a necessidade de diálogo entre ambos, de modo a redigir um texto suficientemente amplo para não limitar a atuação de executivos provenientes de qualquer uma destas forças partidárias.
Todavia, pela primeira vez na história da nossa democracia, o PS poderá ter a hipótese de alterar a constituição sem recorrer ao equilíbrio do centro, mas antes ao radicalismo dos extremos, partilhando o poder decisório com partidos pertencentes a um campo político que desde 76 se encontra despido de preponderância nas revisões constitucionais. Quer PCP, quer BE – hoje com esta designação, mas herdeiro de um espaço político trotskista outrora ocupado por outros, como o PSR – estão cedentes de empunhar a caneta que lhes permita reescrever o texto constitucional. Destarte, a esquerda poderá ter em outubro a capacidade histórica de vincular sozinha o futuro das próximas gerações, consagrando um novo texto constitucional sem sequer atender aos desígnios da direita parlamentar portuguesa. Sendo que a Constituição deve consagrar um corolário comum à larga maioria da comunidade, sobre as bases da organização política, económica e social, naturalmente que esta premissa primordial é colocada em causa quando uma maioria circunstancial vincula unilateralmente metade de uma sociedade.
António Costa está ciente desta possibilidade, que permitiria marginalizar a direita moderada, arredando-a por completo do poder decisório constitucional. Na Convenção Programática do PS, o primeiro-ministro admitiu uma revisão constitucional para criar tribunais especiais: “Se isto não merece uma revisão constitucional, não sei o que mereça uma revisão constitucional”.
Costa não esconde o trunfo político de que poderá beneficiar na próxima legislatura. Contudo, esquece que a sua preferência em negociar à esquerda é uma fraude aos tradicionais eleitores moderados socialistas e uma fraude ao legado histórico que herdou no Partido Socialista. Recorde-se que Mário Soares preferiu formar Governo com o CDS e mais tarde com o PSD – respetivamente os II e IX Governos Constitucionais – para poder arredar Cunhal e o PCP do poder. Hoje, o mesmo PS que outrora se gabava de ser o tampão da democracia portuguesa, funcionando como partido fronteira entre as forças democráticas e as antidemocráticas, preferiu “pular a cerca”.
Este é um cenário verdadeiramente preocupante para o equilíbrio da democracia portuguesa. Deste modo, o voto nos partidos de centro-direita assume um papel preponderante numa dupla vertente: por um lado, o incremento do peso político de CDS e PSD arredará o PCP e o BE de um papel decisivo nas negociações concernentes a qualquer revisão constitucional. Por outro lado, obrigará o PS a negociar à sua direita, respeitando o equilíbrio do sistema político.
Uma revisão constitucional tem a pretensão de vincular as próximas gerações, pelo que não deve ser construída com base em maiorias circunstanciais, mas em equilíbrios duradouros, transcendentes a qualquer constituição parlamentar. Caso o supramencionado fenómeno se venha a verificar, corremos o risco sério de assistir à instrumentalização da Constituição por parte das forças de esquerda, que poderão assim limitar a atuação de futuros Governos provenientes do restante espetro político. Neste cenário preocupante, restar-nos-á depositar esperança na moderação e bom senso dos juízes do Tribunal Constitucional.
O que está em jogo nestas eleições não é somente o equilíbrio de forças dentro da geringonça, mas sim o equilíbrio de um sistema político que desde o 25 de novembro recusou intransigentemente dar ouvidos aos megafones da extrema esquerda. Este não é um perigo abstrato ou irreal que o caro (e)leitor possa menosprezar. É bem real. Está ao virar da esquina.
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