Da Política na América?
As eleições presidenciais têm condicionalismos particulares (um poder federal exercido por uma pessoa). Perante as propostas apresentadas, se este liberal votasse nos EUA, votaria Harris-Walz.
Perante aquilo que se passa nos EUA, não acredito que hoje Alexis de Tocqueville mantivesse o título da sua obra De la démocratie en Amérique. E uma reflexão sobre as convenções partidárias ajuda a compreender o que eu digo. Apesar de serem, acima de tudo, um espetáculo mediático (infelizmente, a política norte-americana trocou a substância por um mediatismo ilusório e fugaz), as duas convenções não deixaram de evidenciar algumas diferenças, embora representativas das respectivas políticas, entre os actuais partidos republicano e democrata.
Mas antes de abordar essas diferenças, devo salientar que é natural que os partidos evoluam ao longo do tempo, não apenas por influência dos seus líderes, mas também para acompanharam o pensamento no tempo. Em 2018, foi publicado um livro, How Democracies Die, cuja leitura recomendo vivamente. Nele, os autores, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, descrevem a mudança e a transformação do partido republicano e democrata ao longo do tempo. É uma boa leitura para perceber o que está a acontecer na democracia norte-americana.
James Madison foi indiscutivelmente um homem brilhante. Fez um primoroso estudo das diferentes formas de governo e, não negligenciando a estrutura orgânica que já vigorava nas colónias norte-americanas, propôs como solução governativa a adopção de uma república federal. Bastará (re)ler os Federalist Papers para perceber a abrangência e a profundidade argumentativa de Madison.
A Constituição dos EUA está dividida em quatro secções onde os direitos inerentes, i.e., os direitos de protecção aos cidadãos, o governo do povo e a separação de poderes dos diversos ramos está plasmada. Duas curiosidades devem ser referidas. Primeiro, não deixa de ser interessante notar que a secção relativa à Declaração de Direitos foi a última a ser redigida. Porque é que assim aconteceu? Porque inicialmente não foi considerada como importante pelos defensores da Constituição. Segundo, sem a decisiva contribuição de Thomas Jefferson é muito provável que a enumeração e a substância das emendas da Declaração dos Direitos fosse diferente daquilo que é.
Infelizmente, a política norte-americana é hoje um permanente campo de batalha. Não é novidade que haja momentos de intensa discussão política. Mas o que se nota agora é um nível de intransigência e de polarização como nunca se verificou. Nem quando os federalistas de John Adams acusaram Thomas Jefferson e James Madison de traidores por estes terem criado aquilo que viria a ser o partido republicano. Aquela tolerância mútua que se traduzia no reconhecimento de que os nossos adversários políticos, apesar de terem ideias diferentes não representavam uma ameaça existencial por serem cidadãos decentes, patriotas e cumpridores da lei já quase não existe. Newt Gingrich, Tom DeLay, Karl Rove, Mitch Mcconnell e Donald Trump foram instrumentais para acabar com o entendimento bipartidário e extremar o discurso político. Do lado democrata, Ocasio-Cortez, Ilhan Omar, Mark Pocan e Ayanna Pressley deslocaram o partido mais para a esquerda. Esta luta fratricida entre partidos está a pôr em causa o regime democrático, o Estado de Direito e a Separação de Poderes.
É aqui que as convenções são importantes para percebermos o que se passa. Começo pela republicana. Desde cedo que se viu que Donald Trump iria garantir a nomeação. Manteve-se activo durante estes quatro anos e o que se passou dentro do partido republicano, tendo em mente o apoio da sua cúpula ao Project 2025 [uma nova forma de implementar a teoria executiva unitária, que na prática é um reforço do poder executivo (se Trump ganhar)], não havia dúvida de que ele era, salvo honrosas excepções (Mitt Romney, George W. Bush e Mike Pence, por exemplo), o candidato preferido do establishment republicano.
Para além da união em torno do seu candidato, a convenção foi marcada por duas coisas. A não comparência daqueles republicanos que discordam do que a MAGA fez ao partido, o que significa que não há espaço para vozes dissonantes dentro do partido, e pelo atentado a Donald Trump. Isto fez com que a figura de Trump se tornasse superior ao partido. Ora, penso que isto poderá prejudicar o partido republicano no futuro. E a mensagem é a mesma que Trump tinha há quatro anos. Devo dizer que o ódio aos imigrantes, o desprezo pela verdade, a ganância e o abuso de poder não são questões novas na política norte-americana. Mas com Donald Trump são temas recorrentes. Por fim, em resultado da adulação permanente, a convenção foi muito morna. Ao não se diferenciar de Trump, JD Vance não veio acrescentar nada de novo à candidatura.
No meio disto tudo é importante salientar o seguinte. Em tempos normais, os republicanos querem dar mais poder ao Presidente. Quando a guerra civil acabou, a concentração de poder de que Abraham Lincoln beneficiou durante esse período foi invertida pelo Supremo Tribunal. Não há melhor exemplo para os pesos e contrapesos inscritos na Constituição americana. O poder judicial retirou poder ao titular do poder executivo porque os tempos voltaram à normalidade. Hoje, infelizmente, vemos precisamente o contrário. Assistimos ao Supremo Tribunal de Justiça conceder mais imunidade a um ex-Presidente que abusou do poder sem vivenciar uma guerra civil. Na minha opinião, o grande responsável por esta perversão da Separação dos Poderes é Mitch Mcconnell e toda a estratégia que desenvolveu para substituir o juiz associado do Supremo Tribunal, Antonin Scalia. Não há dúvida de que Scalia era um conservador e um brilhante jurista. Porém, Scalia tinha noção do significado do Estado de Direito e da Separação entre o Estado e a Religião, não deixando, portanto, que as suas convicções religiosas diluíssem essa separação. O mesmo não pode ser dito relativamente aos juízes indicados por Trump. E as decisões que estes estão a tomar demonstram-no.
Por sua vez, a Convenção democrata foi o oposto. Electrizante, energética, repleta de entusiasmo. Depois da saída de Joe Biden, cuja saída permite dizer que os interesses do país são superiores aos interesses pessoais, o partido não se revitalizou. Transfigurou-se. O discurso não é negativo, os argumentos não são feitos num tom acusatórios e a mensagem é uma mensagem de esperança. E os rostos mais significativos do partido não só estiveram presentes como empolgaram a convenção. Os Clintons, os Obamas, Oprah, Pelosi, Booker, Warren, Jeffries, Schumer, etc. Todos inequivocamente unidos no apoio aos seus candidatos e, sobretudo, firmes na defesa do Estado de Direito.
Perante o que vimos, penso que os democratas estão com uma dinâmica de vitória.
Notas suplementares
Dentro do partido democrata, a grande divisão que existe é o conflito entre Israel e o Hamas. Os democratas foram sempre apoiantes de Israel. Porém, como a sua base eleitoral se foi modificando nos últimos tempos, e com o aparecimento de alguns novos actores políticos, a visão sobre o tema está dividida. Nos EUA, tal como em Portugal, a maioria das pessoas não percebe que há uma diferença entre o Hamas e o povo palestiniano. Infelizmente, o Hamas, uma organização reconhecidamente terrorista e que não quer saber do povo que representa, é o interlocutor dos palestinianos. Ou seja, embora seja necessário ajudar e cuidar dos palestinianos, que vivem no meio de todas estas confusões, ajudar o Hamas é continuar a permitir que estes ponham os seus objectivos à frente do bem estar dos palestinianos.
Neste contexto, apesar de terem de negociar com terroristas, a administração Biden, assim como uma administração Harris, terá como primeira preocupação o bem-estar dos palestinianos e não do Hamas, pois conhecem a diferença. Ora, aqueles que querem que os democratas apoiem as pretensões do Hamas em vez do bem dos palestinianos, se acharem que Kamala Harris não corresponderá, não votarão democrata. Mas também não votarão republicano. Terá isso importância no resultado final?
Quando se aborda esta questão é necessário ter em consideração as particularidades do sistema político e eleitoral norte-americano. Não é possível fazer uma transposição directa entre o que os norte-americanos e o que os europeus, no caso os portugueses, entendem por liberal. Os contextos culturais e históricos são distintos e, mesmo a nível académico, o sentido norte-americano da palavra “liberal” não tem nada que ver com o habitualmente entendido na Europa.
Para aqueles que se recordam dos valores que o partido republicano costumava defender – menos Estado, defesa da democracia e do Estado de Direito, participação activa, etc. – ver Donald Trump a defender e elogiar autocratas e ditadores é muito estranho. Mais surpreendente é a conivência dos republicanos. Obviamente, essa surpresa é menor quando vemos propostas como o Project 2025, que, na minha opinião, mais não é do que aquilo que os marxistas sempre defenderam: tomar conta do Estado e da administração pública. E a história ensina-nos quem fez isso à “direita”.
Se um português disser que votará sempre republicano ou democrata, independentemente do Estado e do candidato (quer seja para um senador, quer seja para um congressista) está, na minha opinião, a dar um sinal de desconhecimento dos condicionalismos inerentes ao sistema político norte-americano. Curiosamente, tendo em mente os pressupostos atrás referidos, há uns tempos fiz um pequeno exercício e, na maioria dos casos, votaria republicano. Porém, as eleições presidenciais, até pelas suas características (um poder federal exercido por uma pessoa), são diferentes. E perante as propostas apresentadas, se este liberal votasse nos EUA, votaria Harris-Walz.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Da Política na América?
{{ noCommentsLabel }}