A Torre de Babel e as universidades dos EUA

  • Paulo Monteiro Rosa
  • 6 Junho 2025

Com a tradução automática a democratizar o entendimento entre línguas, a barreira linguística — símbolo da antiga Torre de Babel — está prestes a desaparecer.

A metáfora da Torre de Babel começa a desaparecer com os avanços da inteligência artificial. Tradutores automáticos, auriculares com dezenas de idiomas e assistentes inteligentes permitem cada vez mais comunicações fluídas entre pessoas que não partilham a mesma língua. Em breve, um português e um chinês, sem conhecimento de línguas estrangeiras, poderão conversar ‘quase’ naturalmente, mesmo numa aldeia remota da China, com total compreensão mútua.

No futuro próximo, a língua deixará de ser uma barreira técnica. A verdadeira barreira poderá passar a ser cultural, ética ou económica — ou seja, o que dizemos e como o dizemos poderá importar mais do que em que língua dizemos.

Com a tradução automática a democratizar o entendimento entre línguas, a barreira linguística — símbolo da antiga Torre de Babel — está prestes a desaparecer. No futuro, a verdadeira mais-valia poderá não estar em saber muitas línguas, mas em dominar profundamente o seu próprio idioma. Um vocabulário amplo, boa gramática e riqueza expressiva tornar-se-ão essenciais para comunicar com clareza num mundo cada vez mais interligado.

Neste novo cenário global, onde a comunicação já não depende da língua de origem e a administração Trump cria entraves aos estrangeiros, a mobilidade académica e o intercâmbio de ideias tendem a deslocar-se para outras geografias. O desaparecimento das barreiras linguísticas tem implicações diretas para as universidades dos EUA — sobretudo num contexto em que a administração Trump dificulta cada vez mais a entrada de estudantes estrangeiros.

O protecionismo deteriora quase sempre a qualidade de um produto. Assim, o protecionismo da administração Trump ao fechar as escolas norte-americanas aos estudantes estrangeiros acaba por degradar a qualidade do ensino nos EUA, ao abdicar do contributo de alunos altamente qualificados oriundos de várias partes do mundo — da China e da Ásia, à Europa, ao Médio Oriente, a África e à América Latina. Este entrave afeta sobretudo estudantes vindos de economias com maior capacidade financeira, como a China e países europeus, cujos pais procuram proporcionar aos filhos o melhor ensino e os melhores professores. Há alguns anos, e sem os atuais avanços da inteligência artificial, esta postura protecionista abriria caminho a que outros países de língua inglesa concorressem diretamente com o ensino norte-americano, que parece querer abdicar do seu papel histórico enquanto centro mundial de produção e disseminação de conhecimento.

A par da impressão da moeda de reserva global — o dólar —, que continua a ser hegemónica nos pagamentos internacionais e nas trocas comerciais, o ensino superior norte-americano tem sido, desde a Segunda Guerra Mundial, uma das maiores “exportações” dos EUA. Foi este país que acolheu cientistas europeus como Einstein e Von Braun, bem como dissidentes soviéticos e chineses, como Morris Chang — fundador da TSMC — que estudou nos EUA e trabalhou na Texas Instruments depois de fugir da China em 1949, pouco antes da tomada de poder por Mao Tsé-Tung. Jensen Huang, fundador da Nvidia, também seguiu percurso semelhante. Um dos fundadores da Google, Sergey Brin, nasceu na União Soviética. Elon Musk tem origens sul-africanas. Steve Wozniak, cofundador da Apple, é filho de pai polaco. A AMD é liderada há mais de uma década pela taiwanesa Lisa Su, residente nos EUA há várias décadas.

Ou seja, as grandes tecnológicas norte-americanas — hoje verdadeiras multinacionais globais — são uma mescla de pessoas de todo o mundo que conseguiram concretizar as suas ideias em conjunto num país marcado pela liberdade. O “sonho americano” tornou possível essa fusão de talentos. Contudo, esse mesmo sonho corre o risco de se tornar algo do passado, caso os EUA continuem a trilhar o caminho do protecionismo e se fechem sobre si próprios — apesar de todas as condições de excecionalismo de que beneficiam: banhados pelos oceanos Atlântico e Pacífico, reforçados por imigração qualificada e indiferenciada, energia barata graças ao shale oil e ao gás natural abundante, e com escolas e universidades de prestígio mundial.

A liberdade é fundamental para que a ciência avance, e para que as ideias e a criatividade surjam. Ao afastarem estudantes internacionais — não apenas chineses ou russos, mas de todas as origens —, os EUA perdem imenso talento. Hoje em dia, talvez seja mais fácil um estudante entrar na China do que nos EUA. Parece paradoxal, mas, para entrar na China por menos de 15 dias — pelo menos a partir de Portugal, desde 15 de outubro de 2024 — não é necessário qualquer visto: basta comprar o bilhete de avião. Já para os EUA, o visto continua a ser obrigatório, e os obstáculos têm vindo a aumentar. Dá quase a sensação de que há mais liberdade numa autocracia do que na democracia que governa os EUA há séculos.

Além disso, esses estudantes internacionais, ao estudarem nos EUA, criam uma ligação duradoura ao país. Essa ligação permanece ao longo da vida e facilita as relações económicas e diplomáticas entre nações. Cada ex-aluno estrangeiro formado nos EUA torna-se uma ponte para futuros negócios, cooperação científica e entendimento político. Este fenómeno torna a “aldeia global” mais coesa, mais pequena e mais centrada no bem-estar partilhado.

Por isso, se os EUA optarem por um mundo mais fechado e polarizado, estarão a contribuir para o enfraquecimento dessa rede global de confiança e interdependência que ajudaram a construir — e da qual foram os principais beneficiários.

Quem ficará então com esse conhecimento? Serão os restantes países de língua inglesa? Ou outros centros emergentes?

Mas como vimos, a língua deixará de ser um critério determinante. Com os avanços da inteligência artificial, a tradução instantânea poderá tornar irrelevante a língua materna das instituições académicas. No futuro, veremos europeus e americanos a estudar na China? Será que o ensino voltará à Europa — berço da democracia e da liberdade? Talvez, mas a Europa também parece atravessar uma decadência, não apenas económica, mas também ao nível dos valores, dos princípios e da valorização do trabalho e das pessoas que o realizam com dedicação, emprenho e esforço diário.

A China, apesar de ser um regime autoritário, já forma cerca de cinco milhões de estudantes por ano nas áreas da ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM, Science, Technology, Engineering and Mathematics) — dez vezes mais do que os EUA. A desglobalização poderá acentuar-se e redundar em algo como: os europeus estudarão na Europa, os chineses na China, os japoneses no Japão? Entretanto, a China, com quase 20% da população mundial e uma juventude altamente empenhada no conhecimento, pode muito bem liderar a próxima fase da revolução tecnológica.

Paradoxalmente, Trump parece estar a acelerar a ascensão da supremacia económica chinesa. E talvez o verdadeiro marco da nova hegemonia tecnológica seja quem conseguir colocar o próximo ser humano na Lua. Será esta a ‘nova grande corrida’ entre os EUA e a China?

  • Paulo Monteiro Rosa
  • Economista Sénior, Banco Carregosa

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