
A Grande Ilusão
Dadas as especificidades e o conjunto de alterações estruturais que decorrerão das eleições, no horizonte temporal de médio e longo prazo, há grandes consequências que podem ser identificadas.
I. A Filosofia Política das eleições legislativas de 2025
Surpreendendo muitos, confortando outros e, no limite, atormentando grupos mais ou menos expressivos de eleitores, os resultados das eleições legislativas de 2025 devem ser analisados em toda a sua extensão.
Assim sucede, dadas as especificidades e, sobretudo, o conjunto de alterações estruturais que delas decorrerão, no horizonte temporal de médio e longo prazo.
Quatro grandes consequências destas eleições podem ser identificadas:
(i) Em primeiro lugar, o fortalecimento da Aliança Democrática (AD): de forma inequívoca, a AD consolidou-se como uma força agregadora, que dialoga com e interpela diretamente os setores mais moderados pragmáticos da sociedade, ansiosos por estabilidade e crescimento num panorama de polarização crescente.
(ii) A consolidação do Chega: de forma igualmente inequívoca, haverá a registar o crescimento eleitoral do Chega, sobretudo pouco tempo após o aumento de votação exponencial que já tinha alcançado nas últimas eleições legislativas.
Segundo entendemos, a expressão eleitoral do Chega está longe de representar apenas um voto de protesto – voto esse que, na tradição política portuguesa pós-25 de Abril, foi quase sempre para partidos com percentuais de votação reduzidos ou, no limite, para a abstenção.
No atual quadro, a votação do Chega permite que se posicione como um dos pilares da nova oposição.
Explorando sobretudo as narrativas polarizantes, a respeito de temáticas como a imigração, a segurança ou o relativismo cultural (nas suas mais diferentes ramificações), o Chega foi capaz de agregar e sensibilizar setores anteriormente negligenciados por outras forças políticas, desiludidos com as respetivas ortodoxias e, ao que tudo indica, também parte dos abstencionistas.
(iii) A queda do PS: o declínio eleitoral do PS tem igualmente uma importância decisiva e estrutural, na análise relativa aos resultados das eleições.
Tal como outros partidos social-democratas europeus – cujo melhor exemplo será o do SPD alemão, que nos últimos 25 anos perdeu cerca de metade dos respetivos eleitores – o PS enfrenta uma clara crise de adaptação aos novos paradigmas sociais, económicos e culturais, da terceira década do Século XXI.
(iv) A rejeição definitiva dos herdeiros do esquerdismo: partidos como o Partido Comunista Português (PCP) e o Bloco de Esquerda (BE) enfrentam a maior erosão de base vontade que as respetivas histórias já conheceram, novamente em termos que nos parecem ir muito além de focos de protesto ou insatisfações momentâneas.
Na realidade, os resultados eleitorais do passado dia 18 de maio permitem constatar que o público votante da esquerda mais radical rejeita os modelos económico, social e cultural obsoletos que estas forças continuam a promover.
A título de mero exemplo, e sem prejuízo da sua relação com a expressão votante do Chega, alguma expressão votante de ambos os partidos que possa ter-se fidelizado ao Livre – um partido com afinidade ao projeto europeu e uma expressão votante proeminentemente urbana – permite igualmente confirmar a rejeição do ideário monolítico que, com expressões distintas, foi sendo oferecido por PCP e BE.
A reação de alguns dos partidos que obtiveram resultados menos expressivos – bem como as de alguns analistas – tem repousado na ideia segundo a qual os resultados das mais recentes eleições legislativas assumem um perfil transitório ou meramente conjuntural, tanto no que se reporta ao crescimento do Chega, como, de igual forma, à derrota eleitoral do PS e, ainda que com causas distintas, à forte erosão de PCP e BE.
Este tipo de aproximação corporiza a Grande Ilusão a que se reporta o título do presente artigo: a recusa em aceitar que estamos efetivamente perante uma transformação estrutural do sistema político, que concerne ao equilíbrio político-partidário, e cujas causas são mais amplas, estruturais e irreversíveis do que aparentam.
Procuraremos, nos termos que se seguem, aludir a algumas dessas causas.
II. O reposicionamento do pêndulo ideológico em Portugal
Um dos fatores centrais que alimenta esta mudança estrutural é o reposicionamento do pêndulo ideológico português, até por entendermos que este último ultrapassa a mera expressão partidária.
Enunciamos alguns dos fatores que contribuíram, de forma decisiva, para o referido reposicionamento:
(i) Por um lado, a imigração como catalisador da polarização
Dentro deste contexto, o fenómeno da imigração emergiu como um dos temas mais polarizadores nas mais receites eleições legislativas.
Portugal, que historicamente sempre se posicionou como um país recetivo à imigração – desde a proveniente do Brasil, da África lusófona ou até mesmo dos Países de Leste –, enfrenta agora tensões associadas ao aumento exponencial da imigração, sobretudo por referência aos fluxos provenientes do território hindustânico.
Pese embora genericamente aceite sob uma perspetiva quase-humanitária, a imigração tem gerado debates acalorados em torno de questões como a saturação do mercado de trabalho, as perceções de insegurança e, não menos importante, as reações aos riscos do relativismo cultural.
Explorando este tipo de fenómenos e (sobretudo) as respetivas narrativas, o Chega provocou um reposicionamento do debate ideológico: um ataque certeiro ao progressismo radical, muito próximo da agenda “woke” e, ainda que noutros termos, da “cancel culture”, e a fidelização de uma ampla expressão votante num discurso anti-sistema e, por definição, mais próximo de alguns corolários do conservadorismo.
(ii) Por outro lado, a crise na habitação e as vulnerabilidades sociais associadas
Um outro tema que acelerou o reposicionamento do pêndulo ideológico foi a crise crónica da habitação, que se instalou como um dos maiores desafios do Portugal contemporâneo.
Mais uma vez, o vazio preenchido pelo insucesso das políticas aplicadas pelo PS (face aos últimos anos de governação) e pela própria AD foram, mais uma vez, capturados por narrativas que vinculam a crise da habitação a fenómenos como imigração.
O pêndulo ideológico a que inicialmente dirigimos alusão – e que, nos últimos anos, esteve essencialmente orientado para agendas progressistas protagonizadas pela esquerda e extrema-esquerda política e, em parte, pela social-democracia, desloca-se agora para o lado quase oposto, evidenciando um realinhamento à direita.
Encontrar o equilíbrio será um desafio central nos próximos anos – especialmente para forças políticas moderadas e com um treino político impróprio para contextos em que a polarização pode passar a assumir-se como regra.
III. O fim dos modelos tradicionais
Com alguma semelhança ao anteriormente referido, o declínio irreversível das forças da esquerda radical tradicional – PCP e BE – tem sido amplamente tratado como resultado de protestos sociais ou até mesmo da de insatisfação momentânea dos eleitores dos respetivos quadrantes, a que se somará alguma adesão ao Livre (em especial, nos principais aglomerados urbanos).
Sem prejuízo, esta interpretação negligencia a alteração estrutural em curso: uma rejeição definitiva dos modelos de desenvolvimento oferecidos por essas forças, irremediavelmente desfasados face aos desafios contemporâneos, em especial num contexto de transformação e reafirmação do próprio Capitalismo.
As soluções económicas defendidas por PCP e BE – centradas em redistribuição radical, controle estatal direto e indireto ou até mesmo manifestações arcaicas de coletivismo – alienaram setores-chave de um eleitorado que procura, acima de tudo, soluções de integração, de que é exemplo a sua progressiva adesão ao projeto europeu (o que, mais uma vez, poderá explicar o crescimento do Livre e a sua captura de população votante a PCP e BE).
De igual forma, PCP e BE falharam redondamente em apresentar respostas que combinem crescimento económico, inclusão e uma visão neutral e até mesmo de algum descrédito face à inovação tecnológica (incluindo o advento da inteligência artificial) e ao relevo das redes sociais, domínio em que o Chega se posicionou de forma particularmente eficiente.
Também o peso da experiência internacional auxilia a antecipar esta tendência. Afinal, o declínio irreversível deste tipo de forças não é um fenómeno exclusivamente português. Em termos mais próximos, podem encontrar-se dinâmicas semelhantes noutros países, bastando constatar os mais recentes resultados de partidos como o Syriza (Grécia) ou o Podemos (Espanha), de entre outros.
IV. O novo bipartidarismo à espreita
Na noite eleitoral de 18 de maio, vários líderes políticos – e, com especial ênfase, o líder do Chega – aludiram ao fim do bipartidarismo, com a consequente equiparação posicional entre AD, Chega e PS.
Todavia, segundo antecipamos, o que o resultado das referidas eleições veio antecipar – num horizonte temporal de médio prazo – foi o retorno ao bipartidarismo.
Todavia, um bipartidarismo novo, em que, inclusive com maior incerteza ao nível da alternância política, AD e Chega intensificarão a concorrência por bases votantes de perfil mais alargado e cada vez mais heterogéneo.
A posição do PS – que, talvez pela primeira vez na sua história, esteja a sofrer as consequências de coexistir num país com dois partidos de perfil social-democrata – tenderá a fragmentar-se, ora porque precisará de conter os riscos de uma polarização interna (proveniente da progressiva erosão de base votante de BE e, ainda que em menor expressão de PCP) ora porque, noutros termos, passará a contar com a concorrência de mais um partido ao centro, o Chega, que seguramente procurará alargar a sua base votante a um universo mais moderado mas que, de alguma forma, não se sente representado nas forças tradicionais.
V. Democracia Liberal: o papel do equilíbrio e os riscos da diluição
Neste contexto de inequívoca generalização da polarização, os partidos com uma vocação assumidamente liberal podem assumir um papel crítico, enquanto moderadores e agregadores de sensibilidades políticas entretanto órfãs de uma base votante expressiva.
Teoricamente, partidos com uma vocação liberal mais proeminente têm a potencialidade de absorver sensibilidades tradicionalmente albergadas por PS, BE e, ao mesmo tempo, de setores moderados da própria política, com simpatia por temáticas como a liberalização de setores, a redução do peso do Estado ou a redução estrutural de impostos.
Pese embora esse potencial exista, há um risco claro: ao agregarem eleitores oriundos de espetros ideológicos díspares (ex-PSD ou ex-BE, por exemplo), os partidos liberais (como a IL) podem perder a sua identidade muito mais rapidamente, tornando-se plataformas incoerentes e reféns de narrativas oportunistas e meramente conjunturais.
Não será de excluir que, inclusive, outros partidos (já existentes ou novos) venham a reivindicar a legitimidade de uma agenda liberal.
VI. Um Futuro sem Ilusões
Portugal vive uma alteração que antecipamos de estrutural e irreversível, face ao pêndulo das ideologias políticas e da sua representação do espetro partidário.
Os modelos oferecidos pela esquerda tradicional e pelos herdeiros do esquerdismo foram irreversivelmente abandonados, em prol da adesão a discursos mais polarizados e a cujo nível sobressai a necessidade de resposta para fenómenos como a imigração, a crise na habitação e a própria defesa – qualquer um dos quais longe de poder resumir-se ao mero horizonte da conjuntura.
Nessa medida, os resultados do passado dia 18 de maio assumem, a todos os níveis, perfil estrutural: nas causas que os determinaram e, bem assim, nas alterações que provocarão.
Entender que tudo será ou voltará a ser como antes equivalerá a persistir na ilusão.
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