
A ocasião faz o Estadão
A ocasião não precisa de Estadão, nem de centrão. Precisa de oposição.
Não há nada mais difícil de contrariar do que uma ideia feita. As ideias, per si, podem mover multidões, mas aquelas que são interiorizadas como verdades absolutas, em que o contraditório se torna um exercício pífio, têm tanta força que anulam qualquer apelo à racionalidade. A ideia de que o estado de emergência tem de ser mantido, independentemente do âmbito de poderes conferidos ao governo no decreto presidencial, é uma ideia feita e, principalmente, perigosa.
Ninguém duvida que esta pandemia constitui uma ameaça séria e que combater uma crise de saúde pública desta magnitude obriga os governos a adotar medidas restritivas, numa fase inicial, para conter a propagação vertiginosa da doença. De outra forma, estaríamos a expor os nossos idosos e doentes com comorbidades a um risco intolerável, assistiríamos à rutura total do sistema de saúde e o número de mortes seria muito superior.
A unidade nacional em torno desta estratégia, que é um imperativo moral de civilização e de uma sociedade humanista, não podia ter sido mais expressiva: desde o apoio que António Costa recebeu de todos os partidos da oposição quando os convocou, à inequívoca demonstração de civismo do povo português (que não esperou por um decreto para se recolher), passando, ainda, pela comovente disponibilidade de diversos setores da sociedade civil para ajudar.
O Governo não precisou de ver decretado o estado de emergência para tomar medidas necessárias, como o encerramento de todos os estabelecimentos de ensino, suspensão de voos, encerramento dos portos e controlo da fronteira terrestre, restrições a diversas atividades económicas, interdição de eventos com cem ou mais pessoas, etc. Algumas deviam, aliás, ter sido tomadas mais cedo e com melhor coordenação – teríamos evitado, por exemplo, o risco de contágio (e o embaraço) decorrente de um navio que foi impedido de desembarcar em Lisboa, seguiu para Cádiz e os seus passageiros acabaram por viajar de autocarro para a nossa capital, uma vez que a fronteira terrestre permanecia aberta. Por que precisávamos, então, de declarar o estado de emergência?
Para a maioria das pessoas, estado de emergência é sinónimo de confinamento compulsivo. É uma ideia feita, desmentida pela atuação do próprio governo, mas pegou e quase que está condenado ao pelourinho quem escrutine ou esteja contra. O que muita gente não se apercebe é que a reboque dessa vontade coletiva de fechar o país vem a ampliação dos poderes do Estado noutros domínios, que só deve ser aceite na medida do estritamente necessário e com caráter temporário. Se o primeiro decreto presidencial, mais comedido, podia merecer o benefício da dúvida, a renovação do estado de emergência conferiu poderes desproporcionais ao governo, que incluíam, por exemplo, proibir despedimentos ou introduzir medidas de controlo de preços.
É essencial garantir que uma situação de exceção como a que vivemos não servirá de pretexto para experiências autoritárias e atropelo de liberdades, porque não faltam exemplos históricos de medidas anunciadas como temporárias que se converteram em definitivas. Não é suficiente equilibrar o combate a esta crise de saúde pública com o impacto na economia, temos de sair deste pesadelo ilesos nos nossos direitos fundamentais, longe de um modelo de sociedade estatizante, vigilante e opressora. A ocasião faz o Estadão. E se há vigilância necessária é para garantir que estas exceções não ganham raízes.
Não podemos arriscar tudo para contrariar a pandemia, sob pena de tornar a cura pior do que a doença. Finalmente, alguns políticos e colunistas, de diversos quadrantes, têm tido a coragem de expressar esta ideia, que é de recomendável bom senso: uma crise económica severa também mata, porventura mais do que este vírus, que felizmente regista uma taxa de mortalidade baixa. Quanto mais tarde se iniciar o regresso gradual à atividade, de pessoas e empresas, mais difícil será a cura. E neste regresso à atividade económica reverter a presença excecional do Estado.
Sacrificar a nossa liberdade seria, de igual modo, desproporcional. Por isso, reveste-se da maior importância o papel da oposição, que tem o dever de escrutinar – sempre – a ação do Governo. Rui Rio, o líder da colaboração, pode não compreender, mas estar contra o Governo não é estar contra o país. É um ato patriótico, como são todos os que procuram defender os interesses de um povo. A ocasião não precisa de Estadão, nem de centrão. Precisa de oposição.
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