E uma vacina para a estupidez?
Se as vacinas que integram o Programa Nacional de Vacinação não forem seleccionadas com base em evidência empírica, quem ganha são os detratores das vacinas.
Quando, em Outubro de 1998, se lançou a operação “Tolerância Zero”, foi o reconhecimento oficial de que a lei no nosso país é uma coisa meramente indicativa. A sua obrigatoriedade só se verifica em determinadas circunstâncias (e está sempre dependente da fiscalização, porque isto de uma pessoa “kantianamente” cumprir sem cacete não vai muito com a nossa natureza), sendo apenas uma sugestão de conduta nos demais casos.
Esta semana tivemos mais um episódio a reforçar esta percepção. Refiro-me ao facto de, a propósito do Orçamento de Estado, o Parlamento ter decidido incluir mais três vacinas no Programa Nacional de Vacinação (PNV).
Bom, em primeiro lugar e como comentário um pouco lateral, deixem-me dizer que o Orçamento de Estado invoca-me sempre a imagem de um eléctrico com miúdos “à pendura”. É que, aproveitando-se a sua boleia, que é a de uma lei com valor reforçado, aprova-se muita coisa. Um exemplo. O Orçamento de Estado para 2019 passou a obrigar o alojamento local a ter um seguro de responsabilidade civil no valor mínimo de 75 mil euros. Quem paga o seguro? Os proprietários de alojamento local. Pagam a quem? Às seguradoras, naturalmente. E, no entanto, esta é uma medida inscrita no Orçamento de Estado. É estranho.
Mas voltemos à questão das vacinas. E vamos começar por esclarecer um ponto que parece estar a criar alguma confusão: o Programa Nacional de Vacinação é posto em prática através de um esquema vacinal recomendado. E aqui recomendado é mesmo recomendado, não é, como frequentemente sucede em Portugal, um eufemismo para uma outra palavra qualquer. Ou seja, as vacinas não são de toma obrigatória. Que pudessem passar a sê-lo até foi tema de discussão aquando do surto de sarampo em Março.
Agora que está este aspecto elucidado, passemos ao cerne da questão. Diz a Portaria 248/2017 que o PNV é coordenado pela Direcção-Geral de Saúde (DGS) com a colaboração das Administrações Regionais de Saúde, dos agrupamentos de centros de saúde, dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, da Administração Central do Sistema de Saúde, do INFARMED e do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge. Diz também que é da competência da DGS a elaboração, a proposta e a submissão da definição e/ou alteração da estratégia vacinal, do esquema vacinal e do respetivo calendário, uma vez ouvida a Comissão Técnica de Vacinação.
Encontraram “Assembleia da República”?! Eu também não. Mas, aparentemente, os senhores deputados descobriram no modelo de governação do Programa Nacional de Vacinação uma referência às suas pessoas. Não creio, de modo algum, que o tenham feito com más intenções. Ouço muita gente falar dos interesses e pressões da indústria farmacêutica, mas não estou convencida de que seja esse o móbil. No entanto, esta foi uma atitude irresponsável.
E o meu problema com ela não é legal. É que, neste caso, aquilo que está na legislação faz sentido. Como se lê na portaria que cria a tal Comissão Técnica de Vacinação, “a adoção de diferentes estratégias vacinais reveste-se de uma complexidade crescente face ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos e tecnológicos, às alterações do padrão epidemiológico das doenças, aos custos crescentes da sua aplicação e à percepção dos cidadãos relativamente à vacinação contra doenças que estão controladas. Impõe-se, portanto, o desenvolvimento de uma metodologia de trabalho que, através de múltiplas disciplinas, permita a análise e acompanhamento dos diversos aspetos relacionados com a definição e aplicação de diferentes estratégias vacinais. Ora, a multidisciplinaridade exige a atualização de um grupo consultivo, constituído por especialistas de várias áreas do conhecimento”.
Eu não percebo nada de saúde pública, de infecciologia, de epidemiologia, de pediatria, de farmacologia, de imunoalergologia, de virologia e de outras “logias” que tais que devem ser ouvidas quando se trata de alterar planos de vacinação. Mas percebo um bocadinho de análise custo-benefício, que é uma coisa importante quando se trata de colocar no Orçamento de Estado o ónus de vacinar. E também percebo que os pais, na angústia de terem de ir depositar as suas crianças aos seis meses de idade numa creche, lhes queiram injectar a protecção que elas teriam se pudessem ficar ao cuidado parental.
Já aquilo que os deputados percebem sobre este assunto é um mistério.
A proposta apresentada pelo PCP começa a sua nota justificativa com a frase “O Programa Nacional de Vacinação – universal e gratuito – que teve a sua última atualização em junho de 2015 para incluir uma nova vacina em cumprimento de uma Resolução da Assembleia.” Errado. Gramaticalmente e factualmente. Depois da introdução da vacina Prevenar, em Junho de 2015, dois despachos vieram, em 2016, proceder a alterações no PNV. No restante, diz que há pareceres de especialistas e estudos favoráveis à integração das vacinas do rotavírus e da meningite B e do HPV em rapazes. Assim mesmo, tão vago quando isto: pareceres de especialistas e estudos. Não diz quantos, nem quais, para irmos procurar.
Mas eu fui fazer alguma pesquisa. Uma coisa rápida e elementar. No site da Organização Mundial de Saúde, li que, quanto à meningite, em países cuja incidência não chega aos dois casos por 100.000 habitantes, a vacinação deve ser feita em grupos de risco; já a imunização contra o rotavírus é aconselhada, sendo considerada prioritária apenas no Sul e Sudeste Asiático e na África subsariana.
Na sua proposta de alargamento da vacina contra o HPV a rapazes, Os Verdes também mencionam uns dados que são da Organização Mundial de Saúde, contudo creio que não encontraram o position paper desta onde se afirma que a extensão ao sexo masculino provavelmente não sobrevive a uma análise custo-benefício. Já a proposta do BE nem nota justificativa incluiu.
Mas eu não quero estar aqui a mandar palpites sobre a justificabilidade desta alteração. Estaria a cair no mesmo erro que o Parlamento: o de ajuizar sobre uma matéria que está para lá da minha competência. E esse é que o problema. Principalmente quando o discurso anti-vacinação cresce. Se as vacinas que integram o Programa Nacional de Vacinação não forem seleccionadas com base em evidência empírica sobre a sua efectividade, no impacto que têm na saúde e na epidemiologia das doenças e, ao invés, parecerem fruto de uma decisão unicamente política e arbitrária, são precisamente os detractores da vacinação quem ganha argumentos.
Há umas semanas, reflectia sobre a diabolização que se fez da ideologia e de como se tenta travesti-la de discussão técnica. Mas não estava com isto a sugerir que se adopte o comportamento inverso! Na última entrevista que deu, Carl Sagan perguntou quem é que, numa sociedade crescentemente baseada em ciência e tecnologia, irá tomar as decisões acerca da ciência e tecnologia que determinarão o futuro dos nossos filhos. Os especialistas em ciência e tecnologia, não o Parlamento, espero eu.
Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.
Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.
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