
Do Brexit ao “Amexit”: o recuo na globalização mitigado pela GlobalChina
A atual crise das tarifas representa a segunda vez, em apenas três anos, que as obrigações do tesouro dos EUA falham a sua função tradicional, a de proteger uma carteira diversificada.
Durante décadas, o mundo financeiro habituou-se à ideia de que, em tempos de recessão, as obrigações do tesouro – sobretudo as norte-americanas e as alemãs – funcionam como ativos de refúgio, amortecendo as perdas nas carteiras provocadas pelas desvalorizações das ações. No entanto, essa lógica está a ser posta em causa, especialmente no que diz respeito à dívida soberana da maior potência económica global, os EUA, que é a maior do mundo, quase 12 vezes superior ao montante da dívida pública alemã, e amplamente negociada a nível internacional.
A atual crise das tarifas representa a segunda vez, em apenas três anos, que as obrigações do tesouro dos EUA falham a sua função tradicional, a de proteger uma carteira diversificada de ações e obrigações em tempos de elevada incerteza, desaceleração económica significativa ou mesmo recessão. A primeira ocorreu entre fevereiro e março de 2022, após o início da guerra na Ucrânia, quando os preços da energia dispararam e as ações norte-americanas, sobretudo as de crescimento, caíram abruptamente. Nessa altura, as obrigações soberanas norte-americanas também recuaram, em vez amortecerem as perdas nos portfólios. E agora volta a acontecer: perante receios de margens esmagadas e de uma recessão iminente, os mercados acionistas corrigem, mas as obrigações do tesouro dos EUA não aliviam as perdas — pelo contrário, estão igualmente a penalizar os investidores.
Este comportamento levanta sérias dúvidas sobre o papel tradicional da dívida pública norte-americana. A volatilidade nas yields permanece próxima dos máximos, e o spread positivo entre os rendimentos das obrigações a 10 e a 2 anos tem vindo a alargar — esta semana atingiu os 65 pontos base, impulsionado sobretudo pelas vendas de títulos do tesouro norte-americano por parte da China, com destaque para os prazos a 10 anos. Este movimento sinaliza expectativas de recessão, especialmente quando conjugado com a descida dos rendimentos a 2 anos, que reflete a antecipação, por parte do mercado, de cortes de juros pela Reserva Federal dos EUA, numa tentativa de mitigar uma eventual contração económica. Importa sublinhar que uma curva de rendimentos invertida é, historicamente, um sinal de recessão, mas esta tende a concretizar-se apenas quando a curva volta a normalizar e essa normalização se intensifica.
As obrigações do tesouro dos EUA comportam-se cada vez mais como as dos países com economias menos robustas, onde o aumento do risco de crédito em contexto de recessão supera os benefícios de uma descida das taxas de juro de curto prazo — ou seja, o risco de crédito tem hoje mais peso do que o risco de taxa de juro. O aumento contínuo de um nível já elevado de dívida pública nos EUA agrava esse risco e abala a confiança no modelo tradicional, enquanto os investidores começam a reavaliar seriamente as suas estratégias de alocação. Além disso, fragiliza a posição internacional dos EUA e reduz a sua margem negocial face à China, que ambiciona assumir o trono de maior potência económica global.
Por detrás desta inversão de papéis e desta fragilidade crescente está algo mais profundo, nomeadamente uma mudança estrutural na forma como os EUA se posicionam no mundo. Após décadas de expansão comercial, estamos a assistir a um movimento de recuo — aquilo a que poderíamos chamar, metaforicamente, um “Amexit”. Tal como o Brexit marcou um passo atrás na integração europeia, os EUA parecem agora estar a fazer marcha-atrás na globalização que eles próprios lideraram. Durante mais de meio século, os EUA construíram uma economia offshore, deslocalizando fábricas para o México, China, América Latina e Sudeste Asiático, o que permitiu manter produtos baratos nas prateleiras dos consumidores americanos. Todavia, a globalização teve um impacto assimétrico na população norte-americana, com o índice de Gini
a aumentar e o peso dos salários no PIB a diminuir. Enquanto Wall Street via os seus ganhos crescerem significativamente, a Main Street beneficiou menos dessa prosperidade.
Porém, atualmente, a dívida pública dos EUA é elevada, minando a estratégia anterior e retirando-lhes a força económica, a influência diplomática e o poder militar necessários para sustentar esse modelo. O mundo mudou. Os EUA estão agora sobreendividados, com menor capacidade de projeção militar, e o império americano encontra-se em fase de retração. Em vez de manter uma rede global de influência, a nova administração privilegia a reconstrução interna do país — reforçar a indústria doméstica, relocalizar a produção (reshoring) e proteger os empregos internos, mesmo que isso implique custos para os mercados acionistas e para a elite empresarial associada ao antigo modelo globalizado.
Com esta viragem, as infraestruturas industriais criadas fora dos EUA — que existiam para servir um império económico — tendem a desaparecer. A supremacia na produção de bens industriais já não é americana. A China é atualmente o maior construtor automóvel, respondendo por 30% da produção global. A China é o maior construtor naval do mundo, com mais de 50% da produção global e uma capacidade industrial incomparavelmente superior à dos EUA. No setor da aviação comercial, apesar de a chinesa COMAC ainda estar a dar os primeiros passos, a tendência aponta para uma concorrência crescente com a Boeing e a Airbus num futuro próximo. No plano militar, embora os EUA mantenham a liderança em termos de orçamento e tecnologia, a China ultrapassou-os em número de navios de guerra e consegue produzir mais gastando menos, graças à eficiência industrial de um sistema centralizado e estrategicamente orientado.
Esta mudança de paradigma contrasta diretamente com a teoria clássica de David Ricardo, que defendia que os países deveriam especializar-se na produção de bens em que fossem mais eficientes, trocando depois entre si — por exemplo, vinho por têxteis. Esse modelo pressupunha trocas reais e equilibradas, feitas em última instância com ouro ou bens tangíveis. Quando um país importava mais do que exportava, perdia ouro — o que limitava naturalmente o défice e disciplinava a política económica. Hoje, essa lógica está quebrada. Os EUA importam bens do mundo inteiro, mas pagam com dívida, emitindo papel-moeda pelo seu banco central (Fed) e acumulando défices comerciais e orçamentais crónicos. Além disso, a globalização trouxe consigo os paraísos fiscais, com menos receitas das grandes multinacionais, compensadas pela crescente sobrecarga fiscal da classe média.
Perante este desequilíbrio estrutural e o enfraquecimento da confiança no dólar como reserva de valor, o ouro está a regressar como ativo estratégico. A procura por ouro tem vindo a crescer — não apenas por parte de investidores privados, mas sobretudo de bancos centrais, nomeadamente de economias emergentes e da Ásia, que procuram diversificar reservas e reduzir a exposição ao dólar. Neste novo ciclo de desglobalização e perda de hegemonia americana, o ouro reassume um papel que a teoria clássica nunca perdeu de vista: o de último garante de confiança monetária.
Em suma, enquanto os EUA recuam estrategicamente com o que poderíamos chamar de “Amexit”, num paralelismo evidente com o Brexit, a China faz o caminho inverso, num processo de afirmação que se pode designar de “China Global”, uma estratégia de presença e influência crescente em todas as frentes, desde a comercial à industrial, tecnológica e diplomática.
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